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Em toda a trajetória desta pesquisa situa-se o objeto de estudo a partir de um contexto social, pós-moderno, globalizado, no qual se intensificam as múltiplas expressões da questão social indígena, aqui entendida como o conjunto das mazelas sociais circunscritas a esses grupos étnicos que necessitam ser enfrentadas pelo Estado sob pena de agravamento da degradação, degeneração e pauperização da condição humana indígena, na atualidade. As políticas públicas se constituem em canais criados pelo poder estatal para “responder” às exigências contemporâneas da sociedade. No entanto, o manejo das expressões da questão social pelo poder público tem avançado muito mais em termos do que Harvey (2012) chama de “normas de regulamentação” do que propriamente em uma práxis capaz de transformar as diferentes nuances que apresenta em suas múltiplas facetas.

David Harvey em sua obra A Condição Pós-moderna (2012) colabora com fartas reflexões sobre a compreensão desta questão, cujo cerne está voltado para as transformações político-econômicas do capitalismo desde o final do século passado. Isso mostra que a questão social indígena é histórica e se processa na materialidade das relações capitalistas de produção, onde conflitos, jogos de interesse, força e poder fazem parte determinando o formato das políticas e práticas, fazendo com que, muitas vezes, ela seja mais legalista e normativa, sem que produza mudanças efetivas e asseguradoras de direitos. Isto faz da questão indígena, conforme coloca Martins (2012), uma fronteira40 que ao mesmo tempo em que se expressa no limite entre índios e não índios, “civilizados” e “não civilizados”, cria demandas, gera conflitos e institui novas relações, o que por sua vez, faz a diferença na hora

40A fronteira é o espaço próprio do encontro de sociedades e culturas entre si diferentes, a sociedade indígena e a sociedade dita “civilizada”, e também as várias e substancialmente facções de brancos e mestiços que somos. A fronteira é o lugar da alteridade, da indefinição e do conflito. Tem sido o lugar da busca desenfreada de oportunidades. Mas também o lugar do genocídio dos povos indígenas, no mínimo o lugar de sua redução aos valores, concepções e modos de viver da sociedade que os domina. Tem sido o lugar da espoliação de camponeses que, lenta e secularmente expulsos de áreas incorporadas ao processo moderno de reprodução ampliada e territorial do capital, refugiam-se na terra de ninguém que separa o mundo civilizado dos territórios indígena. Tem sido até hoje, o lugar de renascimento da escravidão por dívida, da peonagem, da disciplina do troco, da chibata e da morte. (MARTINS, 2012, nota de capa)

de conceber e executar a política pública, pois seja qual for seu objeto não poderá ser tratado como um elemento exterior à sua realidade histórica, pois é portador de múltiplas expressões que são condicionadas e determinadas pela relação espaço-tempo. Neste movimento, as atitudes, necessidades de consumo e estilos de vida, se configuram como produtos das relações de mercado e enquanto tais se reproduzem de forma contextualizada, respondendo à dinâmica de cada contexto em cada tempo. Esse tem sido o substrato que alimenta a necessidade de atuação da Política Pública de Atenção à saúde do Índio. Tal política tem seu arcabouço jurídico constituído na “intenção” de manejar a questão social indígena de modo a eliminar ou conter seu poder de degenerescência sobre a qualidade de vida desses povos.

Este é o desenho no qual as expressões da questão social indígena na realidade contemporânea ao se apresentarem, de forma multifacetada, têm como pano de fundo todo um processo histórico, que vai se delineando a partir das relações capitalistas de produção gestadas ao longo de, pelo menos, cinco séculos. Deste contexto, emergem como principais expressões da questão social indígena as frentes de expansão, a desapropriação das terras para dar lugar aos projetos de investimento público e privado, principalmente no tocante ao agronegócio, a deterioração do perfil de saúde, a educação fundamental, descontextualizada, os contatos interétnicos conflitantes, dentre outros. Em síntese, conforme coloca Venturi e Bokany (2013, p.13) “o próprio modelo de desenvolvimento vigente no país tem levado a inúmeros conflitos, cuja dramaticidade já há muito denunciada por lideres indígenas e por indigenistas, está longe de corresponder à percepção da opinião pública”.

Esse conjunto de expressões vem favorecendo o aparecimento de lutas étnicas que, nessa relação espaço-tempo, desafiam as políticas públicas, suas estratégias e suas possibilidades de conter os efeitos degradantes sobre esses povos no que se refere, principalmente, à sua saúde mental. Um olhar sobre esta política vai mostrar que, na sua fragilidade institucional, ainda não foi capaz de promover as condições necessárias para conter os efeitos danosos das expressões sociais que ora vivenciam. Os sistemas de saúde41, quer sejam públicos ou privados, ainda têm mostrado sinais de fragilidade diante das demandas sanitárias, visto que não conseguem estabelecer mecanismos de controle aos diversos fatores que afetam a saúde e o bem estar da população indígena. Não existe ainda uma estrutura consolidada que garanta a prevenção de doenças no seu formato holístico, a

41Sistemas de saúde, entendido como "o conjunto de relações políticas, econômicas e institucionais responsáveis pela condução dos processos referentes à saúde de uma dada população que se concretizam em organizações, regras e serviços que visam a alcançar resultados condizentes com a concepção de saúde prevalecente na sociedade."(LOBATO e GIOVANELLA, 2012, p. 89).

promoção da saúde, a oferta adequada de serviços, uma estrutura de recursos humanos capaz de dar conta em quantidade e qualidade dos problemas de saúde apresentados pela população.

Agrega-se a isto a má gestão de recursos e o despreparo de muitos gestores para a condução das políticas públicas. Vive-se um cenário complexo e desafiante que requer dos sistemas de saúde, enquanto entes estatais, uma disposição para enfrentar suas próprias fragilidades.

As consequências em torno dessa questão são devastadoras, e mostram como os sistemas estão falhando na garantia de melhores condições de saúde e alívio dos sofrimentos físicos e mentais por que passa a população indígena no país. A pesquisa documental e de campo mostra, nas seções 3 a 5 que o perfil saúde doença da população indígena, na sua grande maioria, ainda é marcado por problemas que poderiam ser evitáveis. Isto, de certa forma, denuncia que as práticas sanitárias desenvolvidas ao logo dos anos têm sido pontuais e individualizadas, enfrentando problemas locais, sem referência mais ampla, configurando, assim, uma prática de cunho imediatista, paliativa e que, por não tocar o cerne da questão, não conseguem avançar, pois não coloca a participação do indígena como processo social contínuo, no qual se alicerçam as estratégias de vigilância dos problemas de saúde indígena, ao tempo em que emergem as proposta para suas soluções. Nisso reside um dos aspectos da cidadania plena.