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Com a Revolução Industrial, o corpo e o trabalho ganham outro sentido temporal, ao tornarem-se escravos149 da produção em série. Chaplin prediz esse momento, em “Tempos Modernos" (1936), de maneira irônica e crítica. No filme, os créditos aparecem superpostos à imagem de um relógio. O tempo marca implacavelmente a vida dos operários da fábrica onde se desenvolve boa parte da ação. Carlitos é um trabalhador em uma linha de montagem, onde com uma chave inglesa, ajusta parafusos à uma velocidade que mal lhe permite parar para coçar-se ou espantar uma mosca que lhe ronda o nariz. Qualquer mínima distração quebra o ritmo de trabalho de seus companheiros, onde o volume de trabalho é desproporcional ao tempo destinado à sua produção.

A idéia do filme surge de uma entrevista dada por Chaplin a um jovem repórter do World, de Nova York:

“Ao dizer-lhe que ia visitar Detroit, explicou-me o sistema de trabalho na linha de montagem dos automóveis – uma história constrangedora da grande indústria, atraindo jovens sadios que deixavam o campo e que, ao fim de quatro ou cinco anos, se viam reduzidos a uns frangalhos nervosos. Foi tal conversa que me deu a idéia para Tempos Modernos.” 150

Rudolf Laban viria, no mesmo período, a analisar o movimento do operariado de que Carlitos igualmente se utiliza, reconhecendo um novo paradigma rítmico comportamental:

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O artesão perde o controle sobre sua produção a partir do momento em que passa a trabalhar nas linhas de produção capitalistas. O produto, então, passa a ter um valor inversamente proporcional a sua durabilidade. O artesão valoriza o trabalho de outro artesão, pois valoriza o aprendizado das técnicas, do conhecimento. Na linha de produção, o artesão não valoriza o trabalho feito por si próprio, pois não tem o conhecimento do início da obra e muito menos de seu término. Ele é agora parte, engrenagem da máquina.

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“As ações dos operários industriais contemporâneos são muitas vezes restringidas a um ou outro dos ritmos fundamentais151. (...) Não expressam eles apenas estados de ânimo, como também criam hábitos de estados de ânimo, se forem repetidos com alguma freqüência. Ao se observar os trabalhadores saírem da fábrica, ao cair da tarde, pode-se reconhecer os ritmos que vieram executando ao longo do dia, no fluir de seus movimentos cansados ou excitados.”

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Chaplin em “Tempos Modernos”

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Ritmos determinados pelos antepassados gregos, citados no capítulo 3.3 (Para maiores detalhes vide Laban, Rudolf. Domínio do Movimento, p. 197-200

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A1.7 – O djembê

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Procuraremos aqui familiarizar o leitor acerca do instrumento que utilizamos no espetáculo PRIMUS: sua origem, sua tradição e os mestres que o difundiram pelo mundo. Entendemos que esta atitude é pertinente na medida em que revelamos nossa devoção sagrada e ritualística com a cultura milenar do djembê, descartando sua utilização apenas como objeto emissor de sons.

A1.7.1 – Origem

Liberiano com djembê do início do século XX A história mais remota do djembê é um

mistério, mas sua associação com os Numus pode, talvez, explicar sua ‘precoce’ dispersão. Os Numus foram uma espécie de ‘guardiões’ de algum tipo de ‘força’ ou ‘energia’ da cultura africana. Eles eram os escultores das Máscaras Kòmò, carregadas dessa energia, e estas simbolizavam a Sociedade Secreta por eles liderada. No 1º milênio os Numus espalham-se por várias partes da região oeste africana,

realizando circuncisões e excisões em crianças, expulsando as energias ‘negativas’ de seus corpos, marcando suas entradas para a vida adulta (ou adolescente). Forjavam também artefatos agrícolas, pois eram conhecedores profundos da arte de manusear o ferro.

O djembê é diretamente ligado a essas ocasiões, sendo tocado para a sociedade Kòmò nas cerimônias de excisão, circuncisão, acompanhando o trabalho nas lavouras,

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Os dados referentes a este item tiveram como fonte de pesquisa histórica os livros Mandiani Drum and

Dance de Mark Sunkett, (Ed. White Cliffs Media), 1995 e Mande Music de Eric Charry (University of

Chicago Press), 2000. As referências aos estilos de cada percussionista são frutos da pesquisa desenvolvida junto ao grupo Zaouli e fazem parte de um acervo pessoal de estudo e ensino da percussão africana.

celebrando as colheitas, etc. Os Numus são também escultores do corpo do djembê e, ao que parece, os pioneiros na utilização do instrumento.

É comum, na África, que o ‘tocador’ de djembê seja identificado pelo seu sobrenome, ligado a uma linhagem ancestral que difunde sua cultura. Os sobrenomes mais comuns são Susu ou Mandingo. Uma variação de Mandingo ocorre em Gâmbia (Mandinka ou Manika), em Mali (Bambara), Costa do Marfim (Djula), no sul da Guiné, em Serra Leoa e na Libéria (Tomamania e Koniaka) e na grande maioria não procedente de uma linhagem de artesãos (Keita e Konaté). Uma minoria é de origem Jeli (profissionais cujas habilidades foram esculpidas, treinadas com base numa longa tradição familiar).

Os Malinké, pertencentes ao grupo dos Mandingo, ou ‘povo do Mande’ (Mande é uma vasta região que compreende os países Mali, Guiné, Burkina Faso, Costa do Marfim, Senegal e Serra Leoa, principalmente), são artistas excepcionais e desenvolveram, ao longo de séculos, ritmos, técnicas e linguagens muito próprias e complexas no djembê, com total conexão com os vários eventos da sua sociedade, e isso ocorre, em especial, na Guiné.

A1.7.2 – Tradição

A construção do instrumento, na África, é envolta numa prática que mescla a tradição ao ritual. Com a difusão do instrumento pelo mundo, uma demanda consistente vem fazendo com que sua fabricação perca consideravelmente este caráter, e somado a isso, as grandes fábricas de instrumentos musicais agregaram a sua linha de produção a criação do djembê industrial.

Djembê antigo (século XIX) Na tradição africana, que ainda se mantém, o ritual tem

início na escolha da madeira, que varia de acordo com a região e a disponibilidade. Lenke é a preferida também por haver uma

crença sobre sua forte espiritualidade. Os africanos têm de pedir licença ao espírito da árvore ou esperar que ele tenha saído antes de cortá-la e isso é feito com o auxílio de um

oráculo. Caso o espírito responda positivamente, ele protegerá o músico por todo o tempo em que ele tocar o djembê; caso contrário, outra árvore deverá ser consultada. Esse ritual constitui-se como um forte vínculo entre o músico e seu instrumento; em tempos antigos, um músico costumava manter seu instrumento por anos e anos, sem que ninguém pudesse tocá-lo.

Geralmente as peles usadas para a produção da ‘voz’ do instrumento são de cabra: tratadas, umedecidas, ressecadas e colocadas por sobre a extremidade superior do corpo do djembê (ou a ‘boca’ do instrumento), usando, para isso, cordas pré-estiradas e alguns anéis de ferro, que prendem as cordas em três locais diferentes do djembê. No passado eram usadas peles de antílope, hábito esse extinguido, por razões óbvias. Igualmente as cordas usadas para sua amarração eram de couro. Hoje, linhas sintéticas desenvolvem a mesma função.

O djembê pode ser adornado com o que se chama de ‘orelhas’, que são placas de metal cortadas nesse formato com anéis por toda a sua volta e que se fixam a ele por uma pequena haste metálica, geralmente, por entre as cordas de seu ‘corpo’.

Da esquerda para a direita: os quatro primeiros são de Mali, os dois seguintes da Guiné

(um deles com ‘orelhas’) e o último, do Senegal

Outro fator importantíssimo é o corpo do instrumento, não só o tipo de madeira, mas a espessura, a maneira como foi tratada, a relação do ’pé’ com o resto do ‘corpo’ e por fim, depois de pronto, o seu tamanho em relação à altura de quem o toca.

Hoje o djembê está espalhado pelo mundo todo, sendo usado nas mais diversas formas de expressão, embora sua prática e difusão de conhecimento tenham sido severamente diluídas e desconhecidas pelos não africanos. Porém, a cultura Malinké ainda é o núcleo de todo o conhecimento, onde o djembê possui verdadeiros mestres que fazem dele não apenas um belo instrumento, com poder de expressão inigualável, mas sim um meio de comunicação, seja com a linguagem musical, seja com a dança ou com o conjunto, como um todo.