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“O profano olha. O sábio vê. O liberto percebe o ritmo dos ritmos.”

Provérbio oriental

Ao trazer o conceito de “ator-bailarino” enunciado no capítulo anterior (capítulo 2.1, nota 4) e a descrição de Gordon Craig sobre o ator Henry Irving, o qual havia dançado no palco ao invés de andar, pretendemos demonstrar que o movimento, ancorado e cônscio da referência rítmica, liberta-se, por exemplo, da gravidade ou de uma execução automática, apenas regrada por uma batida constante pouco variável. O movimento natural, mecânico, aos poucos cede lugar ao gesto dançado, ‘desenhando’ no espaço uma outra qualidade de energia. Corroborando nossa suposição, Susanne Langer diz ser esta ‘libertação’

“(...) um efeito direto e potente do gesto ritmado, realçado pela postura distendida que não só reduz as superfícies de fricção do pé, mas também restringe todos os movimentos corporais naturais – o livre uso de braços e ombros, as viradas inconscientes do tronco e especialmente as respostas automáticas dos músculos da perna em locomoção – e, destarte, produz uma nova sensação corpórea, em que toda tensão muscular se registra como algo cinestesicamente novo, peculiar à dança. Em um corpo disposto de tal maneira, nenhum movimento é automático; se alguma ação avança espontaneamente, ela é induzida pelo ritmo erigido na imaginação e prefigurado nos primeiros atos, intencionais, e não pelo hábito prático. Em uma pessoa com pendor pela dança, essa sensação corpórea é intensa e completa. (...) É a sensação de virtuosismo, afim ao senso de articulação, que distingue o músico ou executante talentoso. O corpo do dançarino está pronto para o ritmo.(...) Dois compassos, quatro compassos, os pés começam a bater, os parceiros a conjugar seus movimentos, e o êxtase aumenta na repetição, variações e elaboração, sustentado por um pulsar de som que é mais sentido do que ouvido.” 86

O reconhecimento do metro aos poucos dá passagem à liberdade do fraseado, que acentua um apoio em um dos pés, sustenta a energia num impulso para o alto, dobra a

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quantidade de movimentos em relação ao tempo (metro), enfim, proporciona ao intérprete a conjugação do ritmo e do movimento em um desenvolvimento uno.

Num primeiro momento, o de reconhecimento da estrutura rítmica, alguns alunos optam por buscar deslocamentos que tem no pulso o apoio básico, enquanto outros não se atêm a ele, experimentando uma movimentação mais livre e irregular. Enquanto uns preferem o metro, outros recorrem ao fraseado do ritmo. Estão, em suma, tateando-se interna e externamente, procurando desenhar no espaço a ‘leitura’ do que os sentidos experimentam: os ouvidos à escutar o som, a pele à sentir a vibração (sobretudo quando a música é executada ao vivo), os olhos a verificar outras leituras do mesmo ritmo. Porém, verificávamos que o equilíbrio entre metro e fraseado, no mesmo corpo, necessitava ser mais estimulado. Laban, tomando o trabalho do bailarino, na mesma situação, coloca que:

“Até certo ponto, é verdade que as pernas e pés do bailarino prefiram a função métrica; mas os pés, braços e mãos deveriam ser igualmente capazes de expressar as qualidades de um ritmo temporal livre. Na verdade, o corpo como um todo deveria ter condições de exprimir as vibrações e as ondas regulares e irregulares do movimento.” 87

Para compensar essa deficiência, uma das opções que oferecíamos aos alunos era o acompanhamento melódico, seja por um instrumento de percussão com escalas tonais tocado concomitantemente à um tambor, seja por outro instrumento, como por exemplo o violoncelo, usado em algumas de nossas experiências. A tentativa era a de termos os dois estímulos musicais temperando diferentes reconhecimentos corporais. Enquanto o pulso vigoroso do tambor ditava uma marcação precisa do metro, o som melódico do violoncelo tanto acompanhava a medida dada pelo djembê quanto apostava em frases mais extensas que ultrapassavam os limites do compasso (Faixa 06). A música ali gerada produzia em nós, intérpretes, um movimento mais completo, pois nosso intuito e indicação eram de que o pulso rítmico fornecesse um acento vertical durante o percurso, conectando-nos à ‘terra’, enquanto a melodia nos instigasse a trabalhar um desenho horizontal do movimento, ligando-nos a uma suspensão no ‘ar’. Laban nos traz uma visão relativa à estes estímulos

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proveniente da cultura grega. Para os gregos havia 6 ritmos fundamentais (Troqueu, Iambo, Dáctilo, Anapesto, Peão e Jônio), assim

“(...) consideravam que todos os demais ritmos eram variantes destes seis fundamentais. Estes ritmos, denominados de medidas, eram organizados em versos, estrofes e poemas. Consideravam eles que o ritmo é o princípio ativo da vitalidade. Em relação à música, investiam o ritmo de um princípio masculino e a melodia de um feminino. As combinações destes ritmos detinham associações especiais na mentalidade grega (...)” 88

Do ponto de vista rítmico, nossos horizontes ampliavam-se no sentido de reconhecer outro caráter de execução do instrumento percussivo, sem torná-lo sonoramente maçante, ‘picado’ em suas transições. Na contramão desse aprendizado, a leitura do movimento dava deixas precisas das necessidades rítmicas para cada partitura. As indicações de desenvolvimento do movimento em seus mais variados sentidos passavam a ser uma espécie de pentagrama escrito no espaço com mesclas de movimento e ritmo, nos fazendo refletir sobre a possibilidade de transformação das qualidades corporais em pulsos rítmicos durante as ocorrências artísticas, as quais seriam mais tarde esclarecidas por Rodrigues, que esboça um panorama89 ligado às diversas formas de trabalho com os pulsos espaciais, – em que julgamos haver uma ponte com o enunciado de Laban acerca dos ritmos-espaço – geradores de atividades diferenciadas do movimento e suas manifestações ritualísticas.

“RITMO-ESPAÇO” MOVIMENTO MANIFESTAÇÃO RITUAL

Pulso na vertical Acentuação do eixo- mastro.90

Moçambique (MG), Ciranda (PE)

Pulso na horizontal

Associado a algumas danças de orixás femininos, nas quais ocorre o movimento da bacia em infinito.

Canbombe (MG)

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Laban, Rudolf. Domínio do Movimento, p. 199 (grifos meus) 89

Rodrigues, Graziela E. F. Bailarino – Pesquisador – Intérprete: Processo de Formação, p. 76-77 90

Ver maiores detalhes em A Estrutura Física - Rodrigues, Graziela E. F. Bailarino – Pesquisador –

Pulso pendular

laterais

Sustenta o centro do corpo de tal forma que

possibilita o movimento das pernas nas laterais sem que haja a transferência do peso.

Caboclinhos (PE)

Pulso pendular

frente e trás

As partes anterior e posterior do tronco são igualmente acentuadas durante o movimento.

Os Caboclos no Boi de Matraca (MA)

Laban91, por sua vez, afirma ser o ritmo-espaço a derivação do “uso de direções relacionadas entre si”, resultando em “formas e configurações espaciais”, dentre as quais destaca aspectos importantes, mas que relacionados com nosso raciocínio, tomamos emprestado apenas um: “o desenrolar sucessivo de direções variantes”, que “em termos de comparação com a música (...) seria o equivalente à melodia.”

Tanto Laban quanto Rodrigues nos fazem retomar a questão dos estímulos sonoros como determinantes dos desenhos pelo espaço. A nosso ver, seus postulados apontam caminhos que sugerem o aperfeiçoamento corporal em harmonia com padrões musicais diferenciados.

Acima de tudo, a experiência que praticamos em sala de aula serviu para demonstrar-nos – além da eficácia do estímulo melódico e do encontro entre dois instrumentos distantes (um djembê africano rústico e um violoncelo europeu clássico) – a necessidade de agregar ao metro ou ao fraseado rítmico uma condução ainda mais fluente, como que na tentativa de ‘tirar’ melodias, timbres outros do embate entre a mão e a pele do instrumento.

Nesse momento foi que nos servimos do estudo da percussão árabe, em especial, de instrumentos oriundos do Irã e do Egito, por possuírem uma característica de toque mais sutil, uma técnica mais elaborada e de timbres que se diferenciavam dos do djembê.

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Esse recurso trouxe ao trabalho coreográfico outra referência sonora e uma mudança sutil nas transições entre as seqüências de movimento, retirando a ênfase existente no pulso durante as primeiras experiências. Outra contribuição que acredito ser relevante para o processo de aprendizado foi uma espécie de ‘contaminação’ dos timbres e técnicas dos diferentes instrumentos utilizados em aula. A manulação, o peso do golpe desferido contra a pele, enfim, as técnicas peculiares a cada instrumento passaram a criar entre si um desdobramento técnico para uso geral. Esse dado serviu para tornar o vigor métrico do djembê um tanto mais ‘macio’, enquanto que as sutilezas do zarb e do derbak92 ganharam uma acentuação mais presente. Os movimentos corporais conseqüentemente foram contaminados, por um lado pela mescla das técnicas e instrumentos, por outro, pela segurança maior dos alunos no exercício da conscientização rítmica.

Outros recursos nos auxiliaram a tornar o ritmo um pouco mais fluente e por sua vez os movimentos e coreografias ligadas à ele. Sobre este assunto trataremos no próximo item.

Derbak