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3 ESCRAVISMO VERSUS CAPITALISMO NA FORMAÇÃO SOCIAL

3.1 Do “sentido da colonização” à dependência

O debate inaugurado por Caio Prado Júnior acerca de um possível “sentido” da colonização portuguesa nas Américas ainda anima a dedicação de pesquisadores contemporâneos. Aparentemente descartado pelas contribuições de Fragoso (1988), Fragoso e Florentino (2001) e mesmo pelas críticas que Gorender (1980, p.507) dirigiu ao uso do conceito, outros autores buscaram, recentemente, trazê-lo de volta à cena, argumentando sua validade interpretativa desde que afastada suas tendências teleológicas (que encontraram em Fernando Novais certa radicalidade). Este é o caso de Iraci Costa, João Paulo de Souza e Rodrigo Alves Teixeira que, em publicação conjunta, dedicam alguns capítulos para alinhavar essa questão (PIRES; COSTA, 2010).

A discussão que ora travamos sobre a formação social brasileira requer que tangenciemos, de forma rápida, as contradições suscitadas pela ideia de um sentido da colonização. Enquanto que em Caio Prado a expressão significa um processo que possuía um “objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem o interesse daquele comércio” (2011, p.15), para Novais, “apresenta-se como peça de um sistema, instrumento da acumulação primitiva, da época do capitalismo mercantil” (1977, p.33). Isto é, se para o primeiro, sentido “se percebe não nos pormenores da sua história, mas no conjunto dos fatos e acontecimentos essenciais que a constituem num longo período de tempo” (PRADO JÚNIOR, 2011, p.15), para o segundo, apresenta-se como “elemento constitutivo no processo de formação do capitalismo moderno” (NOVAIS, 1977, p.33).

De acordo com Teixeira (In: PIRES; COSTA, 2010, p.158-160), Prado Júnior aproxima- se da postura metodológica de Marx, pois compreende em sua formulação a noção de que é somente com um distanciamento no tempo que se pode apreender o desenrolar histórico de uma sociedade a partir de seus elementos duradouros que tenderam a se repetir. Assim, enquanto que para Novais haveria um telos definido a priori – a constituição do capitalismo industrial – , Prado Júnior “busca dar uma significação teórica, ou seja, encontrar a essência que move [...], por exemplo, os sucessivos ‘ciclos’ de produtos de exportação” (p.160).

Teixeira, Costa e Souza cotejam ainda as investigações de Fragoso e Florentino ressaltando a importância dessas análises que revelaram a capacidade de uma reprodução autônoma da economia brasileira, prescindindo eventualmente, nos séculos XVIII e XIX, de uma conjuntura favorável do mercado internacional. Entretanto, comungam da concepção que

tais autores teriam seus limites teóricos ao apartarem o estudo da estrutura produtiva brasileira da integração ao sistema econômico que lhe é mais amplo. Além disso, no que diz respeito à caracterização da produção, Fragoso e Florentino optam pela utilizam do conceito marxista de formação social – “sistema agrário escravista” – sem, no entanto, definirem qual ou quais modos de produção conformariam tal formação.

Finalmente Teixeira e Souza valem-se do entendimento de Pires e Costa de que se há um sentido – ainda que compreendido a posteriori – este seria a da “constituição da periferia do sistema capitalista mundial” (TEIXEIRA. In: PIRES; COSTA, 2010, p.155), tendo sido o escravismo, portanto, “um desdobramento do capitalismo, a maneira como a forma capital surge na periferia do sistema e como ela incorporou as colônias na divisão internacional do trabalho”. (p.216). No capítulo anterior mereceu nossa crítica esse tipo de interpretação, que no caso dos autores em questão, por tratarem do período colonial através da ação de um capital distinto, o “capital escravista-mercantil”, pavimentam uma nova vertente do integracionismo – apontado por Gorender como um equívoco teórico – baseando-se na ideia de que somente no capitalismo poderíamos ter um modo em que a produção estivesse voltada para a valorização do capital, ou mais detalhadamente, para a extração de mais-valor.

Quando Pero Vaz de Caminha relata que, nesta terra, “querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem” (2002, p.73) – mesmo que a primeira semente a ser lançada pela Sua Alteza fosse salvar, para a fé cristã, aquela gente que aqui habitava – fica claro o vínculo que é sugerido ao monarca português com as terras encontradas ao oeste após missão confiada a Pedro Álvares Cabral de confirmar sua existência. O objetivo da Coroa portuguesa, após expulsar os franceses do Rio de Janeiro era, por meio de um empreendimento colonial (e plantacionista), assegurar a posse dos domínios americanos que já haviam sido declarados pela Inter coeterae revistos pelo Tratado de Tordesilhas. Comum acordo entre a realeza, a aristocracia e a burguesia mercantil. Nestes termos, o “sentido da colonização”, em seus mais primórdios períodos, congraça-se com o objetivo dos portugueses: produzir mercadorias que pudessem ser vendidas na Europa, gerando lucros para os diversos agentes envolvidos em todo o processo e tributos para a Coroa.

A trajetória histórica da colonização revelou, na prática, que outros personagens, em nuances completamente distintos, disputariam tal sentido: jesuítas, quilombolas, indígenas, etc. E, à medida que a elite colonial perdia sua lusitanidade, reconhecendo na intermediação do estado português um entrave à obtenção de lucro maiores, tal objetivo seria, por assim dizer, interiorizado ou nacionalizado. A independência e a constituição de um estado nacional brasileiro significaram, então, a mediação necessária entre a manutenção de uma territorialidade

que, comungando as elites num objetivo comum, reclamam a permanência da estrutura social fundamental: a escravidão, o acesso à terra e a realização de suas mercadorias na Europa (GORENDER, 2000).

Com efeito, diversas atividades econômicas aqui tiveram palco no decorrer dos séculos em que o Brasil fora colônia de Portugal, não se restringindo à plantagem escravista. Por outro lado, inúmeros ramos dessas atividades contavam com o trabalho de africanos e africanas escravizados. Não é nosso interesse discorrer sobre todas elas, incumbência que já foi alvo de notáveis estudos historiográficos43. Todavia, do ponto de vista estrutural, que é o que nos

interessa aqui, torna-se relevante que nos envolvamos na caracterização da economia brasileira até o processo de transição ao qual nos remetemos como principal objetivo de nossa pesquisa.

Estamos diante de níveis distintos de análise e compreensão da realidade, nos quais a categoria marxista de totalidade impõe seu emprego. Em primeiro lugar, é forçoso admitir que no encadeamento entre o desenrolar dos processos históricos e a territorialidade inerente a eles, consideramos como economia brasileira um espaço geográfico que, frente à evolução das forças produtivas coloniais em disputa com seus antagonistas históricos, se expandiu continuamente: ocupando inicialmente as faixas litorâneas do atual Nordeste e Sudeste, estendeu-se até ultrapassar o limite de Tordesilhas – o que obrigou à negociação que levou à assinatura do Tratado de Madri em 1750 – atingindo, finalmente, em 1903, os limites atuais com a compra do Estado do Acre perante a Bolívia. A essa expansão territorial da América Portuguesa e, posteriormente, da República Federativa do Brasil, corresponde uma evolução histórica das atividades produtivas e do quantitativo populacional dedicado a elas. Desse modo, ao buscarmos uma definição daquilo que denominamos por formação social brasileira, devemos priorizar os elementos, senão permanentes, ao menos essenciais que, apesar das transformações constatadas ao longo dos séculos, tenderam a particularizar o Brasil diante de outras formações, mesmo guardando semelhanças com muitas delas.

O primeiro nível de análise a ser considerado nesse processo é o Estado português. É ele, encarnando a aglutinação dos interesses econômicos da aristocracia e da burguesia lusitanas, que promoverá o empreendimento colonial. Este estado não é um estado qualquer,

43 Cf. PRADO JR. História Econômica do Brasil. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1982; SODRÉ, N. N. W.

Formação Histórica do Brasil. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 1987; FURTADO, C. Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1967; ARRUDA, J.J.A. História de São Paulo nos séculos XVI-XVII. São Paulo, Imprensa Oficial/POIESIS, 2011; MONTEIRO, J.M. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo, Companhia das Letras, 1994; FREITAS, D. O Quilombo dos Palmares. Porto Alegre, Fundo Editorial, 1994; COSTA, F.A. “A economia colonial do

Grão-Pará: uma avaliação crítica (1720-1822)”. Revista Economia e Sociedade, 2012, v. 44, N.23 p.197-219. Disponível em: <https://econpapers.repec.org/article/eucancoec/v_3a44_3ay_3a2012_3ap_3a197-219.htm>. Acesso em 09 jan. 2020.

mais um “estado moderno”, como atesta Gorender44: “Portugal já dispunha de fronteiras definitivamente estabelecidas, estava isento de graves questões nacionais internas e contava com um poder estatal em processo de vigorosa centralização”. (1980, p.119). Tais características serão fundamentais na manutenção das possessões ultramarinas, especificamente as americanas, diante dos diversos entraves que terão palco ao longo do período colonial, oriundos de diversas naturezas: disputas intercolonialistas (França, Espanha e Holanda); enfrentamento contra estruturas até então “internas” e partícipes da colonização, como os jesuítas; resistência heroica dos quilombolas, dos indígenas e tantas outras formas de reação ao trabalho compulsório e à perda dos territórios originais; relutância dos colonos já “brasileiros” ao pagamento das taxas e impostos, etc. A reiteração da força organizativa deste Estado imporá, ainda, a persistência do objetivo central da colonização conservado e renovado pelas elites nativas – a realização da produção em solo europeu. Visto exclusivamente por este ângulo, o estado português e, derradeiramente, o estado brasileiro serão os principais sustentáculos do sentido pradiano.

Um segundo nível, ou um subnível do Estado português, se expressa na forma que este estado moderno adquirirá em solo brasileiro, evidenciadas nas características que assumirão as câmaras municipais e o Governo Geral. Enquanto este consistia num mecanismo da Coroa portuguesa para assegurar ao mesmo tempo a possessão colonial, o recolhimento dos impostos devidos e fornecer estrutura administrativa e militar para a elite colonial diante do rechaço das confederações indígenas, aquilombamentos e inúmeras pequenas insurreições dos fidalgos da terra ou da arraia miúda, as câmaras municipais eram o que se poderia chamar mais claramente de “governo local”: formada por “homens bons”, tinham por função organizar a administração das vilas e cidades que se ergueram no Brasil. Eleitos apenas entre os grandes proprietários de terra, tais homens eram, ao mesmo tempo, escravistas e governantes, fato que, aos poucos, delineia o caráter da estrutura de poder manifestada no Brasil, atingindo, porventura, a contradição entre os interesses locais e os reinóis45.

O terceiro nível (ou o segundo sub nível da primeira), que deve ser entendido vinculados aos anteriores por fazer parte da estrutura “moderna” dos estados, é a Igreja Católica. Componente idealizador e ideólogo da colonização, a Igreja será responsável por diversos

44 “A classe senhorial continuava classe dominante, mas rejuvenescida: uma parte da velha nobreza, aliada ao inimigo nacional [tentativa de usurpação castelhana entre 1383-1385], tinha sido alijada e substituída por elementos enobrecidos procedentes da burguesia. Por sua vez, a burguesia rural e mercantil, sem ter se alçado à dominação de classe, galgou situação mais influente, beneficiando-se da aliança com a Coroa”.

(GORENDER, 1980, p.119)

45 Cf. SALGADO, Graça (coord.) Fiscais e meirinhos: a administração no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Pró-Memória/ Instituto Nacional do Livro, 1985.

meandros da vida colonial, desde os mais afeitos à sua estrutura religiosa, como a catequese de índios e africanos escravizados e a presença da Inquisição na América, etc, até os pormenores administrativos da governança, sem esquecer, evidentemente da responsabilidade pela sedimentação de práticas culturais e da emergência de distintas religiosidades, resultados do amálgama entre fazeres africanos, europeus e indígenas46.

Para que passemos, então, à compreensão da totalidade é preciso articular tais níveis, designados tradicionalmente como superestrutura, ao nível da estrutura, ou em outros termos, ao nível da produção. Como salientado anteriormente, filiamo-nos à tese de Gorender que afirma a originalidade distintiva do escravismo colonial diante dos outros modos de produção. Assim sendo, articulando-nos com os debates propostos pela TS-M, vimos afirmando a inter- relação dos mercados colonial e europeu, nos quais variadas mercadorias tinham sua realização. É imperioso lembrar que Jacob Gorender, nas Reflexões Metodológicas de sua obra, afirmou claramente: “[seu] objeto, estritamente limitado, é o modo de produção escravista colonial. Por conseguinte, somente o fundamento da formação social escravista, não toda ela”. (1980, p.25, grifos no original). De circunstancial valor para o prosseguimento de nossa explanação, optamos por transcrever o trecho completo. Segue Gorender:

Uma vez que o autor tem consciência da distinção entre modo de produção e

formação social, seria descabido imputar-lhe a deformação economicista na

abordagem de um objeto do domínio da economia política. O que se deu foi, aliás, algo bem diverso, conforme constatará o leitor: a abordagem do modo de produção sob o tríplice enfoque da economia política, da ciência histórica e da sociologia. À conclusão de Octavio Ianni sobre a especificidade da formação social escravista e da

sua diferença categorial com relação à formação social capitalista, a esta

acertadíssima conclusão devo acrescentar que o fundamento da especificidade reside

no modo de produção que a formação social escravista teve por base. O estudo deste

modo de produção não constitui, por isso, opção preferencial ou questão de detalhe, mas necessidade metodológica prioritária. De outra maneira, escapar-nos-á a própria especificidade, o que, em alguma medida, ainda me parece ocorrer com o próprio Ianni. (GORENDER, 1980, p. 25, grifos nossos.)

Os trechos por nós grifados resumem, cabalmente, a serventia do uso do conceito de modo de produção em sua denominação específica, o escravismo colonial, para a formação social escravista que aqui optamos por chamá-la de brasileira. Gorender, em momento algum de sua obra, abandonou a perspectiva de que se edificara a partir da colonização uma formação social também nova, sustentada por um particular modo de produção. Ademais, o historiador brasileiro não abdicou de notar que, em tal formação, coexistiram outros modos de produção, privilegiando, no entanto, por “necessidade metodológica prioritária”, o modo hegemônico, ou

46 Cf. SOUZA, Laura de Melo e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no

aquele que tinha conferido sentido – por força do termo – à formação social escravista, delimitada, na “modernidade” da colonização, por um Estado e por um território. Posto isto, afastamos em definitivo, para a continuidade deste trabalho, as críticas dirigidas à Gorender que o acusam de estreitar o estudo das atividades econômicas que tiveram palco no Brasil desde 1500 somente à plantagem, bem como aquelas que afirmam que a investigação do autor ignora o conceito de formação social e a articulação com o mercado internacional (e consequentemente com outros modos de produção em evolução histórica).

Como também não é nossa tarefa realizar aquilo que, pelo limite de sua proposição, o próprio Gorender não realizou – visto ainda que tantas outras investigações historiográficas proporcionarem vasto e objetivo entendimento das características das outras atividades econômicas e demais aspectos da formação social escravista – cabe-nos apenas tecer algumas considerações gerais sobre a co-ocorrência do escravismo e do capitalismo a níveis internos e externos (tendo como referência os Estados modernos), lindando o momento histórico em que tais modos de produção alteram suas relações de hegemonia em ambos os níveis sugeridos47. Tal dissertação nos conduzirá, enfim, a uma inspeção mais detalhada da segunda metade do século XIX, a partir da qual esperamos arquitetar elementos eficientes para o exame do que denominamos por transição dependente do escravismo ao capitalismo (ou transição do escravismo colonial ao capitalismo dependente).

Fernand Braudel percebera que havia algo de desacertado com rendimento dos engenhos açucareiros no século XVII: “como dispomos de contabilidades pormenorizadas, podemos desde já afirmar que o engenho de açúcar brasileiro não é em si uma aplicação excelente. Os lucros, calculados com certa verossimilhança, elevam-se a 4 ou 5%”. (BRAUDEL, 1996, p.237- 239) O autor encontra a explicação para tal fato precisamente naquilo que diferenciou o escravismo do capitalismo:

E há contratempos. Nesse mundo à antiga, apenas o senhor de engenho está envolvido na economia de mercado: comprou escravos, contraiu empréstimos para construir o engenho, vende a colheita e por vezes a colheita de pequenos engenhos que vivem à sua sombra. Mas está, por sua vez, sob a dependência dos mercadores, instalados na cidade baixa de São Salvador ou em Recife, perto da cidade senhorial de Olinda. Por meio deles, está ligado aos negociantes de Lisboa que adiantam os fundos e as mercadorias [...]. É o comércio da Europa que controla a produção e a venda de além- mar. (p.239)

47 Como ficará demonstrado ao longo de todo o trabalho, compreendemos “hegemonia” tal qual Lenin e Gramsci a compreenderam, isto é, em diversos âmbitos da sociedade, desde o controle e propriedade das forças produtivas até o exercício do poder no Estado, passando pelos mecanismos político-ideológicos de dominação. Cf. GRUPPI, Luciano. O conceito de hegemonia em Gramsci. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978; LENIN, Vladmir. Que Fazer? Problemas candentes do nosso movimento. Tradução, Marcelo Braz. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

O processo de produção descrito por Braudel revela a incompatibilidade de imputar às “fazendas da América” o ato de serem “criações capitalistas por excelência”. Quando o autor elucida que “o dinheiro, o crédito, os tráficos, as trocas ligam-nas à margem oriental do oceano [Atlântico]” (p.235-236), isto significa, em verdade, que a plantagem escravista é uma criação do capital comercial48 (se quisermos nomear um capital envolvido) e não de um modo de

produção, muito menos, o “especificamente capitalista”, nas palavras de Marx. O “contratempo” braudeliano é, antes de tudo, a racionalidade inerente à produção escravista colonial, o que prova a inconsistência em afirmar que “apenas o senhor de engenho está envolvido na economia de mercado”, não porque as demais etapas não envolvessem necessariamente algum tipo de mercado, mas porque Braudel supõe, ao fazer essa afirmação, que a economia de mercado deveria ser uma economia capitalista de mercado, daí, evidentemente, na ausência de trabalhadores livres assalariados e, sumariamente, de um ciclo capitalista do capital, somente o senhor de engenho seria um capitalista num “mundo à antiga”. A captura do escravizado – um capital-dinheiro “reposto à custa do excedente a ser criado pelo mesmo escravo” (GORENDER, 1980, p.191) e não um capital-fixo – por sua vez, pertence também à economia desse mercado triangular atlântico, conquanto aceitemos que sua “produção” seja seu próprio rapto, não por ser “uma espécie de repositório de milhares de horas- trabalho despendidas por toda a [sua] comunidade [de origem]”, como querem Fragoso e Florentino (2001, p.147) – o que, segundo tais autores, permitiria sua venda abaixo do custo social de produção – mas antes por envolver nessa troca um equivalente que não tem a ver somente, ou quase nada, com o “fabrico do ser”, como se o escravizado fosse um meio de produção, mas ao custo da empresa traficante: navios, homens, alguma troca ou pagamento aos captores. Ao final, não há nem troca de não-equivalentes nesta transação, uma vez que, por meio da violência, a comunidade da qual o escravizado foi aprisionado não recebe absolutamente nada (GORENDER, 1980. p.137-138). Desse modo, mesmo que concordemos com Alves, para quem “o valor do escravo deve ser calculado tendo em vista o dispêndio de horas de trabalho necessário à sua captura” (In: PIRES; COSTA, 2010, p.193), nem por isso deve ser encarado como uma produção capitalista, porquanto, o valor, mesmo que “só tenha existência efetiva quando os produtos do trabalho já são mercadorias, antes mesmo de irem ao

48 Celso Furtado sugere solução para o aparente dilema de Fernand Braudel: “A explicação mais plausível para esse fato talvez seja que parte substancial dos capitais aplicados na produção açucareira pertencesse aos comerciantes. Sendo assim, uma parte da renda, que antes atribuímos à classe de proprietários de engenhos e de canaviais, seria o que modernamente se chama renda de não-residentes, e permanecia fora da colônia. Explicar-se-ia assim, facilmente, a íntima coordenação existente entre as etapas de produção e

comercialização, coordenação essa que preveniu a tendência natural à superprodução”. Cf. FURTADO, C.

mercado, ou seja, quando a finalidade da produção [ou sua realização, P.G.P.] é o mercado” (In: PIRES; COSTA, 2010, p.193), não é uma exclusividade do capitalismo49.

Como afirmamos em outro trabalho (PIMENTEL. F.; PIMENTEL, P. 2019, [s.p.]), “a ‘mundialização’ da América contribui para equiparar a capacidade europeia de reduzir os custos de produção de mercadorias de consumo massificado”, competindo assim com os produtos orientais. Nossa argumentação prossegue afirmando que:

No mito liberal, esse momento ficou conhecido como a “acumulação primitiva”, isto é, a concentração do excedente produtivo na mão dos capitalistas europeus que, assim, puderam ter capital circulante o suficiente para organizar a produção manufatureira e industrial em dois aspectos fundamentais: a inovação das máquinas, inicialmente os teares, e a possibilidade de remunerar através do salário uma enorme quantidade de trabalhadores. Marx, ironicamente, afirmava que “todo esse movimento parece, portanto, girar num círculo vicioso do qual só podemos escapar supondo uma acumulação “primitiva”, prévia à acumulação capitalista, uma acumulação que não é

resultado do modo de acumulação capitalista, mas seu ponto de partida” (MARX,

2017, p.785, grifos nossos).

Entretanto, tanto para Darcy Ribeiro (1983, p.133) quanto para Gorender, o desenvolvimento econômico ibérico gestado pela exploração ultramarina, distintamente