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3 ESCRAVISMO VERSUS CAPITALISMO NA FORMAÇÃO SOCIAL

3.3 Transição dependente

O exposto acima demonstrou, essencialmente, a necessidade de compreendermos a transição através de uma perspectiva que transcenda o tempo curto e mesmo o tempo conjuntural. Tanto para a TMD ou para as TS-M, bem como para Gorender70, só foi possível elaborar a ideia de dependência (como particularização do capitalismo periférico) e do escravismo colonial (enquanto modo de produção hegemônico na formação social brasileira) arrimados por uma ótica que busca captar fenômenos de natureza duradoura incapazes de serem alterados por oscilações de preço, ou demográficas, por exemplo. Desse modo, percebe-se que lidar com modos de produção exige um entendimento mais abrangente do tempo, como explicitado na Introdução desta Parte I.

Acreditamos estar em uma lacuna historiográfica e interpretativa. Por limites óbvios, e já esclarecido por outros autores, o escravismo tem seu destino final na Abolição e no soerguimento do Estado burguês (SAES, D. 1985, discutido no quarto capítulo). Do outro lado, como apontado no capítulo antecedente, o conceito de dependência moveu-se, no interior mesmo da TMD, entre a independência e a própria colonização. Como buscamos originar, a partir dessas duas vertentes, um instrumento de análise para o período que chamamos de transicional entre o escravismo e o capitalismo, nos distinguimos da historiografia que opera a investigação por meio da oposição entre Monarquia e República ou entre trabalho escravizado e trabalho livre. Com efeito, a primeira oposição vincula-se ao nível dos acontecimentos, de uma curta história política na qual o movimento republicano ganha força a partir da década de 1870 e sai vitorioso imediatamente após a Abolição. A segunda oposição, aparentemente mais extensa temporalmente, mesmo considerando a coexistência de formas de trabalho livre e

70 “[...] a teoria econômica diferencial deverá focalizar três níveis de análise do processo real em interação: o modo de produção, a formação social e o sistema mundial”. (GORENDER, 1991, p.250)

escravizada desde os primórdios da colonização, vacila entre a demarcação de datas e fatos que teriam dado primazia definitiva ao trabalho livre – quem dirá ao assalariado.

Motivamo-nos por outra questão. A da transição entre a hegemonia de modos de produção numa dada formação social que, afinal, como demonstrado, está também em permanente conformação. Ao dedicar-se com maior afinco ao período pós-guerras, à TMD não foi possível precisar o período transicional, uma vez que, como visto acima, não considerava, inclusive, a distinção do escravismo enquanto um modo de produção. Jacob Gorender, por outro lado, encerra sua pesquisa na Abolição e, apenas com pequenos ensaios (Gênese e Desenvolvimento do Capitalismo no Campo Brasileiro, A Burguesia Brasileira e A Revolução Burguesa e os Comunistas) procura dar conta do período posterior ao escravismo, sem produzir, contudo, uma tese equiparável aO Escravismo Colonial. Serão Décio Saes (A Formação do Estado Burguês no Brasil), José de Souza Martins (O Cativeiro da Terra) e Florestan Fernandes (A Revolução Burguesa no Brasil) quem dedicarão parte de seus estudos ao período que nos é caro. Dentre os três, Décio Saes segue rigorosamente a tese do modo de produção escravista colonial de Gorender, enquanto José de Souza Martins reconhece as distinções entre a acumulação escravista e a capitalista para delinear o regime de colonato, sem, no entanto, citar expressamente Gorender. Já Florestan Fernandes, intercambiando entre a dualidade do “arcaico” versus “moderno” e a compreensão de uma particularidade da escravidão no que tange à formação social, propõe uma larga interpretação do que teria sido a Revolução Burguesa no Brasil71. Adiante, retornaremos a esse debate. No momento, necessitamos ainda elucidar os instrumentos teóricos que nos permitem falar de uma transição entre modos de produção e, especificamente, entre o escravismo colonial e o capitalismo dependente.

No interior do pensamento marxista, o tema da transição surge incorporado ao conceito de modo de produção. Uma vez que Marx dedicou-se, em O Capital, a descrever as características do capitalismo, o definiu em oposição ao feudalismo, distinguindo-os como

71 Outros autores, como Emilia Viotti da Costa, Fernando Henrique Cardoso, Nelson Werneck de Sodré, João Manuel Cardoso de Mello e Francisco Oliveira produziram interpretações acerca da passagem do trabalho escravo para o livre, abordando o mesmo período. Entretanto, uma vez que não reconhecem a especificidade do modo escravista colonial, suas análises privilegiam as contradições de um regime de trabalho escravo no

interior do capitalismo (com exceção de Sodré que afirma a luta de uma burguesia industrialista contra traços

feudais da aristocracia rural). Sendo assim, tais autores serão abordados na medida em que se antagonizam com a nossa interpretação ou oferecem informações que não foram passíveis de serem localizadas nos acima citados. Cf. COSTA, E.V. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Ed. UNESP, 2012. 5.ed; CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio

Grande do Sul. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1962; SODRÉ, N. W. História da Burguesia Brasileira. São Paulo: Civilização Brasileira, 1964; MELLO, J. M. C. de. O Capitalismo Tardio: contribuição a revisão crítica da formação e desenvolvimento da economia brasileira. São Paulo: Ed.

Brasiliense, 1991, 8.ed.; OLIVEIRA, F. de. A Emergência do Modo de Produção de Mercadorias: uma

totalidades sociais. Entretanto será nas Formen (Formações Econômicas Pré-Capitalistas), parte integrante dos Grundrisse (manuscritos anteriores e introdutórios ao O Capital) que o autor irá propor a interpretação da evolução histórica da produção através do entendimento de um conjunto mais ou menos fechado de modos de produção. Assim, consagrou-se na historiografia marxista a compreensão de que o feudalismo é, em si mesmo, um período transicional do escravismo para o capitalismo, tendo como principal argumento a noção de que a servidão era um afrouxamento da escravidão tendente ao trabalho livre.

Esta perspectiva já mereceu inúmeras críticas e revisões. Em trabalho recentemente publicado, em coautoria com Fernando Pimentel, tivemos a oportunidade de contribuir para esse debate, ao tratar “[d]as interpretações materialistas da história que analisam as revoluções tecnológicas e sociais na gênese e no processo de hegemonização do capitalismo” (PIMENTEL, F.; PIMENTEL, P. 2019). Nosso objetivo centrou-se na apresentação de contribuições originárias, como de Jack Goody, Darcy Ribeiro, Silvia Federeci e Carole Pateman que questionam o evolucionismo e o eurocentrismo dos estudos marxistas – exemplificados nas formulações de Perry Anderson em Passagens da Antiguidade para o Feudalismo:

Darcy Ribeiro propõe um entendimento diametralmente oposto ao de Anderson sobre o modo de produção feudal. Para o antropólogo brasileiro, o feudalismo, na realidade, configura-se como um tipo geral de vicissitude em que tendiam a cair e recair todas as altas civilizações, ou seja, “não como uma etapa da evolução sociocultural situada entre o Escravismo e o Colonialismo, mas como uma instância geral de regressão

histórica” (grifo nosso) (RIBEIRO, D., 1983, p. 24). Essa interpretação é distinta,

igualmente, do entendimento que Marx propõe seja nas Formen, seja em O Capital. Parece-nos que Ribeiro é o único - ou um dos poucos - capazes de utilizar a categoria histórica “feudalismo” rompendo com seu caráter eurocêntrico e teleológico, presente na maioria das interpretações marxistas e não marxistas, justamente porque não considera como um progresso das capacidades produtivas e das relações sociais de produção, negando-o, portanto, como uma ponte para o capitalismo. (s.p.)

O que permite a Darcy Ribeiro fazer essa afirmação é a sua iniciativa em elaborar um esquema interpretativo das “etapas da evolução sociocultural” em O Processo Civilizatório. De acordo com o antropólogo brasileiro, “empregamos o conceito de revolução tecnológica para indicar que a certas transformações prodigiosas no equipamento de ação humana sobre a natureza, ou de ação bélica, correspondem alterações qualitativas em todo o modo de ser das sociedades”. (RIBEIRO, D.,, 1983, p.47) Essas revoluções72 desencadeiam um ou mais

“processos civilizatórios” uma vez que não basta o advento de uma ou outra inovação técnica, mas seu uso combinado, “sua propagação sobre diversos contextos socioculturais e sua aplicação a diferentes setores produtivos” (p.48) para que obtenhamos alterações significativas

72 Agrícola, Urbana, do Regadio, Metalúrgica, Pastoril e Mercantil. E, atualmente, após a Industrial, vivenciamos a Termodinâmica.

na dinâmica de uma determinada sociedade a ponto de justificar sua caracterização como uma formação social distinta ao longo do tempo. Neste sentido, Ribeiro apresenta ainda as noções de aceleração evolutiva73 e atualização histórica para diferenciar aquelas formações que alcançam de forma autônoma ou subordinada, respectivamente, o domínio de uma das revoluções tecnológicas gerando ou sofrendo um novo processo civilizatório (pp.55-62). Assim,

A feudalização da Europa pós-românica processa-se mediante duas rupturas fundamentais. Primeiro, a do sistema imperial de poder, coalhado em milhares de feudos impotentes para aglutinar seu contexto numa estrutura política duradoura. Segundo, a do sistema de intercâmbio mercantil externo, que só subsiste como atividade marginal e semiclandestina dos que negociavam com árabes, judeus e sírios, o que transacionavam com moedas orientais. Rompidas a atividade mercantil e a unidade política imperial, outras regressões se processam, como a reversão dos latifúndios agrícolas em terras de uso comum e em bens eclesiásticos. [...] Deste modo, o artesanato, que já se havia urbanizado, desgarrando-se da agricultura como uma especialização, torna a fundir-se com ela. (p.115)

Mesmo que concordemos que a síntese de Ribeiro, apresentada acima, careça de um detalhamento mais preciso que revele o processo histórico em sua inteireza e determine com maior exatidão a duração desse período de retração, estamos diante de uma proposta que supera o eurocentrismo da economia política de tradição marxista, já que para o autor, a regressão feudal é uma situação na qual podem decair grandes formações sociais, como os impérios teocráticos de regadio e os impérios mercantis escravistas. Por conseguinte, o capitalismo, na Europa, não surge como uma etapa natural do desenvolvimento das contradições do feudalismo, mas como um modo de produção exterior a ele e sua hegemonização assinala-se como uma contrarrevolução social e não como um progresso:

A emergência do poder centralizado nos Estados Modernos inaugura, como contributo à ascensão das frações burguesas, um aparato jurídico e contábil que tem por objetivo tornar compulsório o trabalho: ao mesmo tempo em que “liberta” o servo dos enlaces feudais, “liberta” também os trabalhadores artesanais dos vínculos corporativos, tornando verdadeiramente “livre” o capitalista de qualquer obrigação para com o trabalhador além de um quantum em dinheiro capaz de fazer com que as famílias trabalhadoras garantam a reprodução da força de trabalho masculina. Se os trabalhadores homens, no regime de trabalho assalariado se tornaram livres no sentido formal, para Federici (2017, p. 195), foram as mulheres, que, na transição para o capitalismo na Europa, tornaram-se um grupo de trabalhadoras que mais se aproximou da condição de escravos. (PIMENTEL, F.; PIMENTEL, P. 2019. [s.p.])

73 “Essa progressão opera através da multiplicação de sua capacidade produtiva com a consequente ampliação do seu montante populacional, da distribuição e da composição deste, da reordenação das antigas formas de estratificação social e da redefinição de conteúdos ideológicos da cultura. Opera, também, mediante uma ampliação paralela do seu poder de dominação e de exploração dos povos que estão a seu alcance e que ficaram atrasados na história por não terem experimentado os mesmos progressos tecnológicos” (RIBEIRO, D., 2007, p.31).

De acordo com Darcy Ribeiro, dois tipos de formação social terão vez na Europa, comumente denominados de “Estados Modernos”: os impérios mercantis salvacionistas e a capitalista mercantil. Portugal e Espanha, na Península Ibérica, e a Rússia czarista, em direção a Eurásia, comporão o primeiro tipo de formação, caracterizado, dentre outros fatores, por ambos tirarem, “das energias mobilizadas para a reconquista de seus territórios ocupados por árabes e por tártaro-mongóis a força necessária para as façanhas da sua própria expansão salvacionista”74 (p.130). Entre as formações capitalistas mercantis estarão a Holanda, a

Inglaterra e a França, em ordem cronológica de participação na grande aventura ultramarina. Esses dois processos civilizatórios têm em comum o fato de serem decorrentes da Revolução Mercantil, a sexta e antepenúltima revolução descrita por Darcy, que combina o uso de tecnologias que permitiram a navegação oceânica de longa distância com a supremacia da arma de fogo no aniquilamento ou capitulação de contingentes populacionais superlativos aos colonizadores. (p.129-130)

Serão, entretanto, os impérios mercantis salvacionistas que darão surgimento pioneiramente ao “colonialismo escravista” nas Américas:

Nas outras áreas americanas [desprovidas de concentração populacional a sofrer a

encomienda. P.G.P.] restaurou-se o escravismo greco-romano em sua forma mais

crua. Primeiro pela escravização dos indígenas locais e, mais tarde, desgastados estes, pela transladação de enormes massas de negros da África para as plantations e para as minas, onde seria também consumida a maior parte deles. [...] Este foi o maior movimento de atualização histórica de povos jamais levado a efeito, mediante a destribalização e a deculturação de milhões de índios e negros e seu engajamento em

novos sistemas econômicos, na qualidade de camadas subalternas. (p.135, grifos

nossos)

As inúmeras edições em línguas estrangeiras atestam a originalidade da obra de Darcy Ribeiro, expoente pioneiro do “pensamento decolonial” das ciências sociais e da tradição marxista. Similarmente à TMD e às TS-M, Ribeiro sugere, no trecho grifado por nós, a existência de “novos sistemas econômicos” inaugurados pelas Coroas ibéricas nas Américas com a transladação de africanos para o trabalho escravizado das plantagens. Datado de 1968, O Processo Civilizatório é contemporâneo ao início da elaboração d’ O Escravismo Colonial de Gorender e também da publicação de contribuições já amadurecidas da Teoria Marxista da Dependência. Tal como Theotonio dos Santos e outros autores analisados acima, Darcy Ribeiro não se dedica exclusivamente a estudar os tais “novos sistemas econômicos”, mirando,

74 “A associação das monarquias ibéricas com o Papado alcançou um nível de quase fusão quando se juntaram os recursos econômicos e o salvacionismo de Madri com o empenho anti-reformista de Roma. Nessa conjuntura, a Ibéria consegue do Papa o título de domínio exclusivo sobre todas as terras que se descubram para além de uma linha imaginária”. (RIBEIRO, D., 1983, p.131)

entretanto, um projeto ambicioso de ordenar numa teoria coerente as “etapas da evolução sociocultural”. Todavia, chamamos a atenção mais uma vez para a afluência de inquietações desses três autores que resultaram na proposição de interpretações que, via de regra, acabam por se aproximar. Para Theotonio dos Santos, “as incursões de Marx e Engels na questão colonial já indicavam que aí não se reproduzia o processo europeu, mas, pelo contrário, a situação colonial era já um produto do processo de expansão capitalista mundial e não podia ser apresentada como uma realidade pré-capitalista” (2016, p.18). Nas palavras de Ribeiro, o “colonialismo escravista” estava

inserido dentro de um sistema econômico unificado e interativo. Não se configuram, portanto, como etapas pretéritas da evolução humana, mas como partes complementares de um mesmo complexo que tinha como centro dinâmico as potências ibéricas e, como áreas periféricas e como “proletariados externos”, as populações concentradas nas colônias. (1983, p.133)

Demonstramos acima que o que difere essas interpretações da elaborada por Gorender é a particularidade desse “novo sistema econômico” como um modo de produção distinto do capitalista. A atenção dedicada por Darcy Ribeiro à especificação de dois processos civilizatórios oriundos da mesma Revolução Mercantil nos conduz a um melhor acolhimento do processo histórico que desigualou os impérios salvacionistas das formações capitalistas mercantis75. Isto posto, compreende-se a sedimentação da produção colonial ibérica e nos compele a considerar a Revolução Industrial – sétima e penúltima revolução tecnológica – como garantidora do salto qualitativo dado pela Inglaterra, ocasionando a primeira formação imperialista industrial e sua contrapartida reflexa, o neocolonialismo. (p.148-162)

Novo processo civilizatório, o neocolonialismo subordina tanto os impérios mercantis salvacionistas quanto suas colônias escravistas. Provocado pelas inovações técnicas – produtivas e sociais – da revolução industrial e da coisificação dos corpos (FEDERICI, 2017; PATEMAN, 1993; RIBEIRO, D.,, 1983, p.145) altera o status português e espanhol, inaugurando aquilo que poderíamos caracterizar seguramente como a passagem para o capitalismo dependente na Península Ibérica. Quanto às suas colônias, estimula a luta pela

75 Apesar de Ribeiro insistir num “capitalismo mercantil” para explicar o surgimento das primeiras manufaturas no campo, desmembrando-se do monopólio das guildas citadinas, o autor percebe que “na ordenação

socioeconômica dos dois impérios [russo e ibérico] prevaleceram os princípios do mercantilismo de

inspiração despótico oriental sobre os princípios do capitalismo nascente. Assim é que, nas duas áreas, acima de um empresariado burguês-capitalista, disposto a enfrentar a nobreza e o clero, se implantou uma vasta burocracia cartorial controladora do poder político-militar e arrecadadora de tributos. A expansão dos monopólios estatais sobre diversos setores produtivos se generaliza e prepondera em relação às empresas privadas, sujeitas continuamente à interferência governamental” (1983, p.133). Fica clara, pois, a impossibilidade do escravismo colonial ter se originado da expansão mundial do capitalismo, como ressaltamos no primeiro capítulo.

independência frente às metrópoles decadentes, cambiando o polo metropolitano para Londres, Manchester e Liverpool. Concomitante à independência política e ao estabelecimento de estados nacionais na América Latina, promove-se gradualmente a abolição do tráfico internacional de escravizados e da própria escravidão até 1829 (México) nos países em que o escravismo não era determinante. Persiste, no entanto, naqueles em que a utilização da mão-de- obra escravizada alçou a condição de modo de produção hegemônico diante de outros sistemas produtivos, especialmente Cuba e Brasil que terão a emancipação decretada às vésperas do século XX, 1886 e 1888, respectivamente. O neocolonialismo, longe de impor imediatamente o trabalho livre como um princípio liberal universalizável, condiciona a reiteração do escravismo colonial como mecanismo de produção de insumos necessários ao próprio desenvolvimento da etapa industrial dos processos ocorrentes na Europa. Este é o caso do café no Brasil, do açúcar em Cuba e do algodão no Sul dos Estados Unidos.

Pormenorizando as análises iniciadas em O Processo Civilizatório, Darcy Ribeiro interpretará o Brasil como um povo novo. Nem transplantados como os neozelandeses, australianos, norte-americanos e uruguaios, nem testemunhos como os mexicanos, andinos e também os chineses e japoneses, os brasileiros, tais como os antilhanos, chilenos e grã- colombianos, são “um subproduto da expansão europeia pela fusão e aculturação de matrizes indígenas, negras e europeias” (RIBEIRO, D., 2007, p.78):

Os primeiros [testemunhos] são constituídos pelos representantes modernos de velhas civilizações autônomas sobre as quais se abateu a expansão europeia. [...] O terceiro – povos transplantados – é integrado pelas nações constituídas pela implantação de populações europeias no ultramar com a preservação do perfil étnico, da língua e da cultura originais76. Povos emergentes são as nações novas da África e da Ásia cujas populações ascendem de um nível tribal ou da condição de meras feitorias coloniais para a de etnias nacionais. (RIBEIRO, D., 2007, p.78)

Tal diferenciação diz respeito ao contingente populacional gerado, principalmente nos povos testemunhos e novos após a etapa colonial ou neocolonial europeia. Enquanto nos povos testemunhos há uma reiteração de uma grande porcentagem de populações originárias (ou sua atual tendência ao reaparecimento, como no caso da Bolívia, do Peru e do México), os povos novos verificam significativo entrecruzamento étnico gerando uma multiplicidade de características fenotípicas com distintas tendências de crescimento. O que os unifica, no caso latino-americano é que, em ambos os países, a classe dominante é branca – europeia “acriollada”.

76 Há de se acrescentar que tais povos só mantiveram tais características com o genocídio perpetrado sobre as populações originárias.

No Brasil, o colono português foi responsável, pelo seu domínio quase ilimitado como bandeirante, senhor de engenho e barão do café, pela miscigenação violenta com os indígenas e africanos, engendrando uma pluralidade fenotípica de difícil equiparação com outra sociedade. Apesar de novo, o povo brasileiro, pela sua dominação interna liderada pelos colonos brancos, vivenciou desde os primórdios da colonização, e com novo ímpeto a partir da sua constituição como nação independente, um esforço ideológico de identificação com a civilização77 ocidental.

Na etapa inaugural da empresa colonial, a noção de cristandade e expansão da fé católica figurava como epicentro da aliança entre a burguesia mercantil, a aristocracia, a realeza, o clero local e o Papado. Desse modo, a presença da Companhia de Jesus no empreendimento colonizador é patente, como atesta a fundação da cidade de São Paulo e a criação dos colégios paulista, soteropolitano e carioca. Os jesuítas terão papel preponderante também, na aculturação dos indígenas – alternando entre a proteção contra os bandeirantes e a degradação de suas culturas originais. Entre os africanos, o clero católico será responsável pela elaboração de justificativas ideológicas (teológicas) para a escravidão, comungando nessa empreitada