• Nenhum resultado encontrado

“Quando nada parece ajudar, eu vou e olho o cortador de pedras martelando sua rocha talvez cem vezes sem que nem uma só rachadura apareça. No entanto, na centésima primeira martelada, a pedra se abre em duas, e eu sei que não foi aquela a que conseguiu, mas todas as que vieram antes.”

“Repetir repetir – até ficar diferente. Repetir é um dom do estilo”

Manoel de Barros

Para o ator, pedagogo e pai da mímica moderna, Étienne Decroux, a mímica era “um retrato de trabalho”. Com isto queria dizer que seu aperfeiçoamento dependia de dedicação extrema e treinamento disciplinado. Uma ação completa requeria um fracionamento gestual rigoroso, em que pudessem ser verificadas as qualidades de esforço do movimento em quaisquer dos momentos onde, por ventura, a ação se extinguisse. Fracionar a ação ou decupá- la era resultado de um exaustivo trabalho de experimentação em diversos matizes de força e duração amparados pela dinâmica da repetição.

Ao repetirmos nossas ações, seja na arte, seja na vida, apuramos sua execução emprestando à ela a qualidade necessária do movimento, nem mais, nem menos. Escovar os dentes, calçar um sapato, tocar um instrumento, saltar acrobaticamente; todas estas ações requerem uma contínua visita aos seus desdobramentos no espaço e no tempo para tornarem sua execução fluente, e consequentemente, precisa. Sobretudo nas artes do palco, onde representamos ações que não estão sujeitas aos nossos ânimos diários, mas sim aos da personagem.

No trabalho com a percussão, é a repetição o alimento íntimo do apuro técnico, em que cada compasso nos faz refletir melhor sobre as deficiências do compasso anterior. No trabalho com o corpo a repetição age da mesma maneira, pois constitui uma ação em si que deve ser praticada, como dita o seu significado, inúmeras vezes.

Assim como a ação disciplinada de Decroux, o trabalho de reprodução da ação conduz-nos ao que costumo chamar de ‘amnésia’ do movimento. O significado clássico da patologia em questão centra-se na perda de memória temporária ou permanente. Tirado de um treinamento com ritmos africanos a ocorrência desse conceito se dá quando

executamos dois ritmos distintos – uma polirritmia – ao mesmo tempo. Inicialmente, torna- se tarefa difícil demais canalizarmos toda nossa atenção aos dois ritmos, portanto, é preciso que elejamos apenas um e o repitamos até que ele passe a tornar-se parte de nós, como um sistema involuntário que realiza ações em nosso organismo sem que precisemos manter sua execução consciente. A ‘amnésia’ se instaura quando conseguimos conversar livremente, sobre qualquer assunto, principalmente aqueles que nos fazem utilizar a memória, ou seja, enquanto tocamos o ritmo, respondemos à várias questões relativas a acontecimentos passados: o que comemos no dia anterior, que roupa vestimos, a que horas acordamos. Esse tipo de internalização inconsciente se revela eficaz quando o ritmo permanece preciso, inalterável, enquanto respondemos às perguntas sem hesitação; quando esquecemos por alguns instantes do movimento repetitivo que está sendo executado com alguma parte de nosso corpo e temos nossa atenção liberta para outros tratos que a necessitam.

Da mesma maneira coordenamos outras ‘amnésias’ de movimento em nossa vida cotidiana, como ao dirigirmos um carro: enquanto usamos as marchas, equacionamos os pedais, posicionamos os retrovisores, trocamos de música e ainda conversamos com o passageiro ao nosso lado. Aos poucos, pela repetição dessas ações, nos familiarizamos com a execução e coordenamos melhor suas conduções.

A independência de cada uma das tarefas executadas no exemplo anterior é uma terminologia análoga à utilizada na música, em que tempos distintos são coordenados por partes diferentes do corpo do músico, criando uma fluência específica dessas unidades de coordenação rítmica.

Em uma linha progressiva de raciocínio, a fluência de um evento se dá ao custo da repetição exaustiva e disciplinada das independências próprias de cada fator (como vimos no item anterior), alicerçadas por equivalentes amnésias de movimento praticadas em separado, uma a uma, como na mímica de Decroux. O gesto fluente, na mímica, esconde as unidades menores de conscientização muscular, óssea e articulada do movimento, num

estudo dinâmico da ação. Decroux101 chama esse estudo de “dinâmicas de ritmo” ou “dinamoritmo”.

Decupagem: o mímico Etienne Decroux apanha uma flor no chão.

Vários estudiosos, no decorrer da prática do mímico francês procuraram definir o dinamoritmo, das quais destacamos duas interpretações:

“(...) estudo da velocidade ou da lentidão do deslocamento de um orgão, do grau de intensidade da contração e relaxamento.” 102

“O dinamoritmo é a inter-relação de força, quantidade, duração e intensidade. Poderíamos, no entanto, defini-lo de uma outra maneira, menos técnica e talvez menos precisa (...), mas que pode ser mais estimulante para o ator: o dinamoritmo é a musicalidade ou a densidade musical do movimento.” 103

As idéias de um corpo que produz uma musicalidade vêm de encontro com nossas inquietações na medida em que coloca o intérprete como um instrumento transformador do conceito rítmico tradicional, gerado pela teoria musical. Mesmo a música, de qualquer espécie, desprovida deste temperamento natural do corpo, produzida em estados apenas técnicos, virtuosísticos de criação e produção, converge-nos à apreciações enfadonhas do acontecimento artístico. Para Jourdain

101

Burnier, Luis O. A Arte de Ator, p. 46 102

Corinne Soum apud Burnier, Luis O. A Arte de Ator, p. 46 103

“Um pianista que toca metronomicamente também se movimenta metronomicamente. Só vê- lo já nos adverte que nossos ouvidos seriam mais felizes em outro lugar.” 104

Decroux sabia disso e procurava amenizar o caráter fragmentado do treinamento decupado cantando para seus alunos:

“Com efeito, as aulas de Decroux eram todas cantadas. Para a execução dos exercícios,

desde os ginásticos até os de expressão, ele cantava velhas canções populares francesas ou inglesas, cuja musicalidade determinava a dinâmica de ritmo dos movimentos.” 105

Para Burnier, a repetição diária deste treinamento sonoro, trouxe, anos mais tarde, em um encontro com seu mestre, um regresso ao trabalho solfejado no corpo:

“(Decroux)...cantou aquelas canções das quais minha memória já não se lembrava, mas que

estavam ancoradas em meu corpo, em meus músculos.” 106

Concluindo, acreditamos que a investigação (consciente) do ritmo, fruto de seu caráter instigativo (inconsciente), – e daí o título de nosso trabalho – a descoberta de um ritmo-em-vida, talvez seja um dos caminhos possíveis para tornar o ritmo um elemento puramente humano, concreto, de realização física diária, desmistificando-o de ocorrências ligadas apenas à fenomenologia musical e, portanto, cercado dos obstáculos teóricos de sua linguagem. Para Pitoëff,

“O ritmo está em nós, é a base do sentimento e este, como a melodia, só ilumina. O ritmo é uma força que permite exprimir o inexprimível; força que nos permite por em ordem e no ritmo os movimentos secretos de nossa alma, os quais privados desse guia ficariam em estado de caos. (...) Para que o homem em cena possa descobrir o ritmo interior de sua alma, é preciso antes de mais nada que seu corpo seja iniciado no segredo do ritmo. (...) O corpo que ignorar o ritmo existente nele nunca poderá dirigir sua alma (...)” 107

104

Jourdain, Robert. Música, Cérebro e Êxtase, p. 195 105

Burnier, Luis O. A Arte de Ator, p. 46 106

Burnier, Luis O. A Arte de Ator, p. 46 107

Capítulo 4 – Composição Cênica