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3 POVOS INDÍGENAS NO BRASIL: UMA ESCUTA A GERSEM DOS SANTOS LUCIANO E A MARCOS TERENA

3.2 A “sentença social” dos Guajajara: quando a serpente toma conta do Édem

No Brasil, o período que vai de 1964 a 1985 configura-se sob os auspícios da ditadura militar, caracterizada por uma intensa centralização de poder via repressão. Período marcado, também, por movimentos de ambiguidades, em que, ao mesmo tempo há uma busca ao

“fortalecimento” da nação, ergue-se uma estrutura de poder centralizador e repressor marcado pelas práticas de expropriação, julgamento e amordaçamento de ideias, valores e pessoas que ousam, de alguma forma, enfrentar o sistema estabelecido. Foi neste contexto que muitos brasileiros tiveram seus sonhos de liberdade e patriotismo cerceados, culminando com a cassação dos direitos políticos dos opositores ao regime militar, repressão aos movimentos sociais e a toda sorte de manifestação contrária à estrutura de poder. Darcy Ribeiro21, educador, antropólogo, político, como tantos outros expoentes da literatura, da arte e da política tiveram, pelas suas convicções e ideários assumidos, que viver esse longo momento histórico fora do seu País. Encontrando-se em exílio, no Peru, dentre outras ações e produções desenvolvidas, escreveu e publicou em 1976 o romance Maíra.

Este romance é considerado um marco entre seus clássicos da etnologia e da antropologia. Esta obra traz, dentre outros aspectos, o conflito de índios como Avá, também chamado de Isaias, pela Ordem Missionária Cristã, e a jovem loura Alma. Ambos se separam de suas raízes culturais e, ao retornarem, buscam recuperar sua identidade, sem sucesso. O índio Avá saiu de sua aldeia Mairum no Amazonas, ainda menino, para se tornar sacerdote cristão e “aprender com os padres a sabedoria dos caraíbas” (RIBEIRO, 1976). Após quarenta anos, ao retornar para sua aldeia, sente-se como se tivesse perdido sua alma anos a fio. Em seu retorno revive os seus idos de infância, em um convento, em Goiás, e como sacerdote em Roma, e nisto ele conclui: "É como se eu tivesse perdido minha alma, roubada pelos

21Darcy Ribeiro nasceu em Minas (1922), no centro do Brasil. Formou-se em Antropologia em São Paulo (1946) e dedicou seus primeiros anos de vida profissional ao estudo dos índios do Pantanal, do Brasil Central e da Amazônia. Nesse período, fundou o Museu do Índio e criou o Parque Indígena do Xingu. Escreveu uma vasta obra etnográfica e de defesa da causa indígena.

curupiras, e vivido por anos a fio como bicho entre bichos. Volto agora de verdade, me perguntando, quem é o ser que levo a meu povo" (RIBEIRO, 1976 p. 53).

O autor continua a narrativa dizendo:

Quem volta sou apenas eu. Fui a ovelha do Senhor. Volto tosquiado: sem glória sacerdotal, sem santidade, sem sabedoria, sem nada. Tudo que tenho são duas mãos inábeis e uma cabeça cheia de ladainha. E este coração aflito que me sai pela boca”

(RIBEIRO, 1976 p. 53).

Nestes fragmentos, vivencia-se um dos principais aspectos tratados por Darcy Ribeiro em seu romance Maíra, utilizado, neste estudo, para pautar uma discussão fundamental na temática desta pesquisa, que é o "sofrimento mental"e social em que muitos índios Guajajara que vivem no Estado do Maranhão, mais especificamente na região do município de Barra do Corda, vêm passando ao longo do processo de formação da sociedade brasileira. Tais sofrimentos advêm da interação de muitos fatores, principalmente os de ordem social, econômica e cultural. A cada movimento da sociedade em direção à pós-modernidade, novas investidas, tramas, sob a 'hegemonia branca', são instituídas e “impostas” aos povos indígenas como condição para sua convivência em um contexto que não mais é exclusivamente seu, mas é multiétnico, é plural. Essa convivência está longe de ser amistosa, pois tende a expropriá-los de seu território, "tosquiá-los" de sua cultura, valores e ideários nativos.

Durante esta pesquisa, nos contatos sistemáticos com indígenas e indigenistas e nas buscas bibliográficas, pôde-se identificar e avaliar quão complexo tem sido a convivência sócio-histórica desses povos com a sociedade nacional. Em um contexto de total ambiguidade, vivem envolvidos por uma trama social polarizada entre o bem e o mal, o belo e o feio, o moral e o imoral, o certo e o errado. Neste embate, constroem-se e destroem-se perspectivas de vida de jovens, adultos e idosos indígenas. Um dos principais fatores é a identidade – categoria iluminadora desta pesquisa.

Assim como Maíra, personagem que inspirou o romance indígena de Darcy Ribeiro, os índios Guajajara têm passado, historicamente, não só por situações de conflitos e resistências, mas também por situações onde há, em grandes proporções, conflitos de identidade. Vê-se neste romance que, em alguns momentos o autor, ao dar voz ao “índio padre”, ecoa como num gesto de resistência ao processo de aculturação:

Este é o único mandato de Deus que me comove todo: o de que cada povo permaneça ele mesmo, com a cara que Ele lhe deu, custe o que custar. Nosso dever, nossa sina, não sei, é resistir, como resistem os judeus, os ciganos, os bascos e tantos mais. Todos inviáveis, mas presentes (RIBEIRO, 1976, p. 33).

Diante da ênfase dada pelo romancista, é pertinente levantar reflexões que colocam a situação indígena frente a frente com os novos tempos. Assim indaga-se: em eras de pós-modernidade, como permanecer intocável, sem ser afetado pelas mudanças que assolam o contexto de vida de cada ser? Como resistir aos apelos de uma sociedade ditada pelo consumismo, pelo capital volátil, pela violência, pelas SPAs? Por outro lado, como não interagir com uma sociedade que preconiza como valores fundamentais a democracia e a igualdade, o respeito à diversidade? Como não conquistar o direito a serviços básicos como educação, saúde, transporte, moradia, terra, dentre outros? Não seria inevitável através destes contatos que afetam a tudo e a todos, uma mudança nas feições de cada etnia, povo? Entende-se que a sociedade caminha, historicamente, tecendo uma trama de relações que, diante da necessidade de interação dos povos, termina por ‘impor’ a cada povo, raça22, novos princípios e valores, que mesmo distantes daqueles cultivados pelos nossos ancestrais, são incorporados como condição para nossa aceitação como cidadão. Tal ‘imposição’, muitas vezes, produz inquietações à essência humana, alterando o caráter subjetivo e objetivo das relações sociais, o que termina por ocultar ou descaracterizar estilos de vida próprios.

22A diferença entre raça e etnia, é que etnia também compreende os fatores culturais, como nacionalidade, religião, língua e as tradições, enquanto raça compreende apenas os fatores morfológicos, como cor de pele, constituição física, estatura, etc. A palavra etnia muitas vezes é usada erroneamente como um eufemismo para raça.