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Do treinamento às primeiras experiências com Malone Morre

3. Beckett diretor de atores

4.2. Do treinamento às primeiras experiências com Malone Morre

O grupo de estudos surgiu a partir de um convite feito por mim a alguns alunos e ex-alunos da Escola Livre de Teatro de Santo André (ELT), além de outros atores que considerei passíveis de se interessarem pela proposta, para estudar o treinamento do Círculo Neutro. A obra Malone Morre tinha importância secundária na pesquisa, servindo apenas para investigarmos a terceira fase do treinamento com algum material textual. O motivo principal da escolha desta obra foi um interesse pelo humor peculiar que ela apresentava.

O grupo, nos seus primeiros encontros, era formado pelos seguintes participantes: Aila Rodrigues, Ana Sharp, Carolina Splendore Cameron, Débora Sanders, Caroline Úngaro, Marcos Reis, Pedro Henrique Stempniewski, Natália Telles Ferreira e Rafael Lemos. Exceto Caroline Úngaro, atriz formada pela Unicamp, todos os outros participantes eram oriundos da ELT. Iniciamos o grupo no dia 10 de março de 2010, nos propondo a encontros duas vezes por semana, das 10 às 13 horas, na sede da Companhia do Feijão, na cidade de São Paulo

Os encontros se iniciavam com a realização de uma sequência de aquecimento comum, que seguia o modelo utilizado pro François Khan, baseado em posturas de Yoga, acrescida de alguns exercícios de respiração. Nas duas semanas iniciais, nos dedicamos exclusivamente a prática do círculo neutro, nos atendo as duas fases iniciais do percurso: procedimento de entrada e as provocações. Minhas anotações do treinamento se restringiram, neste momento inicial, a rápidas listagens do que percebia como desvios da neutralidade a cada passagem dos atores pelo processo, ou seja: a presença de pausas, hesitações ou mistura de uma ação com outra, mudanças de velocidade durante as trajetórias e questões posturais.

117 O que observei, acerca da segunda fase, foi que havia basicamente duas formas do ator, no círculo, reagir à vontade de rir provocada pelas provocações: a tensão para não rir, em geral na boca e no rosto, mas identificável em todo o corpo, e a aceitação da risada, que culminava numa espécie de desmonte. Entre as duas parecia haver um ponto que a plateia se interessava de forma geral, que poderíamos associar ao risco que o ator estava correndo, perceptível em seu corpo. Em cada um dos polos, ao contrário, em que o desvio da neutralidade ficava evidente, podíamos perceber um desinteresse da plateia pelo ator.

Fizemos algumas experiências em que o ator deveria resistir a qualquer custo à vontade de rir e outras em que experimentava a risada acontecer, quando inevitável. Percebi que era importante que o ator reconhecesse, no seu corpo, os diferentes impulsos que geravam o riso, de forma que tanto resistir quanto ceder eram importantes para este reconhecimento.

Deixando, momentaneamente, a obra de Beckett de lado, decidi investigar esta relação entre a vontade de rir do ator somada à impossibilidade da risada. Ao que indicava, parecia haver aí também uma semelhança com o treinamento de palhaço, em que o palhaço, para fazer o público rir, deve privar-se de sua própria risada. Pedi aos atores que escolhessem, cada um, uma música que considerassem cômica, para ser cantada no momentos em que lhe fosse solicitado no treinamento.

Neste estágio, após passarem pelas provocações, e, somente se não houvesse grandes desvios da neutralidade, os atores iniciavam a experimentação da terceira fase do treinamento, que chamamos de “entrevista”. Nesta entrevista, participava ativamente como uma espécie de interrogador. Outras pessoas se responsabilizavam pelo registro das perguntas e das respostas feitas a cada ator. A cada vez, o roteiro deveria ser repetido, incluindo pequenos acidentes de percurso, considerados então como parte do repertório de cada ator. Minha função, como entrevistador, mantinha, em parte, o mesmo objetivo das provocações, ou seja, desestabilizar o ator. Assumia um postura autoritária, como alguém na posição de um selecionador de talentos. Em determinado momento da entrevista, pedia que os atores cantassem a música que tinham memorizado.

118 O riso da plateia indicava, em geral, os momentos em que percebia o ator mais em risco com a própria vontade de rir, resistindo a ela. A música, se cantada de forma em que o comentário sobre ela se tornava mais evidente do que o intuito de cantá-la, percebíamos que a plateia se desinteressava. O esforço em tornar a música cômica era exatamente o que percebíamos esvaziar a cena de comicidade. Tratava-se, portanto, de exercitar a atenção, como em todos os momentos do treinamento, na realização de ações determinadas, que deveriam ser realizadas sem outra intenção do que aquela do enunciado, mesmo que elas causassem o desejo de rir.

A descoberta da figura do diretor, no contexto do treinamento, como uma figura cômica, se deu de forma desproposital. Khan apenas havia solicitado que o diretor falasse em volume alto com o ator que estava no círculo. O tom de interrogatório se insinuava por este aspecto, pelo fato de haver uma pessoa encarregada de anotar tudo o que acontecia e pelo tom desestabilizador que as perguntas tinham. Ao me colocar na função de diretor, percebi diversas semelhanças com a figura chamada de O Dono do Circo, ou Monsieur Loyal, presente em exercícios dos quais havia participado em cursos de palhaço. A figura do carrasco, geradora do riso amargo, foi importantíssima para os momentos seguintes.

A informação de que o círculo neutro tinha sido criado por Jacques Lecoq a partir de um treinamento de palhaço reforçava a proximidade que percebia na relação do diretor da cena, mais próximo de um clown branco e o ator, mais próximo a um augusto. Estas reflexões fizeram com que investisse na exploração da comicidade gerada pelo jogo, apoiada nestas duas funções.

A partir do mês de abril de 2010, iniciamos a abordagem de Malone Morre. Enquanto diretor do processo, apesar de fascinado com as descobertas que vínhamos realizando no treinamento, não havia planejado como abordar o romance de Beckett. Mesmo sem o intuito de montar um espetáculo, naquele momento, precisava encontrar um rumo para conduzir o próprio treinamento para que a pesquisa caminhasse na direção imaginada.

Malone morre, segundo romance da trilogia formada também por O Inominável e Molloy, assim como a obra de Beckett como um todo, apresenta diversos obstáculos a uma

119 compreensão fácil. O narrador, que se nomeio Malone, está, segundo ele, à beira da morte. Não sabe precisar sua idade, seu passado, o local onde se encontra. Decide, antes de morrer, realizar algumas tarefas: fazer seu inventário, escrever uma história e falar sobre sua situação atual. Dispõe, para tanto, de um pequeno lápis e de um caderno, com os quais erra tenta cumprir seus objetivos, sempre inalcançáveis. Não se tem certeza, pela memória que o narrador parece não ter mais, acerca do grau de objetividade que ele é capaz de manter, portanto, não se detecta, nas narrativas que cria e na própria análise de seu estado atual, o que é de fato verdade e o que é criação. O jogo metalinguístico com a própria construção de uma obra é tão relevante no texto que em diversos momentos fundem-se as figuras de Malone, de seu personagem, primeiro Sapo depois Macmann, e do próprio Beckett.

Como a terceira fase do círculo estava associada a ideia de construção de personagem, as imprecisões, ambiguidades e a importância dada a forma do texto em detrimento a sua mensagem aos poucos se mostraram obstáculos significativos para a realização desta parte do exercício.

Houve, entre abril e junho, algumas abordagens do material, de formas diferentes, ainda presas a ideia de criação de personagens:

 A construção de personagens do romance.

 A construção do personagem Malone, narrador do romance.

Outra possibilidade, que chegamos a considerar, foi a eleição de um tema significativo do romance, como ponto de partida. Chegamos a eleger: “o que você faria antes de morrer?” como um destes temas, mas percebíamos que nos distanciávamos do romance de Beckett e dos elementos que nos interessavam ali. Entre eles, o humor, um dos nossos focos de interesse.

Decidimos então, em especial pelo reconhecimento do caráter metalinguístico da obra, da importância de nos focarmos no narrador do romance como ponto de partida. Cada ator escolheu uma peça de figurino e um trecho do texto para memorizar como materiais para a criação de personagens.

120 Os procedimentos de entrada e saída continuavam os mesmos, exceto pelo fato de serem feitos com uma peça de roupa ou acessório que convencionavam a existência de um personagem. Na fase da entrevista, a primeira pergunta que o diretor faz é: nome? Os atores deveriam responder, então: Malone, e continuar a entrevista. Com cada um deles criou-se um repertório, que incluía não apenas perguntas e respostas, mas a realização de ações que deveriam configurar o quarto de Malone, misturadas aos textos ditos como narração.

Neste ponto do processo, pudemos perceber como o fato de lidarmos com a criação de personagens se afastava da ideia central beckettiana de associar a impossibilidade à expressão. Tanto os atores calculavam suas respostas para que acontecesse o riso quanto eu, como diretor, conduzia o trabalho para a manutenção do humor a qualquer custo, mesmo que se distanciasse completamente daquele humor característico do romance original. O acúmulo do repertório desenvolvido dentro do círculo não parecia ajudar na construção de personagens que almejávamos inicialmente.

Algumas reflexões acerca destes procedimentos podem ser feitas. O jogo entre o ator e a figura do diretor, percebido inicialmente como um dos pontos de maior interesse do treinamento, também guardava algumas ciladas para o encaminhamento do processo, em especial ao lidarmos com o texto em questão, não percebidas de imediato. Algumas respostas do ator criadas dentro do círculo, isoladas da presença ostensiva do diretor exigindo a sua realização, perdiam o interesse. Uma outra questão era o distanciamento que percebíamos em relação ao humor do romance e do humor que aparecia no círculo. Será que qualquer relação entre palhaço branco e augusto remete a Beckett?