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A restrição aos meios técnicos de execução de suicídios

3 A PREVENÇÃO DO SUICÍDIO

3.1 A restrição aos meios técnicos de execução de suicídios

O conhecimento dos métodos e dos obstáculos particulares a cada método pode ter papel importante no trabalho de prevenção. Atenção a esse tópico só apareceria no Boletim da Organização Mundial de Saúde, em 2008. O boletim analisa padrões internacionais de métodos de suicídio, desde 1950, com dados recolhidos de 56 países. Ficaram de fora diversos países da África e da Ásia, ou por estarem em conflito, ou pela inexistência de registros. Países industrializados apresentam informações mais precisas (AJDACIC-GROSS et al., 2008a).

Pesquisas apontam evidências de que a produção de obstáculos à disponibilidade de meios técnicos constituem prevenção eficaz ao suicídio (AJDACIC-GROSS et al., 2008b; BLAUSTEIN; FLEMING, 2009). Tomado do impulso de morte, sugerem os estudos, o suicida avalia disponibilidade e letalidade do método. A decisão de executar o ato sofre influência do acesso aos meios e da tradição cultural. A investigação revela que em países do leste europeu, Estônia, Letônia, Lituânia, Polônia, Romênia, prevalece o enforcamento; nos Estados Unidos e Suíça, o uso da arma de fogo; os pesticidas são mais utilizados nos países em desenvolvimento na Ásia e América Latina (KILLIAS et al., 2006).

Enforcamento, autointoxicação por pesticida e suicídio por disparo de arma de fogo são os métodos prevalentes nos países pesquisados. Quando há indisponibilidade de pesticidas e de armas de fogo, o enforcamento torna-se o principal método utilizado. Se forem criadas restrições aos meios técnicos usados nesses três métodos, provavelmente se garantiria derrubada significativa nos números globais do suicídio.

Cantor e Baume (1998) reforçam a hipótese de que a disponibilidade física e aceitação sociocultural são determinantes da escolha do método. Os dados coletados pelos autores sugerem que a

restrição de disponibilidade de método está associada à redução das taxas de suicídios específicos.

O governo australiano usou a estratégia da restrição ao uso de armas de fogo para prevenção do suicídio. Lei de 1996 proibiu a posse de armas de repetição por civis, estabeleceu programa de recompra e anistiou registro e entrega voluntária de armas legais. A medida ocorreu após o massacre em Port Arthur, no estado australiano da Tasmânia, em abril de 1996. Martin Bryant, 29 anos, com armamento militar, matou 35 pessoas e feriu 18 (CHAPMAN et al., 2006; SAINT, 1965).

Chapman et al (2006) apontam redução das mortes por arma de fogo na Austrália, após a reforma na lei da posse dessas armas. Homicídios por arma de fogo, entre 1979 e 1996, apresenta vam média anual de 627,7. Nos sete anos subsequentes às medidas de controle adotadas em 1996, a média caiu para 332,6.

Com três em cada quatro mortes, o suicídio representava a maior causa de morte por arma de fogo na Austrália. A média anual entre 1979 e 1996 alcançava 491,7 suicídios. A taxa após 1996, em sete anos, reduziu-se em 7,4% ao ano e a média anual caiu para 246,6 (CHAPMAN et al, 2006).

A queda nos números na Austrália não deve gerar otimismo exagerado. O suicídio não pode ser sempre evitado. A complexidade de determinadas situações inviabilizam atitudes de prevenção. Por causa da inviabilidade de impedir que uma taxa específica de suicídio ocorra, parentes e amigos das vítimas podem assumir sentimentos de culpa indevidos (WALTER; PRIDMORE, 2012). Quando foi impossível a um pai impedir o suicídio do filho, a dor da perda é inexorável, mas a dor da culpa é excesso.

Por mais difícil que seja impedir uma parcela de suicídios, deve- se realizar qualquer esforço para bloquear o autoextermínio evitável. Na Austrália, a restrição ao porte de armas de fogo apresentou resultado melhor que o esperado, e não houve substituição do método por outro

(WALTER e PRIDMORE, 2012). O problema é que a dinâmica dos sistemas complexos impossibilita previsões do futuro. É impossível dizer, com certeza, se o efeito redutor das taxas de homicídios e suicídios permanecerá, por animadores que sejam os resultados australianos. A complexidade da vida social torna difícil estabelecer relações simples de causa e efeito. A queda nas ocorrências de mortes por armas de fogo na Austrália pode depender de fatores não considerados pelas pesquisas, que só correlacionaram a variável com as leis de restrição ao acesso às armas de fogo.

Diante do dilema epistemológico das ciências sociais, do qual as ciências naturais não escapam, não existe alternativa. É necessário trabalhar com os consensos teóricos que adquirem plausibilidade, sem desconsiderar que consensos científicos podem se mostrar falhos e errôneos (DUNCAN, 2013). Ao transferir esses conhecimentos para o planejamento da vida social, como a política de prevenção ao suicídio, a urgência impõe a necessidade de assumir riscos. Riscos que precisam ser avaliados com máxima precisão, por se tratar de vidas em perigo. Ganha importância a pesquisa acadêmica. Tateante e falível, sabedora das incertezas do mundo, a pesquisa possui aptidões para produzir interpretações do mundo mais qualificadas do que as avaliações e planejamentos de gestores públicos ocupados na manutenção da máquina administrativa.

No Reino Unido, motivado pelo massacre cometido por Michael Ryan, que matou 16 pessoas e cometeu suicídio, em 19 de agosto de 1987, o governo impôs leis rígidas de controle das armas de fogo. Várias categorias de armas foram proibidas. As restrições chegaram a atingir a venda de réplicas de armas (KILLIAS et al., 2006; WARLOW, 2007).

O governo britânico seguiu recomendações do grupo de pesquisas liderado pelo criminologista Martin Killias, de Zurique. A hipótese da equipe de Zurique supõe a correlação entre as taxas de suicídios, homicídios e acidentes e a posse de armas de fogo pe la população civil. Ao comparar dados de suicídio por armas de fogo em

países ocidentais, de 1983 a 2000, os pesquisadores concluíram que legislações restritivas à disponibilidade de armas de fogo em residências reforçam a prevenção de mortes por esse método. Através da análise do banco de dados de mortalidade da Organização Mundial da Saúde, publicado em 1992, a pesquisa comparou números dos Estados Unidos, Suíça, Finlândia, França, Canadá, Suécia, Austrália, Holanda, Inglaterra e País de Gales, Escócia, Noruega, Espanha e Nova Zelândia (KILLIAS et al., 2006).

O conjunto das pesquisas europeias desenvolvidas por Killias (1990; 1993; 2000) sustenta a hipótese da correlação entre a posse de armas de fogo por civis e aumento das mortes por esses meios. Homicídios, suicídios e acidentes cresceriam em países onde as leis de acesso e porte são frouxas.

Em 2001, Killias testou a hipótese com dados comparados de 21 países. Na pesquisa, ficaram de fora os acidentes com arma de fogo, homicídios e suicídios eram o foco da investigação. As convicções dos pesquisadores renovaram-se e a conclusão do trabalho sugere adoção de leis rigorosas de controle da posse de armas por civis (KILLIAS et al, 2001).

O assunto é polêmico, o consenso está longe de ser alcançado. Há trabalhos que refutam as conclusões de Killias e defendem ideias opostas (LOTT, 2002; LUDWIG; LOTT, 1999; MALCOLM, 2002; PLASSMANN; WHITLEY, 2003). As análises apontam debilidades nas investigações de Killias, que, segundo os autores, contêm erros metodológicos suficientes para invalidar as conclusões. O tamanho da amostra é pequeno e sua escolha não aleatória; países com números que não se conformam com hipótese de que a disponibilidade de armas de fogo aumenta a probabilidade de mortes por essas armas são excluídos. Faltou regra para inclusão ou exclusão de países, o que pode aumentar ou reduzir os números, a depender do país escolhido; o estudo apresenta correlações bivariadas, método rejeitado pela estatística porque inferências não podem ser feitas a partir de apenas

duas variáveis. Killias ignora aspectos demográficos, sociais e culturais. Pobreza, abuso de álcool, crime organizado, tráfico de drogas podem afetar as taxas de mortes. O estudo não apresenta as correlações sem e com os casos extremos. Os Estados Unidos apresentam o maior número de armas na posse de famílias e taxas de homicídios maiores que qualquer país europeu. A menor taxa de homicídios é da Suíça, onde todas as famílias possuem armas. Sem os dados dos Estados Unidos a correlação mais armas, mais crimes é insustentável.

As críticas são fundamentadas, mas a quantidade de trabalhos que corroboram a tese de Killias, na Europa, indica que a hegemonia pertence à hipótese disponibilidade de armas de fogo para civis aumenta mortes por essas armas.

As inconsistências das pesquisas de Killias são consideráveis, mas seus levantamentos revelam que o suicídio por arma de fogo está entre os três métodos mais usados. Dos meios para dar fim à própria vida, é o que mais depende da disponibilidade do método. Apertar o gatilho, por impulso, requer menos esforço de preparação do que pendurar-se numa corda ou envenenar-se. Se a restrição para todo um país é discutível, e pode não ser responsável pela redução das taxas de suicídio, por prudência, a arma de fogo deve ser vedada aos indivíduos com comportamento suicida.

Nos Estados Unidos e no Canadá a luta para a restrição das armas de fogo não é só contra o poder da indústria de armamentos, é contra a cultura. A posse de pelo menos duas armas em casa, para caça e para defesa, é banal nas duas nações. A segunda emenda da Constituição americana é categórica:

Sendo necessária à segurança de um Estado livre a existência de uma milícia bem organizada, o direito do povo de possuir e usar armas não poderá ser impedido. (CONSTITUIÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS, 1787).

Na América, ao contrário da Europa, os defensores das armas vencem o debate. Empresas de mídia, organizações de colecionadores

e associações de caçadores possuem lobbies influentes. Vez por outra , as tragédias promovidas por atiradores embaraçam as crenças americanas e mobilizam a opinião pública, mas a cultura da liberdade de posse de arma continua vigorosa entre os americanos.

No Brasil, suicídios por envenenamento com cianeto de potássio possuíam taxas representativas entre as décadas de 1930 e 1960. Vendido sem qualquer controle, o produto químico usado na lavoura, em laboratórios fotográficos e na galvanização de metais mata em minutos . O cianeto intoxica o sangue e impede a oxigenação dos tecidos. Depois que os controles de saúde pública regulamentaram o comércio do produto, os envenenamentos com uso do método apresentaram redução (MELLO JORGE, 1981).

A era da internet burla as restrições e facilita o comércio ilegal de produtos. O cianeto é oferecido em sítios da grande rede, e a propaganda não esconde o propósito de ajudar indivíduos a colocar fim ao sofrimento.

Na primeira metade do século 20, era comum o uso do cianeto, conhecido à época como cianureto. Pessoas renomadas morreram com o veneno. O matemático Alan Turing morreu ao comer maça embebida em cianeto, em 1954, aos 41 anos. Precursor dos sistemas de computação, ele desvendou códigos criptografados nazistas, na 2ª Guerra, favorecendo a vitória dos Aliados. O biógrafo David Leavitt (2011) relata uma suposta fixação de Turing pelo conto A Branca de Neve e os sete anões.

Foi com cianeto o suicídio coletivo de 918 pessoas, incluídas 270 crianças, promovido pelo pastor Jim Jones, nos Estados Unidos, em 1978.

Evidências mostram que indivíduos com comportamento suicida podem mudar de ideia quando seu impulso específico encontra obstáculos (LAPIERRE et al., 2011; YIP et al., 2012). O exercício da prevenção deve considerar esse conhecimento, mirar os m étodos de

suicídios e desenvolver estratégias de restrição a eles. Existem soluções viáveis para reduzir mortes por suicídio, com intervenções nos meios técnicos. Eliminação do elemento tóxico do gás de cozinha, mudança no escapamento dos automóveis, regulação da venda de venenos e agrotóxicos, controle da administração de medicamentos para pacientes com doenças mentais, são medidas que os poderes públicos poderiam providenciar sem demora. Haveria necessidade de fazer o enfrentamento dos interesses da indústria, que busca diminuir custos de produção, sem levar em conta os riscos para humanos e para a natureza (CANTOR; BAUME, 1999; SZANTO et al., 2007).

A indústria de armamento cria obstáculos às legislações restritivas do porte e acesso às armas de fogo, mas a ação decisiva de governos mostra que é possível impor limites ao mercado das armas, de bebidas, de medicamentos. O Estado pode mesmo se impor contra a cultura. Austrália, Reino Unido, Nova Zelândia, países de cultura anglo - saxônica, possuem histórica familiaridade com armas de fogo nas residências, mas adotaram leis restritivas rigorosas, no final do século

20. Como vimos, estudos apontam quedas nas taxas de suicídios após o

Firearms act australiano (CHAPMAN et al., 2006).

Em Teresina, restringir o acesso às armas de fogo não surtiria efeito semelhante. O governo brasileiro, legitimado por plebiscito, adotou política de desarmamento em 2005. Foi um fracasso na cidade. Não houve queda de mortes por armas de fogo, a medida não reduziu armas no mundo do crime, o número de homicídios cresceu. A população fora do crime não possuía armas, pelo motivo óbvio de que armas legais ou ilegais custam caro e metade da população vive abaixo da linha da pobreza. No Piauí, 74 armas foram entregues, a maior parte de fabricação caseira, confeccionadas com madeira e canos de ferro. Os valores da indenização variavam entre R$150,00 e R$450,00, conforme o calibre da arma.

O desarmamento não repercutiu sobre suicídios com arma de fogo na cidade. O método é mais utilizado por militares. Eles possuem

acesso facilitado e direito a porte de arma. Para ter impacto na redução da taxa de suicídios, o porte de armas por militares deveria ficar restrito ao horário de trabalho, e isso não seria fácil de implantar. Os policiais argumentam que, por dever legal, devem atuar mesmo fora de serviço, se a situação exigir, e precisam do armamento para se proteger, em virtude da periculosidade da profissão.

O governo inglês conseguiu maioria no parlamento para votar lei que impede o porte de arma por policiais fora de serviço. No Bras il, a adoção da mesma medida tem chances quase nulas. No parlamentarismo, a maioria é a garantia da governabilidade. As propostas do executivo britânico chegam ao parlamento pré -aprovadas. No presidencialismo, o caso do mensalão no Brasil mostra, a maioria precisa ser comprada. O lobby dos militares é organizado, os membros da categoria votam e o parlamentar brasileiro não vota temas impopulares. Por essa via não será construída a prevenção de suicídios entre militares. Com os médicos, eles compõem as categorias profissionais mais vulneráveis ao suicídio, com taxas superiores aos coeficientes da população em geral, no mundo todo (MELEIRO, 1998). Outras medidas precisam ser pensadas.

O estudo de Zamorski (2011) revisou a literatura sobre a prevenção do suicídio em organizações militares e identificou princípios gerais para redução dos suicídios e tentativas: 1) intervenções para mitigar o stress específico do trabalho nas organizações militare s; 2) treinamento da resiliência e redução de fatores de risco; 3) intervenções para superar as barreiras para cuidar; 4) esforços de melhoria sistemática da qualidade na área da saúde mental.

O desafio da política de prevenção do suicídio em Teresina será produzir obstáculos ao principal método empregado na cidade, o enforcamento.

Na varredura que fizemos na literatura científica mundial, encontramos propostas para os outros 24 métodos e um silêncio sobre

o enforcamento (BLAUSTEIN; FLEMING, 2009; CHAN et al., 2005; GUNNELL et al., 1999; RODGERS et al., 2007; SHER, 2005). A mudança do álcool líquido para o estado gel, menos inflamável, mais viscoso, mostrou-se excelente solução preventiva do horripilante método de atear-se fogo, primeira causa de mortes de mulheres indianas entre 15 e 49 anos. Na infância, ouvi histórias de mulheres que encharcavam - se de álcool e ateavam fogo no corpo, no meio da rua, após conflito conjugal. A oprimida mulher do Nordeste brasileiro, como na Índia, incapaz de se defender das agressões dos homens, imprime ao ato fatal tons de vingança. Com a cena pública, pelo menos por uns dias, ela obtém a compaixão da comunidade e desfere no homem o golpe da culpa. A Índia possui uma das mais altas taxas de suicídio do mundo. Em 2010, 187.000 pessoas cometeram suicídio. Metade das mortes ocorreram por envenenamento por pesticidas (PATEL et al., 2012). Com o enforcamento é diferente. O método continua a desconcertar os padrões da razão. Tornou-se o instrumento da desrazão. O enforcamento desafia os planejadores da Organização Mundial de Saúde. Seus planos de prevenção teimam em encarcerar o indivíduo no esquema biomédico, que só consegue captar parte do problema (CAPRA, 2010). A cegueira do pensamento dos especialistas, quase todos da medicina, da psiquiatria principalmente, anula a complexidade do humano, reduz à causalidade única, a biológica, a determinação do suicídio (MORIN; VIVERET, 2013).

O enforcamento nos propõe um enigma. A resposta, se existir, pode estar oculta num contexto antropológico que não separe o homem em setores, nem negligencie aspectos que, ao primeiro olhar, parecem irrelevantes (MORIN, 2002).

Os planos de prevenção congelaram a ideia da presença da doença mental em mais de 90% dos casos consumados de suicídio. O agravo de saúde foi tornado o elemento relevante, e obliterou-se o resto. Sem negar o consenso em torno do dano mental, porque não se trata de excluir conhecimentos, diante dos fracassos dos planos de

prevenção, é nosso dever escarafunchar o que está deixado de lado como irrelevante. Não existem garantias de algo encontrar, mas a ciência vive, como vocação, de tatear no escuro.

A vantagem é que não partimos do zero. Já admitimos a lógica que propõe criar obstáculos ao acesso dos meios técnicos de produção de lesões autoprovocadas intencionalmente. No caso de Teresina, empregada em mais da metade dos suicídios, o instrumento é a corda.