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A Revolução Abolicionista e a formação do Estado burguês

5 ESTADO: DIÁLISE E CATÁLISE DA TRANSIÇÃO

5.2 A Revolução Abolicionista e a formação do Estado burguês

Em 1988, no centenário da emancipação definitiva, Jacob Gorender percebera que “desde passeatas de rua a congressos acadêmicos, os eventos relacionados com a data se salientaram pela tônica da negação: não houve Abolição” (1991, p.5, grifos no original). O multifacetado movimento negro protestava duplamente contra a marginalização sofrida, em sequência, pelos negros e negras – ex-escravizados – e contra parcela da história pública143 que

devotara à Princesa Isabel o benemérito da liberdade, tornando essa interpretação hegemônica no “senso comum” (RIOS, 2012).

É possível atribuir algumas razões para esse sentido de ver as coisas. Em primeiro lugar, compete ao próprio processo de impedimento maciço do acesso às carreiras intelectuais impetrado à “população negra”, durante o século XX, a ausência de interpretações que fossem capazes de confrontar-se solidamente com a tendência revisionista da República que, buscando conciliar-se, em parte, com o período imperial, preferiu, evidentemente, atribuir à monarquia derrotada a libertação dos escravizados do que aos próprios. Essa consagração, no entanto, deparou-se com o desenvolvimento contraditório daquilo que buscava exaltar. “Agraciados” com a liberdade, os “negros” se tornaram alvos prioritários do reordenamento social republicano (VALERIO, 2019), especialmente no meio urbano, através da perseguição às suas práticas culturais e do encarceramento dos que resistiam ao aburguesamento do trabalho que, em definitivo, soava, senão idêntico, ao menos semelhante com a opressão escravista. A Revolta da Chibata, vinte e dois anos após a Abolição, não nos deixa mentir. Também concorre para a nossa argumentação a situação de vulnerabilidade, miséria e discriminação sofridos pela população negra e denunciados pelos protestos de 1988.

No que tange à compreensão sócio histórica, entretanto, outros motivos contribuíram, em paralelo à tese elitista, para recusar à Abolição o status de significativa transformação social. A análise de maior potência interpretativa que atesta o “desajustamento” entre a nova ordem social e a trajetória do “negro” é a oferecida pelo grande sociólogo Florestan Fernandes. Em síntese, Fernandes observara, através de um estudo baseado em pesquisa de campo na cidade de São Paulo, uma “integração deficiente” que dera origem a “um padrão de isolamento

143 O conceito de “história pública” diz respeito tanto à elaboração e difusão de teses e interpretações historiográficas realizadas pelos historiadores, enquanto profissionais deste campo científico, quanto da recepção e reelaboração pelo grande público das mesmas – ou sua formulação relativamente autônoma. Cf. CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. História Pública: uma breve bibliografia comentada. (Bibliografia Comentada). In: Café História – história feita com cliques. Disponível em:

<https://www.cafehistoria.com.br/historia-publica-biblio>. Publicado em: 6 nov. 2017. Acesso: 11 ago. 2019.

econômico e sociocultural do negro e do mulato, que é aberrante em uma sociedade competitiva, aberta e democrática” (2010, p.192, grifos no original). Sem dúvida, a perspectiva sociológica do professor da USP obteve uma das maiores recepções no movimento negro:

É por essa razão [a ausência de uma consciência coletiva capaz de superar o “dilema racial brasileiro”, P.G.P.] que continuamos a ver negros sofrendo dos problemas

seculares herdados de uma abolição dos escravos que abandonou à própria sorte uma massa de trabalhadores, assim como pobres brancos que, embora passem longe

dos problemas de preconceito, discriminação ou racismo, não têm poder para enfrentar as relações desiguais entre patrões e empregados144.

O profundo debate que esta acepção merece será realizado no último capítulo. Por ora, compete-nos afirmar que certo idealismo positivista rege, mesmo que de maneira extremamente sutil, tais conclusões. Em outras palavras, encarregar a “ordem social competitiva”, ainda que em tom de agitação política – que não era o caso – a incumbência de evitar – ou, num exercício futuro, eliminar – aberrações, desajustes ou deficiências é conferir à sociedade burguesa, a qual tal ordem condiciona, a capacidade de tornar-se tudo aquilo que ela, dialeticamente, não é: igualitária.

É esse suposto igualitarismo competitivo que pleiteia que a Abolição tivesse sido outra coisa diferente daquilo que ela “realmente foi”145: um processo eivado de contradições no qual todas as classes sociais da ordem escravista participaram direta ou reflexamente e, a partir do qual, se reorganizaram. Sob a ótica que trabalhamos neste estudo, o desfecho final da dissolução do escravismo que, enfim, suprimia a dicotomia entre a “ordem dos livres” e a “ordem dos escravos” (SAES, 1985, p.82), abrindo margem para a plena edificação das relações sociais burgueso-classistas. Em outras palavras, uma revolução.

A Revolução abolicionista ou antiescravista é o consequente teórico-interpretativo da passagem de um modo de produção a outro e, igualmente, da “transformação do tipo e da natureza de classe do Estado brasileiro” (SAES, 1985, p.185). Considerando que “o desenvolvimento da luta de classes até o seu limite máximo (uma situação revolucionária)

144 NUNOMURA, Eduardo. Florestan Fernandes: a luta negra é de todos. In: Geledés – Instituto da Mulher Negra. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/florestan-fernandes-luta-negra-e-de-todos/>, grifos nossos. Publicado em 28 jun. 2017. Acesso em 11 ago. 2019.

145 “A atmosfera na qual os pais da história começaram a trabalhar estava impregnada de mitos. Sem o mito, na verdade, eles nunca teriam conseguido iniciar seu trabalho. O passado é uma massa desconexa e

incompreensível de dados incontados e incontáveis. Ele só pode tornar-se inteligível se for feita uma seleção em torno de um ou mais focos. Em todos os infindáveis debates gerados pelo wie es eigentlich gewesen (como as coisas foram realmente), de [Leopold von] Ranke, uma primeira pergunta é frequentemente esquecida: que ‘coisas’ merecem ou exigem consideração para se definir como elas ‘foram realmente’? Muito antes de alguém sequer sonhar com a história, o mito deu uma resposta. Essa era sua função, ou melhor, uma de suas funções: tornar o passado inteligível e compreensível selecionando e focalizando algumas partes dele, que, desse modo, adquiriram permanência, relevância e significado universal”. FINLEY, M. I. Uso e abuso da História. Trad.: Marylene Pinto Michael. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p.5.

determina o colapso da função política fundamental do Estado” (p.146), quer dizer, o aprofundamento da luta entre proprietários rurais e escravizados rurais, como observado no intervalo entre 1885 e 1888 (em particular nos dois últimos anos), um modo de produção hegemonicamente dominante e, portanto, determinador do caráter de classe do Estado, só pode ser dissolvido por um processo revolucionário.

Num pequeno ensaio a convite da histórica Editora Brasiliense, Jacob Gorender, versando acerca das características particulares d’A Burguesia Brasileira considera “a extinção das relações de produção escravistas, no Brasil, um evento revolucionário. Ou, dito de maneira mais taxativa: a Abolição foi a única revolução social jamais ocorrida na História de nosso País” (GORENDER, 1981, p.21, grifos no original)146. Anos mais tarde, em entrevista concedida à Revista Arrabaldes afirmaria que “o que a revolução burguesa precisava fazer foi feito pela Abolição. A Abolição desimpediu o caminho para o desenvolvimento do capitalismo. Juridicamente, não havia muita coisa mais a realizar”147. Entretanto, “pode-se objetar: mas a Abolição deixou o latifúndio intocado. É verdade. E não poderia ser de outra maneira, por dois motivos principais:

1º) A possibilidade de efetivação da reforma agrária seria concebível somente se já existisse um movimento camponês capaz de lutar por ela em aliança com o movimento abolicionista. Ora, como se sabe, o abolicionismo não encontrou apoio em nenhum movimento camponês.

2º) A mais elevada forma de luta dos escravos consistiu na fuga das fazendas, o que se deu sobretudo em São Paulo, a região do escravismo mais próspero dos anos 80 do século passado. Em consequência, ao abandonar as fazendas, os escravos se incapacitavam para a luta pela posse da terra, apesar de manifestarem aspiração nesse sentido. (1981, p.21-22)

Como que animado cientificamente pela tarefa de dar profundidade teórica e empírica às assertivas de Gorender, Décio Saes empreenderá, na segunda parte de sua obra, a mais elucidativa análise do processo revolucionário da Abolição no cerne do materialismo histórico brasileiro. Sua análise baseia-se, primordialmente, na distinção entre força principal e força dirigente, elaborada por Mao Tsé-Tung148. Importa recuperá-la:

146 Em O Escravismo Colonial, o autor já havia ensaiado essa concepção ao afirmar que “que foi em São Paulo, precisamente, onde o movimento abolicionista aplicou sua tática mais revolucionária e logrou penetrar no interior das senzalas, ativar os próprios escravos e organizar suas fugas em massa. (1980, p.568-569) e, mais adiante, ao tratar do papel de Antonio Bento, classificá-lo enquanto “ação de organização abolicionista revolucionária” (p.571). Na mesma obra tratará, em linhas gerais, do fim dos direitos feudais sobre a terra em Portugal, como uma “revolução liberal-burguesa”, durante o século XIX (p.378), distinguindo-a da

“revolução nacional” do século XIV (passim).

147 “Jacob Gorender. Uma Vida de Teoria e Práxis”. Revista Arrabaldes. Ano l, n. 92, set/dez/1988. Entrevista concedida no dia 7 de agosto na cidade de São Paulo. Disponível em:

<https://www.marxists.org/portugues/gorender/1988/08/16.htm>. Acesso em 12 ago. 2019.

148 “A guerra revolucionária na China, que começou em 1924, já passou por duas fases: a primeira, de 1924 a 1927, e a segunda, de 1927 a 1936; agora começa uma nova fase, a da guerra revolucionária nacional contra o Japão. No decurso dessas três fases, a guerra revolucionária tem-se desenrolado sob a direção do

Por força principal, designamos aqui a classe social capaz de deflagrar, numa determinada conjuntura, uma ação coletiva de massa, sem a qual é impossível – dado o número, a força material e a combatividade dos seus membros – uma determinada transformação política; por força dirigente, designamos o conjunto de agentes capazes de definir o objetivo político dessa ação, bem como de organizá-la de modo politicamente eficaz (SAES, 1985, p.51 [nota 36]).

O cientista político identifica, para o primeiro grupo, os escravizados rurais, por se constituírem, enquanto classe social (no interior da ordem dos escravos), na força antagônica da “contradição principal” – categoria de análise também elaborada por Mao – da formação social escravista, diametralmente oposta aos proprietários rurais. Para o segundo, a classe média urbana que fora capaz de conferir, na prática, unidade ao “processo de transformação superestrutural” (p.297). Ainda que, de alguma forma, todas as classes sociais no geral e, todos os indivíduos, no particular, tivessem se colocado diante da principal questão nacional do século XIX, tamanha a ebulição social que o movimento abolicionista provocara – os exemplos não faltam na historiografia: clubes abolicionistas, comícios liderados por mulheres, os caifazes no Ceará, etc., etc. (COSTA, E., 2010) – foi a rebelião dos escravizados rurais contra os proprietários rurais, especialmente em São Paulo, o epicentro da revolução abolicionista, pois “[...] embora o caráter da contradição fundamental no processo de desenvolvimento de uma coisa ou de um fenômeno e a essência do processo permaneçam inalterados, a contradição fundamental se acentua progressivamente a cada etapa desse longo processo” (MAO, Apud SAES, 1985, p.269).

proletariado chinês e seu respectivo partido, o Partido Comunista da China. Na guerra revolucionária na China, os nossos inimigos principais são o imperialismo e as forças feudais. Em momentos históricos determinados, a burguesia chinesa pode participar na guerra revolucionária; contudo, em razão do seu egoísmo e da sua falta de independência política e económica, ela não quer nem pode conduzir a guerra revolucionária na China à vitória completa. Na China, as massas camponesas e as da pequena burguesia

urbana querem participar ativamente na guerra revolucionária e conduzi-la à vitória completa. Elas constituem as forças principais na guerra revolucionária; mas pelo facto de serem pequenos produtores, elas têm uma visão política limitada (entre os que não têm trabalho, alguns há que alimentam ideias anarquistas), não podendo portanto dirigir corretamente a guerra. Por consequência, numa época em que o

proletariado fez já a sua entrada na arena política, a responsabilidade da direção da guerra revolucionária na China não pode deixar de repousar sobre os ombros do Partido Comunista da China. Em tal época, (toda a guerra revolucionária que não é dirigida pelo proletariado e pelo Partido Comunista ou que escapa à sua direção está votada à derrota). De todas as camadas sociais da China semicolonial, de todos os seus agrupamentos políticos, só o proletariado e o Partido Comunista desconhecem a estreiteza de espírito e o egoísmo, têm a visão política mais rasgada, o grau de organização mais elevado e, além disso, são os únicos que podem aceitar com o máximo de sinceridade os ensinamentos da experiência ganha pelo proletariado de vanguarda do mundo inteiro e pelos respectivos partidos políticos, e servir-se disso em benefício da sua própria causa. Por todas essas razões, só o proletariado e o Partido Comunista são capazes de guiar os camponeses, a pequena burguesia urbana e a burguesia, de superar a estreiteza de espírito dos camponeses e da pequena burguesia, a propensão à destruição das pessoas privadas de trabalho e ainda (na condição de o Partido Comunista não cometer erros na sua política) as oscilações e a inconsequência da burguesia, conduzindo a revolução e a guerra até à vitória”. (Obras Escolhidas de Mao Tsetung. Tomo I, pág: 295- 430. Edições em Línguas Estrangeiras, Pequim, 1975, grifos nossos. Disponível em:

Em outras palavras, a dinâmica urbana de emancipação através das alforrias, fugas e etc. não alterava a dinâmica rural, uma vez que aos escravizados rurais estava vedado o acesso ao peculium através do qual os escravizados-ao-ganho da cidade poderiam acumular erário suficiente para a aquisição da liberdade. Quer dizer, a completa extinção da presença urbana de escravizados não teria qualquer impacto sobre a continuidade da escravidão no meio rural, desde que os plantadores fossem capazes de garantir o domínio sobre seu plantel149 e, ao mesmo tempo, impedir a dissolução do direito escravista na materialidade do Estado. O contrário se mostrou impossível. A ação combinada do movimento urbano-popular abolicionista com o levante revolucionário dos escravizados rurais esvaziava, simultaneamente, as fazendas e as moradias urbanas de suas propriedades – alvoraçando ainda mais a luta urbana – e obrigou o bloco no poder a admitir a derrota política, por meio da Lei 3.555 de 13 de maio de 1888:

[...] o Projeto João Alfredo – Abolição incondicional e imediata da escravidão, sem indenização aos proprietários – foi aprovado no Congresso imperial, como voto contrário de uma única província: a do Rio de Janeiro. Significaria isso que a extinção geral legal da escravidão constituiu uma vitória para as classes dominantes brasileiras? Ao contrário: ao aceitar encaminhar, pela via parlamentar, a medida que lhe era imposta pelo movimento antiescravista, tais classes reconheceram a sua derrota

política diante desse movimento. Segundo o Conselheiro Paula Souza, era difícil, para

essas classes, deixar de reconhecer essa derrota: em janeiro de 1888, de 100 fazendas paulistas, 80 já não contavam mais com escravos, que haviam fugido para as cidades ou procurado os aliciadores. O encaminhamento parlamentar da Abolição não representou portanto, uma concessão destinada a desorganizar politicamente o movimento antiescravista, e sim a consagração jurídica, por parte das classes dominantes escravistas, de sua derrota política diante do movimento antiescravista (SAES, 1985, p.250, grifos no original).

Entretanto, por que “o abolicionismo não encontrou apoio em nenhum movimento camponês”, apesar dos escravizados “manifestarem aspiração” à posse da terra como asseverou Gorender? Décio Saes oferece resposta formidável, mais uma vez fundamentado no instrumental científico do materialismo dialético. O autor percebe uma mudança qualitativa na luta dos escravizados no que diz respeito à estruturação de novos quilombos na fase final do abolicionismo. De estratégia, passou a tática. Isto é, a força dirigente da revolução antiescravista, ao organizar levantes, rebeliões e fugas de fazendas, “propunha aos escravos em revolta que lutassem para se transformar em ‘cidadãos’ (sujeitos de direitos); e isto implicava – como sabiam os abolicionistas – que os ex-escravos conquistassem a condição de trabalhadores ‘livres’ (i. é., assalariados)” (p.280). Assim sendo, os grandes últimos quilombos, como o de Jabaquara, se caracterizaram por sua provisoriedade, uma vez que o destino final

149 Vimos acima como a negativa do Exército em desempenhar essa função aprofundou a crise institucional da escravidão nos aparelhos de Estado.

dos libertos deveria ser, ao menos em sua maior parte, a cidade150. Em suma, a ausência de um movimento camponês bem organizado com capacidade de dirigir o processo revolucionário, bem como, a igual ausência de um movimento protocamponês no interior da população escravizada, enfraqueceu as propostas parlamentares existentes de reforma agrária, impedindo- as que fossem apensadas à Abolição.

Mas, por que interessava à classe média, para além da difusão moral de um sentimento emancipacionista ou humanista, a transformação dos escravizados em cidadãos e assalariados que, afinal, se tornariam seus concorrentes? Ou, indagando o processo histórico de outro modo, por que a formação do Estado burguês no Brasil não se encerra na dissolução do direito escravista com a Lei Áurea, estendendo-se, na interpretação de Saes, até a Proclamação da República e a Assembleia Constituinte de 1891, uma vez que “a força principal do processo – as massas escravas rurais – [...] abandonaram a cena política após o cumprimento da primeira etapa: a Abolição” (p.297)? Merece nossa atenção a longa argumentação de Décio Saes:

Para destruir a relação de favor e evadir-se da condição de homem livre protegido pelas classes proprietárias, o trabalhador não-manual do Império deveria lutar pela instauração da possibilidade de verificação, segundo os critérios fornecidos pela

ideologia burguesa – portanto, uma verificação falsa, mas que produz efeitos práticos reais – de sua superioridade, no plano da capacidade individual, sobre o trabalhador

manual. Ou seja: era preciso que o trabalhador não-manual pudesse provar (segundo critérios falsos), a todas as classes sociais e a si mesmo, que o trabalhador manual detinha uma posição social inferior por ser individualmente menos capaz, e não por qualquer razão alheia à esfera dos “dons” e “méritos”. Mas para que se criasse essa aparência de competição, era indispensável liquidar a escravidão, e igualizar formalmente os membros de todas as classes sociais mediante a sua conversão em

sujeitos de direitos (“cidadãos”). Usando uma metáfora: só a partir da instauração do

direito burguês pareceria existir uma competição, pela conquista das ocupações não- manuais, onde o ponto de partida seria o mesmo (igualdade jurídica) para todos os concorrentes. É claro que, nessa luta pela valorização do trabalhador não-manual, a “classe média” imperial teria de se opor não apenas à persistência do direito escravista, como também à conservação de um modo pré-burguês de organização do aparelho de Estado. Se essa classe lutasse para que a capacidade individual fosse socialmente considerada como se fosse o requisito fundamental para o desempenho de tarefas não- manuais privadas, deveria também lutar para que as regras de recrutamento e promoção, dentro do Estado, se identificassem formalmente a esse princípio. Raciocinemos por absurdo: se, após a Abolição da escravidão, fosse mantida a interdição formal de acesso dos membros da classe dominada fundamental ao aparelho de Estado, seria difícil que se criasse a ilusão de que, na estrutura econômica, a distribuição dos homens por entre ocupações manuais e não-manuais estaria obedecendo ao critério da capacidade individual. Por isso, parte da classe média imperial lutava tanto pela extinção legal da escravidão quanto pela reorganização burguesa do aparelho de Estado; o seja, é por isso que essa fração era tanto “abolicionista” quanto “republicana” (entendido, aqui o republicanismo num sentido amplo; isto é, como algo distinto do republicanismo das classes dominantes). Para promover a valorização do trabalhador não-manual, parte da classe média imperial foi levada a lutar pela transformação burguesa do Estado: e foi a única força social – justamente por se constituir em força dirigente – que teve consciência da unidade 150 O fomento, a organização e a agitação da força dirigente do movimento abolicionista no espaço urbano

existente entre as etapas do processo de transformação superestrutural. Na verdade, foram os seus objetivos políticos, decorrentes de sua crítica à desvalorização do trabalhador não-manual no escravismo, que conferiram unidade ao processo, determinando a passagem de uma etapa à etapa seguinte... (p.297, grifos no original)

Esta explanação suscitaria controvérsias se admitíssemos que à classe média (ou setores intermediários, como veremos adiante) bastava aceitar sua condição desigual diante dos não elegíveis para as tarefas do Estado (os escravizados), reconhecendo o favor como único critério de acesso às carreiras oficiais e à empregabilidade. No entanto, por um critério quantitativo, o favor, enquanto relação pessoal e clientelista, não confere as mesmas chances à toda a classe média. Se aqui encerrássemos nossa exposição, a sociologia weberiana teria razão em contrapor a permanência das relações interpessoais como critério de acesso ao Estado acima de