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O grotesco como pista para uma associação com Meyerhold

2. O Grotesco como Organizador do Espetáculo

2.3. O grotesco como pista para uma associação com Meyerhold

A presença inegável do palhaço na obra de Beckett parece revelar intenções específicas acerca do tipo de espetáculo teatral que ele pretende criar. Por um lado, ele é veículo para a expressão do paradoxo central que nos serve como eixo de raciocínio, produzindo os tipos de riso que estariam associados às polaridades do carrasco e da vítima e ajudam a implodir a linguagem teatral, traço identificado por Theodor Adorno (e abordado no capítulo 1), como revelador do projeto estético de Beckett no diálogo com o seu tempo histórico.

A comédia de Beckett não existe sem a companhia da tragédia. Isto está expresso na própria formulação sobre o riso de Arsene – nenhum dos risos é nomeado com uma conotação positiva: amargo, vazio e triste. O que o palhaço tem de automático, ignorante, incompetente e cruel, é levado ás últimas consequências no teatro beckettiano: somos convidados a rir de mutilações, paralisias, cegueiras e torturas. Comédia é tragédia são indissociáveis. Para Pavis, “o grotesco e o tragicômico mantêm um equilíbrio instável entre o risível e o trágico, cada gênero pressupondo seu

27 No original: Strange sensation. [Pause. Do] Strange feeling that someone is looking at me. I am clear,

then dim, then gone, then dim again, then clear again, and so on, back and forth, in and out of someone’s eye.

56 contrário para não se cristalizar numa atitude definitiva”.28

Bakhtin29 vê, nas manifestações populares medievais e no teatro de Rabelais, a presença do grotesco como um centro organizador. A morte, ali, assume uma conotação não apenas negativa, mas impõe-se como princípio de transformação vital. O corpo, nestes teatros, carrega imagens ligadas ao nascimento e à morte, através das representações da velhice, da infância, do parto e da gravidez. Uma das características do grotesco, para o autor, é justamente esta ambivalência: “os dois polos da mudança – o antigo e o novo, o que morre e o que nasce, o princípio e o fim da metamorfose – são expressados (ou esboçados) em uma ou outra forma.”30

O corpo velho e a abordagem fisiológica de seus males permeiam toda a obra de Beckett. Apesar de verificarmos uma predominância de aspectos ligados à morte nesta obra, da natureza ser quase inexistente, é importante percebermos como há pequenos indícios de uma vida que continua se renovando. Assim, em Esperando Godot, a presença do menino que chega ao fim de cada ato para anunciar que Godot não vem seria um dos seus signos. Clov, em Fim de jogo, também relata ter visto, do lado de fora do refúgio dos personagens, um menino. A presença da natureza, que já abordamos anteriormente, através das folhas que aparecem na árvore de Esperando Godot, o rato de Fim de jogo e a formiga de Dias felizes, são também marcas desse processo. Num mundo tão desértico, a insistência da natureza em aparecer nas pequenas formas se faz quase como um estrondo.

A presença do grotesco também justifica comparar o teatro de Beckett ao de Vsevolod Meyerhold (1874 – 1940), ator e encenador russo de importância capital no século XX. Opondo-se ao naturalismo, ele encontrou no conceito do grotesco um princípio através do qual organizaria sua estética teatral. “O grotesco não admite nem a pura depreciação nem a pura exaltação. O grotesco mistura os opostos, conscientemente criando uma incongruência áspera que depende somente de sua própria originalidade.”31

Utilizando-se largamente das referências ao palhaço em cena (até interpretando ele mesmo o papel de Pierrot em algumas peças), Meyerhold buscará um teatro calcado

28 (PAVIS, 2008, p. 188). 29 (BAKHTIN, 2013). 30 Ibidem, p. 22.

31 MEYERHOLD, V. apud (MCMANUS, 2003, p. 46) Tradução nossa. No original: The grotesque does

not recognize the purely debased nor the purely exalted. The grotesque mixes opposites, conciously creating harsh incongruety and relying solely on its own originality.

57 no estranhamento, na colagem de elementos e registros dramáticos diversos, organizados por um sentido musical. Segundo Piccon-Vallin,32 o grotesco era o conceito central da cena meyerholdiana, supondo uma “colaboração dialética dos elementos formais e temáticos em vista de uma forma capaz de tornar mais aguda a percepção do espectador, de tal modo que, mesmo sem música, ‘lembre a linguagem da música quando esta ultrapassa o discurso por sua expressividade’”. 33 Sua inspiração para criar técnicas para trabalhar com o ator, será, além das máscaras da commedia dell’arte e do palhaço, a acrobacia, o drama musical e o teatro oriental. Entre os últimos, via uma semelhança significativa, que os opunha ao naturalismo. “A ópera é uma convenção total, como o nô japonês”.

As semelhanças com o oriente parecem ser um outro ponto de contato entre Beckett e Meyerhold. Yasunari Takahashi, em seu estudo sobre o teatro nô e o teatro de Beckett34, faz uma análise bastante convincente das possíveis relações existentes entre eles, tendo como intermediária a obra de W. B. Yeats. Encontrando na dualidade Shité, o protagonista, e Waki, o coadjuvante, Takahashi propõe uma leitura de obras de Beckett a partir do viés da lógica do teatro nô, em que o Waki, em geral, invoca ou é surpreendido pela aparição de um fantasma o Shité, que narrará seu passado. É um teatro que, como o de Beckett (em especial da última fase) cria para si um sistema de não-ação: a ação presente é ou a espera do Shité pelo Waki e, depois, narrativa feita por aquele que chega. A semelhança com o nô não é apenas dramatúrgica. Opera-se com uma ausência quase total de elementos cenográficos – coincidentemente, no nô há sempre uma árvore em cena, assim como em Esperando Godot. A ação física sintética, altamente estilizada e coreografada, a modulação vocal tendendo ao monotônico seriam outras semelhanças notáveis.

Em relação ao ator, poderíamos dizer que, enquanto Beckett manteve-se como autor e diretor de suas obras, sem criar qualquer método ou modelo pedagógico para o ator no seu teatro, Meyerhold criaria um método específico para treinar um ator que desse conta das necessidades do seu teatro, um ator que pudesse, “por meio de seu corpo, traduzir a categoria do tempo – a música – em espaço”. 35 Acreditamos que

32 (PICON-VALLIN, 2013). 33 (PICON-VALLIN, 2013, p. 29). 34 (TAKAHASHI, 1982)

58 Beckett entenderia o trabalho do ator de forma análoga. O próximo capítulo dará algumas evidências disso.

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