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2. O Grotesco como Organizador do Espetáculo

2.1. A risada trágica

Na obra de Beckett, tudo está acabando, envelhecendo, morrendo. A cenografia das primeiras peças de Beckett é permeada por imagens desérticas de confinamento, com uma natureza escassa, moribunda. A árvore de Esperando Godot, com seus galhos finos e nus, incita os personagens a se questionarem se ela estaria morta no primeiro ato. No segundo, quando está “coberta de folhas”, segundo Vladimir, possui apenas três. Vladimir também fala da presença de um pântano e de cadáveres nas suas proximidades (coincidentemente referindo-se ao espaço da plateia no teatro). O que existe para fora do refúgio de Hamm e Clov em Fim de jogo, além de um céu eternamente cinza, que não distinguem se é dia ou noite, é um mar bravio à distância. Um rato parece ser o único animal que aparece (vivo, mesmo que por pouco tempo) na peça, além de um cachorro de brinquedo, com apenas três pernas. A formiga que aparece diante de Winnie parece ser, de forma semelhante, o único exemplo de ser vivo que coabita a paisagem desértica onde reside com Willie.

De forma semelhante, a escassez material a que estão submetidos os personagens parece ser uma marca do mesmo tema. A pasta de dentes de Winnie, ela tira com dificuldade do tubo, e o seu tônico, que está terminando no frasco, é tomado até o fim. Os biscoitos de Fim do jogo, com os quais Clov alimenta Nagg e Nell, também estão prestes a terminar. Eles, vivendo em latas de lixo, são exemplos extremos da penúria. A areia (que substituiu a palha) que forra essas latas, provavelmente para acolher os dejetos dos dois, não é trocada com frequência. Estragon e Vladimir parecem comer apenas cenouras e rabanetes. Pozzo, o único que parece possuir ainda alguns bens, ao pedido de Estragon de que lhe desse os ossos da coxa de frango que acabara de comer, diz-lhe que ele terá que negociar com Lucky, pois “teoricamente os ossos ficam sempre para o carregador”. 1 Supõe-se que sejam seu único alimento.

Completando o estado de deterioração desse mundo, lembremos também do

44 estado de saúde precário das personagens, de suas paralisias, mutilações, dores e de sua velhice. Estragon tem uma dor constante no pé, que o faz mancar. Vladimir tem problemas com a próstata. Hamm é cego e paralítico. Clov não pode sentar-se, provavelmente por conta de hemorroidas. O dente (único) de Nagg caiu. Ele a e esposa Nell tiveram suas pernas amputadas. O cachorro de Hamm, como já dito, também perdeu uma das suas.

O pé, a perna e o caminhar, de uma forma geral, parecem ser temas caros a Beckett, interessado na imobilidade e na paralisia. Winnie está enterrada até a cintura no primeiro ato de Dias felizes e até o pescoço no segundo. Willie, quando aparece de corpo inteiro ao fim da peça, consegue erguer-se apenas para engatinhar, mesmo assim sem muito sucesso. Krapp anda penosamente. Nas peças do seu estilo tardio, veremos, a imobilidade também é uma constante. Em Comédia os personagens estão confinados em vasos, apenas com as cabeças para fora, tendo como única possibilidade de movimento a fala, característica que compartilham com a Boca, de Eu não. Em Passos, embora a personagem May tenha como ação principal justamente a ação de caminhar, o faz sempre no mesmo espaço, indo e voltando, desassociando o sentido de caminhar do objetivo de transportar-se para outro espaço. Em Cadeira de balanço, a personagem W permanece sentada durante todo o espetáculo. Lembremos também do Protagonista de Catástrofe, da qual já tratamos no capítulo 1, como exemplo da associação da imobilidade com a suspensão do tempo num espaço imaginário.

Os exemplos são inúmeros e não se limitam ao teatro. No romance Molloy, o narrador, não tendo o movimento de uma das pernas, move-se a princípio com uma bicicleta (imaginemos com que desenvoltura), para depois rastejar e finalmente deslocar-se rolando pelo chão. Malone passa o tempo sobre uma cama, escrevendo (seu lápis também está no fim), e já não é capaz de diferenciar o próprio corpo dos móveis do seu quarto. Nas obras televisivas Eh, Joe, o seu protagonista caminha arrastando o pé, e em Quad, uma peça composta apenas por caminhadas, as figuras curvadas que as realizam parecem condenadas a repetir eternamente um mesmo trajeto, sem saída possível.

Deve-se notar, pelos exemplos dados, como a miséria destes personagens e deste universo temático pode ser considerada simultaneamente cômica e trágica. A fala de

45 Nell, em Fim de jogo, poderia ser considerada como uma explicitação deste interesse duplo do autor: “nada é mais cômico que o sofrimento.” 2

Ruby Cohn, em seu estudo sobre a comicidade na obra de Beckett,3 apresenta a classificação dos risos do personagem Arsene, de Watt: o riso amargo, que ri do que não é bom; o riso vazio, que ri do que não é verdade, e o riso triste, que ri da infelicidade. Este último seria, para o personagem, o risus purus (riso puro), o riso que ri do próprio riso, “o riso que ri – silêncio, por favor – daquilo que é infeliz”. 4

Cohn considera o riso triste como aquele provocado pelos personagens sofredores de Beckett (todos, em alguma medida). Poderíamos, dentro do nosso eixo de raciocínio, entender o riso triste como aquele provocado pela coisa/vítima. É o caso, por exemplo, da comicidade suscitada pelos maus tratos sofridos por Lucky, em Esperando Godot.

O riso moral, o amargo, a autora identifica com aquele que nos provocam os personagens sádicos de Beckett, que tratam com crueldade os seus subservientes ou suas criações. Poderíamos dizer que se trata do riso inspirado pelo olho/executor. Complementando o exemplo anterior, seria o riso que nos provoca o autoritarismo de Pozzo em relação a Lucky, mantendo-o amarrado a uma corda, chamando-o de porco, obrigando-o a dançar e a pensar.

O riso intelectual, o vazio, Cohn sugere estar associado ao riso que nos provocam os comportamentos mecânicos dos personagens, sua estupidez diante dos problemas simples, sejam motores ou de raciocínio. Seria o riso que nos provoca, por exemplo, o monólogo de Lucky, com a sua forma aparentemente acadêmica mas isenta de lógica, ou a sua dança, completamente desordenada. É um riso do erro, da falha, da rigidez. Não é descabido associarmos esta comicidade àquela gerada pela Coisa.