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Nesse Recife, atravessado pela história e entrelaçado numa reificação modernizante, configura-se um novo espaço que contém em si a tradição da cidade de Olinda e a modernização de São Paulo, cidades que em toda narrativa ora invadem o Recife com seus referenciais para lhe dar sentido, ora com ela interagem para que seja operado o estranhamento, distanciando-se, assim, de si para descobrir o que lhe é familiar. É por isso que pelas tortuosas artérias do Recife, em constante decomposição e recomposição, vagueiam Julia Marquezim Enone e Maria de França com as suas marcas, maturando e compondo seu vir a ser em Ana, tentando, a partir dela, desvelar aquilo que existe por pressuposição, que está no limite de suas consciências, que se está para além de suas percepções ou aquilo que está para além do que poderia ser pensado.

As três protagonistas não se contentam mais com as possíveis verdades, querem a posse da realidade, querem deter algum grau de familiaridade, em face das coisas que valem para elas, podendo, assim, ter consciência dela, descobrir suas leis de funcionamento e promover suas reações. A Grécia do título do romance é e/ou não é aquela da história da Antiguidade Clássica. Ela agora é o resultado das experiências vividas retidas na memória, da modernização que se forja como imanente, da insurreição das protagonistas, na qual a história de Ana a perpassa como o compêndio da história dos vencidos, a bula da autenticidade de seus sonhos e projetos e a marca que aviva as suas memórias e fornece o traço distintivo de sua luta:

Nesse lugar nomeado Grécia, que, no espírito de Maria de França, flutua como ilha sobre imensa nuvem arenosa, a invencível Ana vagueia até à morte, renegando, obstinada, qualquer ocupação produtiva, compelida ou entregue por princípio a todo gênero de falcatruas, do estelionato ao furto, com a só restrição, que se impõe, de agir sem armas. Sempre a mudar de sobrenome, mas conservando o nome de batismo, para honrar o que ela considera a sua

marca, sobe, em uma embarcação pintada de vermelho, como as naus alígeras

de Ulisses, de Creta ao continente, age na antiga Citera e a seguir em Esparta, 20

cruza o Peloponeso, é presa e condenada em Maratona, em Atenas, em Samos, em Corinto, em pequenas cidades banhadas pelos mares Jônio e Egeu, traçando sobre todos esses nomes, magnificados por acontecimentos históricos e míticos (onde vos bateis agora, preclaro Aquiles e tu, que submeteste a Pérsia?), traçando nova gesta, individual e sem fulgor.21

Nas cidades as protagonistas produzem seus feitos, acontecimentos ou conjunto de acontecimentos em forma de história, mas uma história sem o fulgor das histórias dos heróis, estadistas e líderes eleitos pelas descrições assépticas da realidade histórica que se prestavam ao exemplo, com pretensões pedagógicas e servindo de instrumento de educação cívica.22 Sobre as cidades, as protagonistas e suas histórias repousam, no curso da narrativa de A rainha dos cárceres da Grécia, uma reflexão que recusa o historismo23 (a compreensão da história como fluxos e conjuntos dispersos de singularidades, desconectados de processos e apresentados como fragmentos autárquicos, que privilegia a historização dos pontos de vista dos observadores)24 ou uma hermenêutica que se propõe outorgar um sentido para o mundo da história e conhecê-lo através das interpretações dadas pelas expressões de suas manifestações.25

A reflexão operada no curso da narrativa de A rainha dos cárceres da Grécia se volta para uma outra possibilidade: a de que a história contada pode ser analisável (investigar os elementos ou componentes significativos de uma realidade histórica), observável (examinar a realidade histórica diretamente a

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LINS, Osman, op. cit., p. 201-202. 22

Fazemos aqui referência à produção e à circulação do conhecimento histórico fundado nos paradigmas e proposições da Escola Metódica. Sobre este assunto, consultar: REIS, José Carlos.

A história entre a filosofia e a ciência. São Paulo: Editora Ática, 1999, 2ª edição (Série

Fundamentos, 125), pp. 24-25. 23

Tradicionalmente, a historiografia tem usado o termo historicismo para designar uma das correntes teóricas e metodológicas do conhecimento histórico que tinha a história como um critério fundamental na compreensão e interpretação das culturas e sociedades humanas, sem se submeter aos grandes modelos explicativos que fundamentavam, de forma determinista e prospectiva, o processo histórico em suas etapas gerais de desenvolvimento ou progresso, que tinha em Dilthey um dos principais mentores. Contudo, o termo historicismo comporta uma dimensão mais ampla: a qualidade ou condição do que é histórico, podendo ser usado por diversas concepções de estudo e pesquisa da história (hegelianismo, marxismo, escola metódica e as diversas vertentes da nova história). Neste sentido, com o propósito de especificar historicamente uma corrente historiográfica (o tradicional historicismo), tem-se utilizado recentemente o termo historismo em substituição ao historicismo, deixando este último para um emprego mais geral que visa qualificar que diversas concepções de história delegam a qualidade ou a condição do que é histórico aos seus objetos de estudos.

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Sobre essa crítica ao historismo, em sua versão mais moderna, consultar: FALCON, Francisco J. Calazans. História e representação. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e MALERBA, Jurandir (orgs.). Representações: contribuição a um debate transdisciplinar. São Paulo: Papirus, 2000, p. 62.

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partir da contra-prova), objetivável (expressar a realidade histórica numa forma em que outros também possam experimentá-la) e quantificável (desenvolver formas de diagnosticar com precisão a realidade histórica), uma história que pode vir a ser estruturada e pensável, penetrável em toda a sua realidade, não se restringindo só a uma compreensão (o entendimento do significado de algo) e a uma interpretação (conferir um certo sentido do significado de algo), e sim que pode ser explicada (desvelar as razões de algo). Quem realiza a reflexão é um narrador que não se identifica pelo nome. Um indivíduo, professor de ciências naturais, ex-companheiro de Julia Marquezim Enone, que descobre o seu romance inédito sobre Maria de França, e parte para realizar um ensaio sobre o mesmo e uma reflexão sobre os sujeitos, as cidades e as histórias que permeiam os escritos da ex-companheira e as histórias da mesma e de sua própria vida.

Estabelecido em São Paulo, esse protagonista, a partir do seu apartamento, penetra e pensa Olinda, Recife e São Paulo. Ao contrário de Abel, principal protagonista de Avalovara, ele não mais precisa estar nas cidades, pode recorrer não só à memória, mas também às informações sobre as cidades que em tempo real lhe chegam ou estão dispostas em algum impresso. Como o próprio Osman Lins, o narrador se encontra sitiado numa cidade que ainda lhe é estranha e tormentosa, a qual quer deixar e ir para o Recife, sem ter que voltar.26 Mas mesmo que não consiga voltar para os vínculos de origens de sua identidade e dores, em São Paulo estará distante e cada vez mais perto do Recife, já que as rotas do mundo a serem percorridas não são mais medidas pela relação do tempo e espaço que o homem deve caminhar, mas sim na velocidade dos meios de comunicação e translados da modernização tecnológica. Tempo e espaço são redimensionados e cabe ao narrador a tarefa de fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso,27 narrar a história para que ela não seja perdida, com o dom de despertar no passado as centelhas da esperança.28 Pois para esse narrador o passado dirige um apelo e esse apelo não pode ser rejeitado 26

Osman Lins teria dito Quase detesto São Paulo para Letícia Lins em uma entrevista para o Jornal do Brasil, datada de 25/01/1975. Essa entrevista, intitulada Um livro real sobre um livro

imaginário, consta de LINS, Osman. Evangelho na taba: outros problemas inculturais brasileiros.

São Paulo: Summus Editorial, 1979, p. 194. 27

BENJAMIN, Walter, op. cit., p. 224. 28

impunemente.29 Tanto é assim, que o próprio narrador tem consciência de que ele não conta uma história, é a história que o conta.30

5. A

RAINHA DOS CÁRCERES DA GRÉCIA COMO UMA PRÁXIS