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3 O BESTIÁRIO NA SACRISTIA

3.1 A SACRISTIA DA IGREJA

A sacristia da igreja apresenta um harmonioso conjunto iconográfico. Espaço de importância e de convivência entre a sociedade local, religiosos, noviços e estudantes, demonstra a importância da Companhia de Jesus no século XVII, na capital do Brasil.

FIGURA 69 – Visão geral da sacristia. Fotografia de Belinda Neves

Ao entrarmos na sacristia observamos, inicialmente, o altar do Cristo Crucificado, voltado para a porta de entrada. À esquerda, altar de Nossa Senhora da Conceição e, de frente para o altar do Calvário, altar de Nossa Senhora das Dores. Dois arcazes ladeiam o altar de Nossa Senhora, com espaldares pictóricos, que narram a vida de Maria Santíssima. Revestimento parietal de azulejos portugueses compõe e unifica o conjunto. Acima dos azulejos, uma sequência narrativa do Antigo Testamento circunda toda a sacristia. Está presente, ainda, o lavabo em mármore, em frente ao altar de Nossa Senhora da Conceição.

O piso em mármore de três tonalidades forma uma composição xadrez, com centro oitavado, formando uma harmônica composição de embrechado.

No teto, vinte e um painéis pictóricos retratam jesuítas mártires e confessores da fé católica. Nove portas-balcão circundam três lados da sacristia: duas a sudoeste, ladeando o altar do Cristo; seis a noroeste, voltadas para o mar, igualmente divididas entre o lavabo; uma, a nordeste, no lado esquerdo do altar de Nossa Senhora das Dores.

Da mesma forma que a igreja, o conjunto pictórico e escultórico encontrado na sacristia conta com escassez de documentação, dificultando a datação, atribuição autoral e valores estabelecidos na execução, no caso de mão-de-obra terceirizada.

Luis de Moura Sobral em Espiritualidade e propaganda nos programas iconográficos

dos jesuítas portugueses informa que “a sacristia de Salvador foi decorada entre 1683 e 1694 com obras importadas ou realizadas in loco, azulejos, mármores italianos e portugueses, imaginária e pinturas.” (SOBRAL, 2004, p.414) Por sua vez, Fernando Machado Leal em

Catedral Basílica de São Salvador da Bahia transcreve carta do padre Alexandre de Gusmão, datada 1694, dando notícias sobre a sacristia:

A Sacristia é iluminada a oiro e ornada de pinturas. Abundantemente provida de objetos de culto, sobretudo vasos de prata, cálices, castiçais, píxides, e lâmpadas, que tudo pesa mais de 350 libras. E acaba de receber o donativo de um cálice de oiro, grande lavrado a primor. Também recebeu um diadema de oiro, para São Francisco Xavier, e igualmente de oiro um relicário, pendente do peito de Santo Inácio, digno de ser visto, não tanto pelo oiro, como pela parte elegante e pela insigne relíquia do mesmo Nosso Padre. (GUSMÃO

apud LEAL, p.121)

Muitos dos elementos da sacristia já foram estudados, como o arcaz e suas pinturas no espaldar e, da mesma forma, as pinturas do Antigo Testamento que rodeiam a sacristia na parte superior. Entretanto, a pintura do teto ainda não fora objeto específico de estudos e aprofundamentos na sua abrangente representação iconográfica e iconológica.

O conjunto iconográfico da sacristia tem inicio com o altar do Cristo Crucificado, laborado em mármore de três tonalidades. O mesmo padrão segue o altar de Nossa Senhora das Dores. Ambos os retábulos arqueados apresentam no nicho pintura com anjos, dois deles portando faixas ou dísticos em branco (altar do Calvário), outros dois com trecho das

Lamentações (Lm 1,2) no altar de Nossa Senhora das Dores. Este conjunto representa o auge do período Barroco, estabelecendo a relação iconográfica calcada na dor e no martírio de Jesus Cristo, Nossa Senhora das Dores, e dialoga com o martírio dos jesuítas representados nas pinturas do teto. Estimamos que referidas pinturas foram concluídas antes dos altares, em

virtude das faixas do roda-teto apresentarem motivos que ficaram encobertos após a colocação dos arremates nos altares.

FIGURA 70 – Altar com o Cristo Crucificado. Fotografia de Belinda Neves

A imagem original de Nossa Senhora das Dores, com 1,80 m de altura, elaborada em madeira policromada e dourada é datada do século XVIII e encontra-se atualmente no Museu de Arte Sacra da UFBA43, em regime de comodato. A imagem que atualmente se encontra no altar é de Nossa Senhora da Fé, “do século XVII, vinda de Portugal, que pertencia à Sé Primacial do Brasil, demolida em 1933”. (LEAL, 2002, p.174) Com a demolição da antiga igreja da Sé, muitas imagens foram distribuídas e realocadas entre os templos da cidade.

FIGURA 72 – Imagem e detalhe de Nossa Senhora das Dores, atualmente no Museu de Arte Sacra da UFBA. Fotografia de Belinda Neves

A continuidade do conjunto iconográfico nos conduz ao terceiro altar, dedicado a Nossa Senhora da Conceição, o mais ornamentado da sacristia. Elaborado em mármore, é ornamentado com quatro colunas de fustes lisos e capitéis compósitos.

Na parte superior, o arco interrompido em mármore branco tem como arremate escultura em mármore de figura masculina, ainda não estudada pelos historiadores da arte, ladeada por dois anjos também em mármore, sentados sobre globos. Estimamos que a referida escultura seja do herói grego Ulisses.44

43 Universidade Federal da Bahia – UFBA.

FIGURA 73 – Altar de Nossa Senhora da Conceição45. Fotografia de Belinda Neves

Ladeando ao altar de Nossa Senhora, dois arcazes em jacarandá negro46, com incrustações em marfim e casco de tartaruga, uma obra digna de admiração. Nos espaldares dos dois arcazes, 16 pinturas em cobre retratam cenas da vida da Virgem Maria47, que complementam e dialogam com o altar de Nossa Senhora da Conceição de forma harmoniosa. Na sequência do conjunto iconográfico, visualizamos o lavabo da sacristia, também em mármore, localizado defronte ao altar de Nossa Senhora da Conceição48.

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Uma das imagens mais antigas da sacristia é a pintura de Nossa Senhora da Conceição. De acordo com Carlos Bresciani em As Pinturas da Catedral Basílica de Salvador, Bahia, este descreve Nossa Senhora como “formosa, em atitude devota com as mãos postas. Encontra-se sobre o altar de mármores italianos posto no meio da sacristia. É atribuída ao pintor italiano Lourenço Lotto (1490-1551) do começo do século XVI: mãos e cabeça seriam dele, o mais, de seus discípulos”. (BRESCIANI, 2006, p.38)

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Fernando Leal, em outro trecho complementar da carta de Padre Alexandre de Gusmão sobre o arcaz e pinturas da sacristia, informa que “na sacristia, um arcaz de magníficas gavetas, notáveis pelos lavores de casco de tartaruga e marfim e auricalco doirado. O recosto da parede de lâminas, pintadas em Roma, da Vida de Nossa Senhora, debaixo de cristal. É muito capaz e vêem-se para ornato dela, três altares. Coroam a parte superior das paredes, feitos ilustres do Antigo Testamento, com pinturas nada para desdenhar; e pintado também e doirado o teto contíguo”. (GUSMÃO apud LEAL, p.121)

47 Serafim Leite relata que “disseram-nos, numa dessas passagens pela Baía, que as pinturas pequenas da

sacristia da antiga Igreja do Colégio, hoje Catedral (as dos arcaz) eram de Geraldo Van Honthorst, conhecido por ‘Geraldo das Noites’ (1590-1656)”. (LEITE, 2008, p.57)

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O lavabo, como fonte de água, tem a sua relação estabelecida com o altar de Nossa Senhora. George Ferguson em Signs & Symbols in Christian Art [Signos e Símbolos na Arte Cristã] esclarece que a fonte é um dos atributos da Virgem Maria, “que era regada como ‘o manancial de águas vivas’”48. Esta interpretação baseia-se na famosa passagem nos Cânticos de Salomão (Ct 4:12), e o Salmo 36:9, que diz: Porque em ti é fonte de vida: Na tua luz

Na parte superior do lavabo, o emblema da Companhia de Jesus. O revestimento parietal de azulejos portugueses unifica e integra todos os elementos do conjunto iconográfico que se encontram nivelados pelo piso, dialogando em cruz: o altar do Calvário com o altar de Nossa Senhora das Dores; o altar de Nossa Senhora da Conceição com o lavabo. Compõe o lavabo três torneiras de fundição, com a imagem do Ipupiara, um monstro marinho que esteve presente no imaginário colonial.

FIGURA 74 – Lavabo da sacristia em mármore. Fotografia de Belinda Neves

Na continuidade do conjunto iconográfico está o teto da sacristia, que segue a mesma problemática com relação à autoria e datação. Não há data precisa para a execução destas pinturas, segundo alguns autores. Fernando Machado Leal afirma que “o imponente forro de madeira, pintado a têmpora, executado por Irmãos Coadjuntores entre 1673 a 1683, ornamenta a sacristia.” (LEAL, 2002, p.119)

Da mesma forma, Renato Cymbalista em Os mártires e a cristianização da América

Portuguesa, séculos XVI e XVII cita que “na segunda metade do século XVII, o teto da sacristia da Igreja da Companhia de Jesus em Salvador recebeu tratamento semelhante ao de outras igrejas importantes da ordem: foi pintado com imagens dos mártires da Companhia mortos no Brasil, no Japão e na Inglaterra [...]”. (CYMBALISTA, 2010, p.25)

A escassez de documentação49 na Bahia e no Brasil dificulta a sua datação e atribuição autoral das referidas pinturas. Mesmo diante de poucos recursos documentais muito já se adiantou em pesquisas na igreja do Colégio da Companhia de Jesus em Salvador. Entretanto, há ainda muito a esclarecer, fundamentar. No forro artesoado estão representados em caixotões 21 jesuítas, cada qual com seu painel decorado. Esta representação ocorre em três fileiras na horizontal e sete na vertical.

FIGURA 75 – Visão parcial da pintura do teto da sacristia. Fotografia de Belinda Neves

A pintura do teto da sacristia, assim como toda a igreja, dialoga com o martírio, seja de Jesus Cristo, dos santos e suas relíquias, ou de seus religiosos missionários. É comum a todas as ordens religiosas, através da ornamentação, estabelecer, mediante um programa iconográfico, uma base de propaganda para captação de público e sensibilização dos fiéis. Há, entretanto, outro e relevante aspecto, o didático. As obras pictóricas e escultóricas sempre atuaram como coadjuvantes no processo da catequese. Ilustravam a Sagrada Escritura, os Sermões, o Evangelho. Para a comunidade local, uma platéia ainda em constante formação, mas de pouca erudição quando comparada à tradição européia, as imagens da igreja e sacristia representavam as ilustrações necessárias e fundamentais para a compreensão da doutrina cristã.

49 Com a expulsão dos jesuítas em 1760 muitos livros e manuscritos da Companhia foram doados ou vendidos a boticários e feirantes para que embrulhassem seus produtos. Neste ato, muitos documentos históricos se perderam. Vide LEAL, Fernando M. (op.cit.) pp. 121-127 para mais informações.

Renato Cymbalista constata que “os jesuítas ansiavam imensamente a morte pela Igreja em todas as partes do mundo, tratando seus próprios martírios como instrumento de conversão das almas e de fundação da Igreja nas novas terras, em uma estratégia global que era documentada, sistematizada, ilustrada.” (CYMBALISTA, 2010, p.18) Complementando os padrões de propaganda focados no martírio, esclarece o autor citando que os jesuítas “faziam circular imensamente os registros dos martírios de seus irmãos por todo o mundo, em uma verdadeira cartografia espiritual, complementar à cartografia técnica que se fazia naquele momento de todo o mundo”. (id., ibid.)

Quanto ao programa iconográfico da sacristia, Luis de Moura Sobral em artigo intitulado Ut Pictura Poesis: José de Anchieta e as Pinturas da Sacristia da Catedral de

Salvador estabelece uma interessante relação entre a poesia de José de Anchieta intitulada De

Beata Virgine Dei Matre Maria com os painéis do Antigo Testamento e o posicionamento de alguns painéis da pintura do teto retratando os jesuítas mártires. Para o autor, não se trata de um posicionamento coincidente daqueles painéis, mas uma ação pensada previamente pelos jesuítas que estabeleciam essa relação, fundamentados na poesia de Anchieta:

Nas páginas que precederam assinalam-se inúmeras coincidências e encontros entre quadros e poesias de José de Anchieta. Que os ideadores da decoração tivessem utilizados estes textos como uma referência mais ou menos directa parece perfeitamente lógico, sendo Anchieta uma das glórias literárias da Província do Brasil, atestada pela publicação recente de sua biografia e de algumas das suas obras, e pela colocação do seu retrato na galeria que aqui se estudou. Uma pessoa que aparece directamente ligada aos trabalhos da sacristia é o P. Alexandre de Gusmão (1629-1724), reitor do colégio de Salvador até 1684. [...] Terá sido ele o autor do intelectual destes programas, espécie de homenagem a Anchieta, seu predecessor à cabeça da Província jesuítica do Brasil? (SOBRAL, 2000, p.244)

Reconhecemos no artigo de Moura Sobral uma das inúmeras possibilidades interpretativas daquele programa, assim como outras poderão surgir. Em virtude do aprofundamento de pesquisas, nossa análise com relação ao teto caminha em outra direção, estabelecendo novas leituras, gerando outra interpretação iconológica.

Da mesma forma, pela extensão e complexidade do programa iconográfico do teto, é possível que muitos jesuítas tenham participado do projeto conceitual, pois ali estão presentes não apenas mártires missionários, mas os pilares religiosos da Companhia de Jesus, a doutrina, os animais fantásticos e do bestiário, os animais do continente americano, a mitologia greco-romana, a cartografia, a ciência. Não foi uma concepção simples, mas de alta complexidade, amplamente pensada, estudada e discutida.

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