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A principal pergunta no debate sobre o problema do suicídio em Teresina é sobre causas. Essa fixação pela busca da causa primária nasce com a ciência moderna e contamina todos os discursos existentes na sociedade. O fundamento dessa fixação reside no desejo da resolução dos problemas científicos e sociais. Parece que se a causa não for descoberta, também não será a terapêutica, a solução.

Mas essa fixação não condiz com toda a realidade do trabalho científico. Diversos fenômenos estudados pelas ciências não tiveram causalidade estabelecida, e explicações aplicadas a milhares de problemas científicos são envoltas em controvérsias.

Ainda não sabemos o que causou o Big Bang; a teoria do desaparecimento dos dinossauros pela queda de um astro na Terra é combatida por pelo menos outras três teorias; não há consenso sobre uma possível catástrofe planetária ligada ao aumento da camada de ozônio, que seria, em parte, resultado da ação predatória dos humanos; há uma comunidade de cientistas que nega a hipótese do HIV como agente patogênico da Aids; as ciências humanas há muito travam combates teóricos a respeito do fim do capitalismo ou de sua permanência. A lista não caberia neste capítulo.

O suicídio é um desses temas controversos no debate científico. Correntes na psiquiatria afirmam que a causa genética é única e suficiente. Ocorrências psiquiátricas como esquizofrenia e transtorno do humor carregariam disposições genéticas similares às que dispõem ao ato suicida (CORNELIUS et al., 1996). Se proposição for aceita, a terapêutica passa necessariamente pelo emprego de medicação para neutralizar ou suprimir o fator gênico.

O emprego de psicofármacos se dá apenas um ano após a síntese da droga clopromazina, em 1952 (GUARIDO, 2007). Na década de 1970, os avanços do conhecimento sobre o cérebro fundaram a neurociência. A psiquiatria apropriou-se dos novos conhecimentos e

aventura-se na aplicação dos fármacos nos tratamentos dos transtornos do cérebro. Os psiquiatras ganham prestígio e passam a comandar o debate.

Nos Estados Unidos foi publicado o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais-DSM, em 1952. A primeira versão preservava influências da psicanálise e da psiquiatria social. Quando foi elaborado o DSM-III, ocorreu o rompimento com a psiquiatria clássica. Os transtornos mentais passaram a ser diagnosticados através de listas de sintomas resultantes da desorganização neuroquímica (GUARIDO, 2007).

As humanidades, acanhadas, veem seus discursos perderem terreno. Criou-se a polarização das intervenções em problemas ligados às emoções. A perspectiva da psiquiatria biológica restringiu o tratamento à prescrição psicofarmacológica. Do lado oposto, as psicoterapias enfatizaram fatores subjetivos e desprezaram mecanismos biológicos (WINOGRAD; SOLLERO-DE-CAMPOS; LANDEIRA- FERNANDEZ, 2005).

A ideia de oposição rejeita a possibilidade de complementaridade. O modelo biomédico fundamenta as explicações dos comportamentos e sentimentos humanos na atuação dos neurotransmissores, substâncias neuroquímicas geradas em áreas específicas do cérebro. Produzidos pelos neurônios, os neurotransmissores são liberados quando o axônio de um neurônio pré - sináptico é excitado e se deslocam pela sinapse até a célula alvo, inibindo-a ou excitando-a (DAMÁSIO, 1996, 2000).

Os neurônios são células essenciais para a atividade cerebral. São bilhões. Formam circuitos, núcleos, interligam-se e compõem sistemas de complexidade elevada. Corpo celular, axônio e dendritos são componentes dos neurônios. Impulsos elétricos saem pelo axônio de um neurônio, entram pelos dendritos do outro. Os pontos de contato são

as sinapses, que podem ser estimuladoras ou inibidoras (DAMÁSIO, 1996).

A atividade do neurônio depende do conjunto dos neurônios vizinhos. Sistemas interligados se influenciam mutuamente e agem em locais específicos do cérebro. Damásio fala do cérebro como “um supersistema de sistemas” (DAMÁSIO, 1996).

O cérebro começou a ser desvendado através dos estudos de pacientes com doenças neurológicas e com lesões cerebrais. Com as modernas tecnologias, tomografia por emissão de pósitrons e ressonância magnética de alta resolução, tornou-se possível produzir imagens do cérebro. Os computadores se encarregam de tornar as imagens tridimensionais (DAMÁSIO, 2000).

Estudos com animais contribuíram para o conhecimento do cérebro, com prejuízo para os parentes mais próximos do Homo sapiens. Neurocientistas de Yale, Fulton e Jacobsen, em 1935, na tentativa de compreender a aprendizagem e a memória, danificaram o córtex pré-frontal dos chimpanzés Becky e Lucy. Os animais passaram a apresentar anormalidades no comportamento e tornaram-se incapazes de manifestação emocional.

O fato é contado por António Damásio no premiado livro O mistério da consciência (2000). Na narrativa do renomado neurocientista, nenhuma comiseração com os animais. O avanço da ciência precisou inúmeras vezes do sacrifício de outras espécies. No caso de Becky e Lucy, conta Damásio, os macacos revelaram

grandes decréscimos nos hábitos de limpeza do pelo e da pele (deles e de outros); grande redução das interações afetivas com outros, independente do fato de serem machos, fêmeas ou jovens; diminuição das expressões f aciais e das vocalizações; comportamento maternal prejudicado e indiferença sexual. Embora possam se mover normalmente, não conseguem se relacionar com os outros animais do grupo ao qual tinham pertencido antes da operação. (DAMÁSIO, 2000).

O trabalho de Fulton e Jacobsen com os chimpanzés é considerado um marco na história da neurologia. A partir da manipulação do córtex pré-frontal dos macacos, as investigações posteriores desvelaram enigmas do comportamento dos primatas. O humano está incluído, mas é o único beneficiado.

Estava aberta a porta para a possibilidade de criar tratamentos para pessoas com danos cerebrais, problemas neurológicos e, quem sabe, controlar os transtornos de humor.

O desenvolvimento da neurociência produziu influências sobre a psicologia. Da intenção de estabelecer relação entre os processos mentais e o funcionamento cerebral, utilizando conhecimento das neurociências, surge a neuropsicologia. De acordo com Haase et al. (2012) trata-se de uma ciência de caráter interdisciplinar, que aproveita da neurociência o conhecimento sobre a estrutura e o funcionamento cerebral, e da psicologia as teorizações sobre a organização das operações mentais e do comportamento. Busca-se as inter-relações entre cérebro, funções cognitivas e comportamento.

O crescimento da neuropsicologia é acompanhado da ideia de intervenção em transtornos de comportamento relacionados ao funcionamento do cérebro. Para Haase et al. ( 2012, p. 7) “há um vasto e ainda pouco explorado campo de reabilitação neuropsicológica”.

As pesquisas sobre a genética do suicídio datam de meados do século 20. Através do rastreamento de casos em famílias e da comparação entre irmãos gêmeos e adotivos, buscava-se encontrar o componente hereditário do suicídio. Como a depressão possui um componente hereditário, prevalecia a suspeita de que a mesma carga genética que predispunha ao humor deprimido contribui para o comportamento suicida.

Artigos recentes disponibilizados no PubMed, que congrega mais de 23 milhões de citações da literatura biomédica e é mantido pela National Library of Medicine, dos Estados Unidos, convergem nas

conclusões sobre determinações neurobiológicas do comportamento suicida.

Verkes et al. (1998a) realizaram medições da serotonina (5-HT) no sangue, durante 1 ano, em 106 pacientes que haviam tentado suicídio recente, pelo menos uma segunda vez. Os resultados revelaram associação entre a função serotoninérgica e humor nas tentativas recorrentes de suicídio. Humor depressivo e comportamento impulsivo - agressivo, que estão associados à diminuição da função serotoninérgica central, dizem os autores, são relevantes para o comportamento suicida. A neurociência possibilitou a produção de drogas para o tratamento da depressão, que operam para elevar os níveis de serotonina no cérebro e redobrou a responsabilidade de aprofundamento teórico sobre a atuação dos neurotransmissores.

A serotonina, também conhecida como 5- hydroxytryptamine (5HT), é o hormônio e o neurotransmissor envolvido principalmente na excitação de órgãos e constrição de vasos sanguíneos. Nos mamíferos, a serotonina é produzida em células especializadas – as enterochromafinas. Esta substância também é encontrada nas paredes sanguíneas, e localizada no hipotálamo e parte central do cérebro. Algumas funções da serotonina incluem o estímulo dos batimentos cardíacos, o início do sono e a luta contra a depressão. (ANDRADE et al., 2003).

A partir da revisão de estudos com famílias, Ozalp (2009) afirma que existem evidências consistentes de que fatores genéticos desempenham importante papel na predisposição ao comportamento suicida. Os genes candidatos mais importantes incluem os transportadores de serotonina (Serts), triptofano hidroxilase (TPH), alguns receptores da serotonina (5HT1A, 5HT1B, e 5HT2A), catecol -O- metiltransferase (COMT), monoamina-oxidase-A (MAO-A), e tirosina hidroxilase (TH). O autor reforça a hipótese de que os traços de personalidade como impulsividade e agressividade podem desencadear tentativas de suicídio.

Gonda et al. (2007) estimam que entre 59 e 87% das vítimas de suicídio sofriam de depressão maior. Dados neurobiológicos sugerem que a baixa atividade de serotonina no cérebro pode desempenhar um papel fundamental, juntamente com o gene triptofano hidroxilase.

Os pesquisadores apontam os antidepressivos como tratamento agudo e a longo prazo capaz de reduzir a morbidade e mortalidade por suicídio, se forem realizados diagnósticos cuidadosos.

Progressos na compreensão do funcionamento neuroquímico das emoções estimularam o tratamento farmacológico dos distúrbios de humor. Ansiedade, transtorno bipolar, depressão, fobia social, transtorno do pânico são controlados por inibidores da recaptação de serotonina presentes nas drogas citalopram e fluoxetina (CORNELIUS et al., 1993; LANDEIRA, 2011).

Desde quando começaram a fazer parte da terapêutica dos transtornos mentais, nas primeiras décadas do século 20, os psicotrópicos multiplicaram-se, e estão entre os medicamentos mais consumidos no mundo. No Brasil, ansiolíticos são os remédios mais vendidos. O rivotril, do fabricante Roche, precisa de receita especial para compra, por causa da classificação tarja preta. Apesar da rest rição, está no topo da lista dos mais vendidos.

A popularização dos medicamentos psicoterápicos aconteceu, em parte, porque tornou-se hegemônica na recente literatura biomédica (BONDY; BUETTNER; ZILL, 2006; BRESSAN et al., 2005; GONDA et al., 2007; HOLTMANN; BÖLTE; POUSTKA, 2006; KENNA, 2010; MELTZER, 1999; OZALP, 2009; ROY et al., 1999; TURECKI, 2001; VERKES et al., 1997, 1998, 1996) a hipótese de que o comportamento suicida pode ter origens genéticas e que os fatores de risco mais importantes são os transtornos mentais, presentes em mais de 90% dos indivíduos que cometem o suicídio.

Antidepressivos inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRS) estão entre os medicamentos mais prescritos no

mundo ocidental. A classe é considerada superior aos tricíclicos, que provocavam, como efeitos colaterais, diminuição da libido, bloqueio do orgasmo, prisão de ventre nos idosos, retenção urinária, aumento de próstata (BREGGIN, 2003; LAPIERRE, 2003).

A medicação psicoterapêutica atua na comunicação sináptica executada pelos agentes químicos do cérebro. Como explica Landeira (2011, p. 78), os neurotransmissores

permitem que estruturas cerebrais possam estabelec er conexões entre si, formando circuitos neurais. A comunicação sináptica é um processo extremamente dinâmico, que possibilita ao sistema nervoso central expressar suas funções de forma plástica. Aprendizagem e memória são características intrínsecas do sistema nervoso, de tal forma que procedimentos relacionados com intervenções terapêuticas de qualquer natureza na área da saúde mental envolvem necessariamente processos de comunicação neural.

As certezas da eficácia da medicalização dos transtornos mentais sofreram abalos quando pesquisas apontaram evidências de que antidepressivos aumentam risco de suicídio. O tratamento com ISRS , em especial a fluoxetina, estaria relacionado com aumento de suicídios em pacientes com depressão (BREGGIN, 2003; HOLTMANN; BÖLTE; POUSTKA, 2006; MATTHEWS; FAVA, 2000).

Os estudos são inconclusivos, mas acenderam o sinal de alerta para a necessidade de se continuarem as investigações sobre os efeitos colaterais do manejo das emoções restrito ao tratamento bioquímico.

A revisão da literatura feita por Lapierre (2003) concluiu que a evidência disponível atualmente contraria a hipótese de que os antidepressivos ISRS causem aumento do suicídio em pacientes com depressão. Os dados epidemiológicos das populações ocidentais e os dados acumulados a partir de bases de dados de ensaios clínicos e meta-análises, em vários países, diz o autor, indicam que um número esmagador de pacientes experimentam uma diminuição da ideação suicida ao tomar ISRS.

O assunto é controverso. A polêmica surgiu a partir de uma série de relatos de casos de pacientes que desenvolveram intensas preocupações suicidas e pensamentos angustiantes de automutilação, durante o tratamento com antidepressivos ISRS (GOLDBERG, 1998; KROEZE; ZHOU; HOMBERG, 2012; MAHENDRAN, 2006).

Os inibidores seletivos de recaptação de serotonina aumentam a concentração do neurotransmissor porque inibem a recaptação pelo neurônio.

Sucesso de vendas, o antidepressivo Prozac funciona bloqueando a recaptação e deixando mais serotonina dispon ível para utilização nos complexos sistemas cerebrais específicos. Admitindo -se o postulado de que a depressão está relacionada com baixos níveis de serotonina, dopamina e noradrenalina, o resultado esperado da aplicação do medicamento é o controle do transtorno.

Roudinesco critica o processo de medicalização excessiva das sociedades ocidentais. Ela acusa as teorias que reduzem o homem ao seu ser biológico de impedirem a busca da transformação existencial do sujeito e de produzirem o fetichismo da ciência biologizante:

Se a serotonina viesse a ser considerada a causa única do suicídio, se o ato sexual passasse a ser assimilado a um estupro, se o migrante dos arrabaldes passasse a não ser encarado senão como a soma de seus “amuletos”, e se, por fim, a imagem do homem trágico fosse reduzida ao exercício mecânico das funções vitais, ao mesmo tempo que A Mulher, tornada onipotente, se identificasse mais com sua diferença do que com um sujeito completo, nossas sociedades estariam às vésperas de mergulhar numa nova barbárie. (ROUDINESCO, 2000, p. 148)

O neurocientista António Damásio critica explicações simplificadas sobre a neuroquímica do cérebro. Segundo o autor, é necessário considerar ambos os tipos de fatores, sociais e neuroquímicos, em proporção adequada (DAMÁSIO, 1996). Não é a ausência ou a quantidade baixa de serotonina que provoca, por si só, manifestações comportamentais e cognitivas.

A neurociência, segundo Damásio, separou o cérebro do corpo em vez de olhá-lo como parte de um organismo vivo e complexo, como um todo integrado, interna e externamente, que se constitui nas interações e retroações com o ambiente:

A serotonina faz parte de um mecanismo extraordinariamente complicado que opera no nível das moléculas, das sinapses, dos circuitos locais e dos sistemas, e no qual os fatores socioculturais, passados e presentes, têm também uma intervenção poderosa. (DAMÁSIO, 1996).

Do debate, ainda em andamento, pode-se depreender que são arriscadas as conclusões sobre causalidade única do comportamento suicida. As falhas concentram-se na incapacidade de reconhecimento da complexidade do comportamento humano e das circunstâncias múltiplas que envolvem o ato fatal.

As críticas são forjadas do interior da própria neurociência. Somadas aos contrapontos epistemológicos, as hipóteses que reduzem o comportamento suicida ao substrato biológico e restringem a terapêutica à química, devem enfrentar o fato desconcertante de que a crescente disponibilidade de medicamentos antidepressivos não tem sido acompanhada de redução significativa nas taxas de suicídio.

O efeito perverso do conhecimento altamente especializado é que as soluções decorrentes dele desabrocham probleCmas maiores. É inegável o progresso das neurociências, mas está claro que as lacunas de ignorância superam o já compreendido.

Talvez tenha chegado a hora do retorno às ciências humanas. A hora de desfazer a cisão entre a cultura científica e a cultura das humanidades, como sugeriram Charles Snow (1965), Edgar Morin (2002, 2004, 2006) e Edgard Carvalho (1999; 2003). Só há prejuízos com a incomunicabilidade reinante, tanto para o saber científico, quanto para o bem-estar da civilização. Por isso é urgente a religação dos saberes, o rompimento das fronteiras disciplinares, o fim da separação do par natureza/cultura.

O saber das neurociências devem encontrar-se com o saber das humanidades, para que uma não enxergue o comportamento humano como resultado de processos eletroquímicos e orgânicos, e a outra não veja só os determinantes culturais e minimize o biológico. O homem é natureza e cultura, ao mesmo tempo. Como diz Carvalho:

Natureza e cultura não constituem dualidades excludentes. São simultaneamente opostas e complementares. Nós, os primatas humanos, também somos assim: naturais porque inscritos numa complexa ordem biológica; culturais porqu e capazes de produzir, acumular e comunicar estratégias de sobrevivência e adaptação, a curto, médio e longo prazos, onde quer que nos encontremos. Em resumo, e a ideia é de Edgar Morin, somos 100% natureza e 100% cultura, seres vivos uniduais, carregamos conosco uma trajetória onto e filogenética milenar e, igualmente, um vasto acervo cultural constituído pela memória coletiva de espécie. (CARVALHO, 2009).

Se não podemos negar que serotonina, dopamina, noreprinefrina e acetilcolina contribuem para todos os aspectos da cognição e do comportamento, tampouco podemos esquecer que esses neurotransmissores atuam em sistemas acionados por outros sistemas, que envolvem, além de partes específicas do cérebro, razão e racionalidade (DAMÁSIO, 1996, 2000).

A operação desses sistemas desempenha papel importante no processamento das emoções, que resultam de um complexo jogo de interações entre organismo-mente-objeto. O cérebro recebe informações do corpo, e do que acontece com o corpo internamente, e também recebe informações da relação do corpo com o ambiente, com o objetivo de encontrar a melhor forma de acomodá-los um ao outro (DAMÁSIO, 1996). A interação do organismo com o ambiente se faz através das terminações nervosas do olho, olfato, paladar, audição e das sensa ções somáticas. Fluxos de informações carregadas eletroquimicamente se convertem em representações neurais, imagens internas, que podem ser visuais, sonoras, olfativas, organizadas num processo chamado pensamento.

O processamento das emoções só é possível porque existe um sistema neural que envia comandos do cérebro para o corpo todo por duas rotas, a corrente sanguínea e os neurônios. Ocorrem mudanças globais no organismo como resultado dos comandos químicos e neurais, mudanças profundas que desencadeiam comportamentos específicos como chorar, brincar, fazer amigos: desencadeiam emoções. (DAMÁSIO, 2000, p. 94-5).

As emoções são induzidas no organismo. Indutores de emoção são acessados pelos sentidos. O objeto, o ambiente, pode ser uma foto, uma música, uma pessoa querida. Do contato imediato, de memórias passadas, de memórias futuras prospectivas, substâncias químicas são ativadas, milhões de sinapses transmitem sinais para níveis superiores do sistema nervoso: o tronco cerebral, o tálamo, o córtex cerebral. (DAMÁSIO, 2000, p. 100-1).

Como se vê, Damásio rejeita a ideia de opor natureza e cultura. As emoções estão ligadas ao corpo e seu papel é auxiliar o organismo a conservar a vida. Como afirma, “as emoções são parte dos mecanismos biorreguladores com os quais nascemos equipados, visando à sobrevivência”. São reações específicas a situações indutoras advindas da cultura, da relação com o meio, que fazem o organismo regular sua sobrevivência. Natureza e cultura interagem, se complementam, se alteram mutuamente. (DAMÁSIO, 2000, p. 78).

Em 1962, Claude Lévi-Strauss, em O pensamento selvagem (1976) já se referia à necessidade de ultrapassar a oposição entre natureza e cultura, pensando-as como totalidade. Alguns neurocientistas hoje reafirmam as palavras do antropólogo francês, agora com o auxílio da tecnologia da ressonância magnética, da tomografia computadorizada, da eletroencefalografia digital.

A ideias que promovem a disjunção do biológico e da cultura são inaptas para explicar os comportamentos mais insignificantes do indivíduo, como a preferência por um doce ou salgado.

Aquilo que o indivíduo se torna, sua consciência, seu inconsciente, suas emoções, sua inteligência resultam da imbricada relação entre organismo e objeto, do registro de infinitas experiências, da formação de uma memória autobiográfica particular, da maneira como o organismo processa o meio físico, social, cultural (DAMÁSIO, 2000, p. 254-5).

Se a banal escolha de alimento envolve complexa interação do sistema nervoso central com as marcas genéticas do passado evolutivo, com a formação de imagens neurais ativadas por experiências sensórias, com a capacidade do cérebro de processar as imagens em forma de pensamentos, o que poderíamos pressupor ao buscar o entendimento de um ato complexo como o suicídio?

O erro de Descartes continua a influenciar o pensamento de neurocientistas contemporâneos. Convictos da separação corpo e mente, eles acreditam que a mente pode ser explicada em termos de fenômenos cerebrais. O organismo e o meio ambiente físico e social são desconsiderados.

Na medicina, desenrola-se uma das piores consequências da visão cartesiana, como aponta Damásio:

A divisão cartesiana domina tanto a investigação como a prática médica. Em resultado, as consequências psicológicas das doenças do corpo propriamente dito, as chamadas doenças reais, são normalmente ignoradas ou levadas em conta muito mais tarde. Mais negligenciado ainda é o inverso, os efeitos dos conflitos psicológicos no corpo. É curioso pensar que Descartes contribuiu para a alteração do rumo da medicina, ajudando-a a abandonar a abordagem orgânica da mente-no- corpo que predominou desde Hipócrates até o Renascimento. Se o tivesse conhecido, Aristóteles teria ficado irritado com Descartes. (1996).

Ainda bem que todas as áreas do conhecimento, sem precisar eliminar as especialidades, produzem seus outsiders, encarregados de

promover o diálogo entre os saberes, romper as barreiras disciplinares,