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O S TEMPOS E OS ESPAÇOS DA MODERNIZAÇÃO

1. A S MOBILIDADES ESPACIAIS E SUAS RAZÕES NO R ECIFE

Coube a Maria de França, a personagem de Julia Marquezim Enone, correr as artérias do Recife, mas é na personagem resultante de seu delírio, Ana, a rainha dos cárceres da Grécia, que se anunciará uma nova composição emergente do espaço sob a direção e administração da composição de tempo modelado e estabelecido pela sociedade industrial e de consumo. Trata-se de uma configuração, ordenação e disposição do tempo fundada numa forma precisa de prenunciar, fixar, segmentar e regular a escala e o transcurso da dimensão temporal no curso dos dias, semanas, meses e anos, sincronizado com e deduzido a partir da dinâmica e da estrutura das modernas sociedades fundadas no industrialismo, na produção maciça, na organização burocrática, na administração técnica e no consumo massivo de mercadorias portadoras de construções significantes. Conjunção estrutural que confere uma materialidade social e econômica a essa composição de tempo, possibilitando, assim, repartir, estabelecer, orientar e destinar jornadas especificas para execução de atividades e definir os seus limites de continuidade e descontinuidade, podendo, dessa forma, regular, racionalizar, maximizar e dinamizar o transcurso dos indivíduos e das sociedades de forma eficaz, operacional e eficiente.

É o tempo convertido em uma mercadoria que se paga e se consome para extrair e agregar valor, dividido em escaladas e dimensões, arquitetadas a partir do exercício abstrato de frações matemáticas, gerenciando a dinâmica do espaço e dos homens, expurgando para quase todo o sempre o tempo que expressava a relação de identidade do indivíduo para com o seu espaço.

Ou seja: vai se exaurindo um tempo premeditado a partir das configurações, ritmos e variações paisagísticas sobre a dinâmica do espaço que o homem se apropriava para se orientar e regular no transcurso de sua vida, informando aos indivíduos as suas horas de dormir, acordar, trabalhar (quando a manhã chegava), almoçar (quando o sol estava a pino), tirar sesta (quando o calor do sol começava a amenizar e a brisa da tarde já dava a sua presença), voltar a trabalhar (depois das forças refeitas e do descanso), fazer compras (quando a tarde começava a cair), conversar e/ou brincar (antes de ir para casa), jantar (quando a noite chegava e a fome começava a apertar), namorar ou fazer companhia (quando a noite já podia esconder os casais nos becos e ruelas), e

voltar a dormir (quando a noite avançava e o silêncio chegava, ajudando a amortecer o corpo), para quando o dia estivesse clareando, voltar a acordar.

As fases do dia, as estações e o clima ainda serviam como referência de demarcação do tempo decorrido, combinadas com os sinais, sons e ritmos gerados pelas intervenções do homem no espaço físico (as luzes dos postes e das edificações anunciando a chegada da noite, as sirenes de fábricas e escolas informando o início dos expedientes, os movimentos alternados de máquinas e automóveis comunicando e ditando ritmo dos movimentos) para anunciar a repetição de um dia igual a outro promovido por um tempo que ainda não era refém da empreitada, estipulá-lo em formas de tempos necessários para cada ato do dia.

O extrato abaixo, de uma crônica de Osman Lins, na qual descreve o trabalho de seu pai, um alfaiate estabelecido na cidade de Vitória de Santo Anta, conta-nos um pouco da forma como tempo era marcado pela relação do homem com o seu mundo, para daí estabelecer as demarcações do tempo de um dia, de meses e de um ano.

Porque o fim do ano era a "safra". Época das festas e da produção dos engenhos, quando corria mais dinheiro e muita gente começava a enfarpelar- se. A maior parte do ano, mais ou menos de fevereiro a outubro, levava ele uma vida bastante sossegada, mas, como só depois eu viria a saber, sacrificada e triste, Todos os dias estava no trabalho, sempre havia alguma roupa a cortar, mas as encomendas rareavam e ele passava a maior parte do tempo sentado num banquinho, lendo o jornal ou conversando com os amigos da vizinhança. Quando chegava a safra, sua vida mudava por completo. Trabalhava pelo resto do ano. O tanque, em nossa casa, enchia-se de brins molhados, estendidos depois nos arames do quintal. A operação de molhar era indispensável para evitar que a roupa encolhesse depois de costurada. Ele saía cedo, voltava para o almoço, tornava ao trabalho, vinha à noite para a ceia a logo desaparecia, ía fazer serão, só se recolhendo muito tarde. Às vezes, eu ía com ele para esses expedientes noturnos. Havia, então, lâmpadas fortes na oficina, que adquiria com isso um ar de festa, conversava-se alto, fazia-se café e os operários riam, contentes, pois também para eles estava entrando dinheiro. Só um, Severino, excelente oficial, que trabalhou muitos anos com meu pai e de quem me fiz amigo, era capaz de rir com a mesma constância na safra a na entressafra. (Viria depois a estabelecer-se por conta própria e nunca mais tive notícias dele.) Depois das festas, recaía-se na pasmaceira a na espera.182

Já no Recife, a demarcação temporal e espacial regida pelo processo de racionalização do tempo já se premeditava e se imbricava há décadas pela cidade, mas ainda tinha que compartilhar a regência sobre os indivíduos e sociedade com outras formas de tempo. Contudo, a partir do final dos anos 1960, 182

o tempo regido indescritivelmente pelo relógio passou a instituir uma racionalização e organização da vida ritmada da cidade, impondo novas rupturas e periodizações no dia, gerando a ansiedade pela possibilidade de tempo perdido, acelerando o ritmo dos homens na urbe Recife. De seus habitantes, o tempo de sua propriedade lhes havia sido expropriado e um outro instituído para subordiná- lo à lógica da produção, circulação e consumo da mercadoria. O tempo passava a ser mensurado e qualificado pelo quanto foi possível expropriar, produzir e acumular. Disso resulta a angústia da personagem Ana, que foge do tempo e se recusa a tomar conhecimento dele, pois sabe ela que o tempo agora está a serviço da acumulação e do processo de subordinação e coisificação do homem.

O tempo acumula mudanças no espaço. Para não saber de que modo ele passa, Ana, apavorada, cruza a Grécia inteira, de cidade em cidade, de prisão em prisão: foge das transformações nas coisas e, assim, de apreender um dos modos do fluir do tempo.183

O Recife do final dos anos sessenta e da primeira metade da década de 1970 parecia dar razão a Ana. As transformações das coisas e do espaço no qual elas se encontravam obedeciam agora ao modo de fluir o tempo das sociedades industriais e de consumo. Nesse período e até quase 1980, alterações e reformulações urbanas já estavam orientando a cidade para outros parâmetros de mobilidade territorial e de controle do tempo a partir do uso múltiplo e sistemático do automóvel pelos segmentos sociais (classe média de renda média para cima) que podiam adquirir o seu veículo particular. As questões e os embates envolvendo a abertura e o alargamento da Av. Dantas Barreto foram apenas uma cortina de fumaça que ocultava um outro processo de reordenamento urbano mais incisivo e que redefiniria pelas próximas décadas a funcionalidade, a paisagem e a natureza das intervenções do território urbano da cidade do Recife e de outras metrópoles brasileiras. Sobre esse processo vale aqui citar Flávio Villaça em relação ao seu conteúdo e dimensão:

Foram os interesses de locomoção dessa classe que modelaram, a partir da década de 1970, uma parte dos territórios de nossas metrópoles, inclusive seus novos centros. A mobilidade territorial libertou as pessoas da prisão, do peso do espaço. Para as famílias que conseguiram aumentá-la, ampliou-se o raio de ação dentro do qual podiam fazer uso do comércio e dos serviços, de médicos, dentistas, clubes, restaurantes, escolas, etc. Inversamente, as lojas - e obviamente os shopping centers -, os hotéis, os consultórios, os restaurantes e também as academias de judô, os salões de beleza, as escolas maternais ou elementares, etc. aumentaram seu raio de ação em função da clientela

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motorizada. Essa classe, e o Estado por ela dominado, produziram então um espaço urbano em que elas podiam desfrutar ao máximo as opções que a liberdade espacial lhes oferecia. Isso ocorreu inclusive - em maior ou menor grau - com os centros principais de nossas metrópoles. Por isso, eles passaram, a partir dos anos 70, a assumir enormes dimensões e grande fragmentação; para isso precisaram de nova localização e de uma nova cidade, mais adaptada ao automóvel. Grandes estacionamentos, novas avenidas, vias expressas e rodovias. Elas permitiram que as classes de alta renda continuassem se deslocando para localizações mais afastadas. Entretanto (o controle do tempo de deslocamento é vital), apesar da maior mobilidade territorial, elas, à medida que se afastavam, procuravam minimizar o tempo de deslocamento ao centro, trazendo-o para sua direção. Isso ocorreu, porém, em uma parte clara e específica da cidade: a região geral onde se concentrava a alta renda.184

A cidade do Recife, como uma das metrópoles brasileiras, não ficou a margem desse processo de modelação de parte de seu território em prol dos interesses de locomoção para os segmentos sociais motorizados. Já no primeiro mês de 1969, a Prefeitura da Cidade do Recife promovia desapropriações e demolições de casas, casebres e sobrados para o alargamento da Av. Cruz Cabugá.185 O projeto de alargamento desta avenida remontava aos anos de 1964 a 1968, período da primeira gestão do prefeito Augusto Lucena. Nesta época, o então prefeito do Recife havia conseguido autorização do governo inglês para fazer um recuou em parte do Cemitério dos Ingleses para o alargamento da avenida. Geraldo Magalhães, prefeito do Recife entre 1969 e 1971, retomou as obras de alargamento, mas foi na segunda gestão de Augusto Lucena, de 1971 a 1975, que o alargamento da Av. Cruz Cabugá foi concluída com a desapropriação de 50 imóveis (casas e fábricas), ganhando 860 metros, de um total 2.280 metros, dos quais 1.400 metros entre a Escola de Aprendizes Marinheiro, divisa com Olinda, até a Av. Norte, 880 metros na faixa que vai desta avenida até a Av. Mario Melo, com uma largura em toda a sua extensão de 17 metros.186

Esta obra tinha o propósito o de facilitar o escoamento do tráfego entre o Recife e Olinda, que seguia, quase que obrigatoriamente à época, na direção da avenida que se articulava com Av. Olinda. Outras tentativas para aliviar esse tráfego haviam sido feitas pelo ex-prefeito de Olinda, Barreto Guimarães, durante o seu de mandato de 1959 a 1963, quando tentou viabilizar um segundo corredor entre o Recife e Olinda. A alternativa de tráfego passava pela construção e 184

VILLAÇA, Flávio. Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo: Studio Nobel/FAPESP/Lincoln Institute, 1998, p. 280.

185

Diário de Pernambuco, de 03/01/1969, p. 3, 1º Caderno e 07/01/1969, p. 7, 1º Caderno.

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alargamento da atual Av. Prof. Andrade Bezerra, localizada no bairro de Salgadinho (Olinda), ligando-a, através da atual Rua Alemanha, à Av. Olinda, à Estrada de Belém, no bairro de Campo Grande e Peixinhos, bairros limites ao norte de Recife, com Olinda. Contudo, esse prefeito enfrentou problemas para executar a obra viária devido à resistência de um pároco que se recusava a ter o pátio de sua igreja, onde hoje está localizado o Centro de Convenções de Pernambuco, cortado por uma avenida.187 A persistência do prefeito prevaleceu, mas, já no final da década de sessenta, a solução encontrada se mostrava insuficiente para comportar o fluxo crescente de veículos entre as duas cidades.

Nesse sentido, o alargamento da Av. Cruz Cabugá se apresentava como uma solução, emobra de caráter provisório, pois estávamos à época num período em que qualquer previsão de aumento do número e da circulação de automóveis e de soluções e empreitadas de obras viárias para sua locomoção se apresentavam extremamente defasadas pelo número crescente de veículos em circulação para os próximos anos, conforme podemos verificar na análise que produzimos a partir dos indicadores da TABELA 02 (Capítulo I). Ou seja, a cidade estava entrando numa fase histórica em que seria subordinada à hegemonia que direcionava à manutenção e expansão do espaço urbano dirigido ao uso intensivo do automóvel de caráter particular, o tradicional carro de passeio.