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2 O BESTIÁRIO NA NAVE DA IGREJA

2.7 OS TRITÕES E AS NEREIDAS

Neste item abordaremos os tritões na igreja do Colégio e, por sua vez, as nereidas que interpretamos como complementares à iconografia dessa divindade clássica. Naquela igreja estão não menos do que 14 tritões e duas nereidas. Em nenhum templo da cidade de Salvador identificamos um contingente tão significativo de tritões, fator esse que nos chamou a atenção mesmo antes de iniciarmos esta pesquisa.

A palavra tritão é originária do grego triton. Tassilo Spalding em Dicionário da

mitologia greco-latina afirma que o tritão é “filho de Netuno e da Nereida Anfitrite. Semideus que tinha o ofício de corneta do deus marinho: precedia, sempre, o cortejo de Netuno, tocando a sua trombeta.” (SPALDING, 1965, p. 260) Sobre a trombeta que tinha uma função diante das águas, complementa o autor que “Tritão sabe tirar dela acordes tão doces e suaves que não há música terrena que se lhe possa comparar.” (id.,ibid.) O Tritão é, entretanto,

o pai de toda a linha imensa de divindades do mesmo nome, monstros meio homens meio peixes, que compõem com as Nereidas, o tumultuado cortejo do Deus do mar. Tritão é representado sob a figura de um monstro metade homem metade peixe, ora pairando sob a superfície das águas, ora em um carro em forma de concha, tirado por cavalos azuis, mas tendo sempre a sua trombeta na boca. Conforme alguns, sua famosa trombeta é uma imensa concha afunilada. (id.,ibid.)

A melodia doce e suave sempre foi considerada um atributo da harmonia divina, do mito que se aproxima do humano e o conecta com o princípio celeste. É o mesmo princípio da música de Orfeu, com seus acordes e voz melodiosa. Os tritões na igreja dos jesuítas não possuem o atributo da trombeta em forma de concha, apenas são representados com a cauda de peixe. Entretanto, pertencem à ordem dos sirênios, a versão masculina das ninfas, nereidas e sereias, e foi representado com os seus atributos completos em uma das ilustrações da

Coleção de Receitas, na Botica do Colégio.

Como relatou Fernando Machado Leal em Catedral Basílica de São Salvador na

Bahia, o teto da igreja foi construído pelo Irmão Luís Manuel, entalhador e construtor naval. “É essa vivência com a construção naval que nos explica a armação do teto da nave, em tudo semelhante ao cavername de uma embarcação.” (LEAL, 2002, pp.99-100) Embora a solução tenha sido adotada em vários templos religiosos do período, ressaltamos que no simbolismo cristão o navio é a representação simbólica da Igreja. Possivelmente os tritões no teto da nave dialoguem com este princípio e estejam pairando sobre as águas do navio simbólico. Recordamos que neste referido teto encontram-se o magnânimo emblema da Companhia de

Jesus ladeado pelos tetramorfos, e também os quatro listeis com a Epístola de São Paulo aos

filipenses.

FIGURA 52 – Tritões a sudoeste no teto da nave. Fotografia de Belinda Neves

Observamos nas duas imagens a presença de flores, frutos, folhagens acânticas e a cauda dos tritões em forma de voluta. Nas duas imagens há a presença do semicírculo com motivos florais. Os tritões encontram-se nos dois vértices do teto da nave: a sudoeste, acima da entrada da igreja e direcionados para dentro da cidade; a noroeste, acima do altar-mor e direcionados para o mar.

Por outro ângulo, a metáfora dos doces e suaves acordes provenientes da trombeta simbólica do tritão também pode ser interpretada como a Palavra, o Evangelho, a oração, a cristandade que abre caminho além-mar. O tritão tinha a missão de acalmar, apaziguar as águas para que o cortejo de Netuno ou Poseidon pudesse transitar com tranqüilidade e seguir viagem.

Na Idade Média, os tritões foram representados em painéis e portadas dos períodos românico e gótico, geralmente acompanhados das sereias. Foram interpretados, por muitas vezes, como a versão feminina da sereia pisciforme e, da mesma forma, apresentados também com a cauda dupla ou bicaudal.

Na iconografia do tritão é comum a presença de outros seres marinhos como nereidas, ninfas, sereias, náiades, golfinhos, e seguram peixes ou trombetas. Em muitos países europeus em que seres e monstros marinhos fazem parte de sua mitologia e cultura, pode não haver diferenciação entre sereias e nereidas. Em outros não há diferenciação entre nereidas e ninfas. Da mesma forma, estes seres podem representar um aspecto arquetípico, positivo ou negativo, do bem ou do mal, dependendo do contexto e da cultura em que estão inseridos. Assim, ao mesmo tempo em que tritões acompanhavam sereias simbolizando o vício, em outros guardavam a entrada dos templos e protegiam contra o mal.

No período das expansões marítimas e das grandes navegações, atrelado ao classicismo, as entidades marinhas passam a ser evidenciadas na literatura e a iconografia acompanha essa temática, com a extrema representação de monstros, sereias, nereidas, ninfas, tritões e outros seres marinhos e fantásticos.

Publicada pela primeira vez em 1572, Os Lusíadas, de Luiz de Camões29 traz o imaginário cristão ao entendimento fantasioso e sobrenatural do imaginário pagão, digno dos povos daquele tempo e aliado dos pensamentos em virtude dos longos períodos de viagem marítima em que o viajante era exposto a toda sorte de provações. Nereidas e ninfas, além de Vênus, são citadas amplamente em sua obra. Entretanto, as nereidas parecem não conferir o mesmo perigo quanto às sereias, sendo estas aceitas até como musas protetoras.

29 Luiz Vaz de Camões (1524 – 1580) poeta português. A obra Os Lusíadas é considerada a epopéia da literatura portuguesa.

Este aspecto protetor dos seres mitológicos e fantásticos permeou o pensamento do período em que deuses, semideuses e divindades menores poderiam atuar como protetores de missões marítimas, navegantes e, neste caso específico, portugueses em naus além-mar.

No Brasil Colônia essa mentalidade esteve acompanhada de todo repertório fantasioso do Novo Mundo, que alimentou as expectativas de novos seres monstruosos e fantásticos. Neste repertório foi possível ver retratada a nereida como sereia nas talhas de igrejas e vice- versa, como divindades marinhas, da mesma forma como ocorre comumente na talha das igrejas lusitanas.

Essa semelhança entre os seres marinhos ocorre principalmente na representação das cariátides-nereidas ou cariátides-sereias, comuns nos templos religiosos portugueses e espanhóis do período Barroco, influenciando o discurso artístico do Brasil colônia.

Faz-se necessário, entretanto, conhecer a procedência da nereida. Para Tassilo Spalding as nereidas são “ninfas dos mares, principalmente dos mares interiores, filhas de Nereu e Dóris. Eram cinqüenta, belas como o dia; passavam o dia percorrendo as ondas sobre o dorso dos golfinhos ou de cavalos marinhos”. Complementa ainda o autor que “Tétis era, também, Nereida, e a mais famosa, mãe de Aquiles e esposa de Peleu. Dotadas de faculdade profética, gozavam de culto e veneração particulares”. (SPALDING, 1965, p.181) Sobre a semelhança com as ninfas, Spalding esclarece que

não se confundem com as Oceânidas, Ninfas do Oceano, do mar alto. Segundo certos autores, as Nereidas habitavam o fundo do mar, riquíssimos palácios, com o pai, e ocupavam-se a fiar em fusos de ouro e a cantar; frequentemente vinham em grupos à superfície das ondas, cavalgando, com seus corpos nus de mulher e caudas de peixes, os tritões ou outros monstros marinhos. Passavam por ser divindades benéficas. Algumas Nereidas tornaram-se célebres: Anfritite, Tétis, Orítia, Galatéia. (id., ibid.)

As nereidas também como as sereias possuem o atributo do canto, embora as utilizem com finalidades distintas.

A arquitetura greco-romana deu origem às cariátides e atlantes. Eram colunas antropomorfas, de caráter estrutural, que suportavam o peso do entablamento. As chamadas atlantes eram representadas por elementos masculinos e foram inspiradas em Atlas, condenado por Zeus a carregar eternamente o globo terrestre. Por sua vez, as cariátides representavam a versão feminina dessas colunas, inspirada no Erecteion, templo em que aparecem esculpidas.

Tanto os atlantes como as cariátides foram utilizados como elemento estrutural ou simplesmente ornamental, quando simulam a função de suporte de peso. Estiveram presentes

nessa condição ornamentando templos civis e religiosos do Renascimento, Barroco, Rococó e Neoclássico.

No século XVII, quando a expansão portuguesa se fixou em vários territórios, foi possível a interferência estilística na talha e no mobiliário, retratando por muitas vezes, elementos mitológicos daquelas culturas nos variados ambientes das colônias portuguesas. Neste caso, além de cariátides-sereias ou cariátides-nereidas surgiram móveis cujos pés eram ornamentados com nagas e naginas, divindades em forma de serpente pertinentes à mitologia hindu. Os pés destes mobiliários, por serem de caráter estruturante, também podem ser considerados atlantes ou cariátides, dependendo do gênero que os sustenta.

As colônias portuguesas na África influenciaram a presença de cariátides com mulheres africanas em balaustrada e arcazes da Igreja de Nossa Senhora do Carmo e, da mesma forma, a presença portuguesa na Índia possibilitou a representação feminina daquela nação em cariátides na balaustrada da Igreja de São Francisco, ambas em Salvador, Bahia.

Na igreja dos jesuítas os tritões também estão presentes no mobiliário e na talha. Na mesa de celebração da missa há um exemplar com quatro tritões, com douramento e policromia. Outra mesa, com a mesma estrutura e um pouco menor, encontra-se no corredor da igreja que conduz à sacristia. Esta possui a policromia, mas apresenta a madeira em estado natural. As referidas mesas também são chamadas credencias.

FIGURA 55 – Mesa com tritões no corredor lateral que conduz à sacristia. Fotografia de Belinda Neves

Possivelmente a mesa que se encontra no corredor da sacristia ocupasse, anteriormente, o seu espaço junto ao altar mor. Nos altares identificamos os atlantes-tritões nas laterais do altar de Nossa Senhora da Conceição, no lado da Epístola, e quatro cariátides- nereidas no altar da Senhora Santana, no lado do Evangelho:

FIGURA 56 – Os dois atlantes-tritões nas laterais do altar de Nossa Senhora da Conceição. Fotografia de Belinda Neves

FIGURA 57 – Cariátides-nereidas com diademas no altar de Senhora Santana. Fotografia de Belinda Neves

Observamos que tanto os atlantes-tritões como as cariátides-nereidas simulam no altar a função de sustentação, mas na verdade apenas ornamentam.

A presença do tritão e da nereida na igreja dos jesuítas demonstra o quanto é vasto o repertório simbólico na Companhia de Jesus na colônia brasileira. Embora seja comum nos templos barrocos, a iconografia do templo dialoga com elementos clássicos e do medievo no seu discurso artístico.

Erwin Panofsky elucida a apropriação e ressignificação da iconografia clássica durante a Idade Média e o Renascimento (1995, pp.29-37). Embora o Renascimento seja o ressurgimento da Antiguidade Clássica, essa sofre uma reintegração após a vivência dos valores medievais e do Humanismo, sendo que “é evidente que essa reintegração não podia ser um simples regresso ao passado clássico, [...] de forma que a sua arte não podia simplesmente renovar a arte dos Gregos e dos Romanos”. (PANOFSKY, 1995, p.37)

Fundamentados inicialmente no Maneirismo, os jesuítas da colônia lusitana utilizaram-se de muitos dos elementos clássicos e medievais no seu discurso artístico, na ilustração da catequese, sermões e textos clássicos, quando texto e imagem, ut pictura poesis, relacionam-se estreitamente na amplitude artística do templo na cidade do Salvador.

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