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4. HELENA

4.3 A segunda migração: as contradições e os processos de consciência na vida em São

O trabalho como babá e a vida em bairro de elite

Em 1979, Helena começou a fazer faculdade em Ribeirão Preto. Depois de um ano, não conseguindo mais pagar os estudos, mudou-se para São Paulo. Na capital, ainda no universo do cuidado de crianças, a depoente fez um curso para Baby-sitter e trabalhou um ano e meio como babá. Neste período, ela morou na casa da família para a qual trabalhava nos Jardins, um bairro paulistano de elite. Foi ali que Helena conta que verdadeiramente “sentiu o que era ser doméstica”. Esse sentimento, em grande parte, relacionou-se à obrigatoriedade do uso do uniforme.

[no interior] tratavam a gente como empregada e tals, mas era melhor. Não era tão discriminatório. Eu senti mais em São Paulo, eu fui sentir o que era ser doméstica aqui em São Paulo. (...) Aqui em São Paulo, no Jardins. Que eu fui ver como que era ser doméstica. Lá no interior, você era, mas não era tão diferente, não era tão discriminatório, como era em São Paulo… lá não tinha nem uniforme pra usar (...) aí eu vim pra São Paulo e eu vi que as pessoas daqui tinha cozinheira, tinha chofer, tinha não sei o que… e tudo com uniforme. Eu me choquei! Que eu fui babá e tinha que usar uniforme branco.

José Moura Gonçalves Filho (2004) aponta o fenômeno da invisibilidade pública como um dos componentes da humilhação social. Fernando Braga Costa (2004) examinou este fenômeno de perto em uma pesquisa etnográfica com garis na cidade de São Paulo. O autor fala do uso do uniforme como o último elo de uma cadeia de desumanização dos garis. Vestindo, todos, o mesmo uniforme laranja, apaga-se a individualidade e singularidade de cada um. É como se eles todos se tornassem apenas uma expressão da função social de sua profissão. No caso de profissões subalternas, o uso do uniforme leva então à invisibilidade pública. Foi o que o próprio pesquisador relata que sentiu quando, ao vestir o uniforme de gari na universidade que frequentava, deixou de ser visto por seus colegas e professores.

Valquiria Padilha (2014), em estudo sobre o sofrimento ancorado no trabalho precarizado na limpeza de shopping centers no Brasil e no Canadá corrobora a tese de que, em trabalhos subalternizados, quando “aparecem os uniformes, desaparecem as pessoas”. Quase todos os trabalhadores e trabalhadoras entrevistados por ela apontaram o uniforme como marca de distinção social e inferioridade. Em Helena também podemos observar uma ligação direta entre a obrigatoriedade do uniforme e sentimentos de vergonha, rebaixamento e humilhação social:

Teve um dia que eu fiquei muito triste, que foi no Rio de Janeiro com os patrões ricos, eu fui pro Rio prum… passear no Rio. E aí tinha no Rio, fomos tomar sorvete no lugar. “Vamos tomar sorvete!”. E eu pensei que podia ir com minha roupa, né? Aí fui me trocar e ela falou “não, pode ficar com sua roupa. pode trocar de roupa.” eu lembro que ele falou. Eu fui tirar o uniforme, que pra ir pra sorveteria eu achei que eu pudesse ir com minha roupa, né? Que era calça jeans, camisa e tal. Aí meu patrão fez eu voltar pro quarto e vestir o uniforme. Eu fiquei muito mal esse dia. Eu fiquei com vergonha de comer lá no lugar, um lugar chique do Rio de Janeiro, aí eu cheguei lá e não tinha nenhuma babá de uniforme. Só eu. Todas as babás estavam com roupas delas e eu fiquei chateada, com vergonha… nem tomei sorvete. [grifos meus]

O uniforme vem carregado de sentimentos de humilhação porque ele materializa o papel social ocupado por Helena naquela situação: uniformes de escolas particulares ou jalecos de médicos, por exemplo, não trazem sentimento de vergonha a quem os veste – uma vez que correspondem a papéis sociais de prestígio. O uniforme de empregada doméstica ou babá é signo e lembrança constante de que mesmo transitando nos mesmos espaços dos patrões, dos brancos, dos ricos, ela não é como eles e está ali para servir, limpar e cuidar.

Além do sofrimento relacionado ao trabalho, Helena não se sentia bem no bairro onde morava, o que fazia trazia a sensação da cidade como expulsiva48. Ela conta que, morando ali, precisou cadastrar seu título de eleitor em uma escola da região, a mesma em que seus patrões cadastraram. Mas, ao entrar na escola, sentiu aquele ambiente muito aversivo, por não encontrar ali “pessoas como ela”:

Como eu morava nos Jardins, meu título foi lá pra um colégio chique, ali na… Um colégio chique ali na avenida Nossa Sen… Avenida Europa. Um colégio que chama Sacre Coeur, o colégio, eu acho. Um colégio tem uma santa, um colégio chique, gente rica. Aí eu, também, acho que eu fui lá pra ver meu título, mas eu não quis ficar lá. Também vi que não era pra mim. Eu tive que fazer o título, de acordo com o meu endereço, aí eu não gostei do lugar, só tinha gente rica, e eu a única pobre, e negra nessa escola, pra fazer o título, aí eu quis me mudar. Aí meu título mudou lá pro colégio, até hoje eu voto lá, na [rua] Teodoro Sampaio. Eu achei que lá era melhorzinho um pouco, que era mais meu estilo, Teodoro Sampaio. Mas hoje já não é mais meu estilo também. [grifos meus]

É interessante observar que, o acúmulo de experiências vividas, assim como de emoções e reflexões a partir delas, vai acentuando tanto as diferenciações (no caso, especialmente ligadas à classe e raça) quanto a percepção delas. No momento relatado, Helena tem consciência de que não é um deles (ricos e brancos). Ao sentir os espaços elitizados como expulsivos, a depoente fez então um movimento de buscar espaços em que pudesse estar entre aqueles e aquelas mais parecidos com ela. Ela pede transferência do título de eleitor, para poder votar no Largo da Batata:

Então Largo da Batata era muita gente pobre, nordestina... os pobres votavam tudo ali no colégio. Aí eu preferi mudar meu título pra lá, não sei o ano que foi. Aí eu mudei meu título pra lá, que eu achei que lá que era meu lugar, que tava certo pra eu ficar, aquele colégio chique ali nos Jardins eu não quis ficar, não. (...) eu entrei no colégio e falei “meu deus do céu, onde eu vim parar”, porque os donos da casa só fizeram título lá, porque eles são ricos, né? Fizeram, então eu fui fazer com eles, tinha que dar endereço... Mas eu falei “aqui eu não quero ficar” e o mesário me transferiu pra… Mais perto era esse colégio, que era o “povão”. É que o Pinheiros era bem simples, né? Agora tem essa especulação imobiliária então já tá classe média, alta, embora tenha os pobres também. Eu moro em Pinheiros até hoje, mas eu moro em lugar pequeno, eu moro em dois cômodos, não moro em lugar chique, não. Porque Pinheiros era muito simples, aquele tempo. [grifos meus]

48 Sensação muito observada também por Gonçalves Filho (1995; 1998), em suas pesquisas sobre

humilhação social com moradores da periferia paulistana quando os mesmos frequentavam espaços mais centrais ou elitizados da cidade.

Helena parece demonstrar, nesse momento, alguns indícios do que Iasi (2011) chama de um estado transitório entre a primeira forma de consciência e a consciência em si. A forma transitória é resultado de um acúmulo de novas vivências e relações (que geram novos valores, condutas e comportamentos), este acúmulo pode trazer à tona contradições e fazer questionar valores e explicações antes naturalizados. A contradição faz com que a pessoa viva conflitos subjetivos que gerem um estado de revolta49. As relações podem deixar de ser idealizadas e serem vividas como injustas – como as humilhações e rebaixamentos que a depoente relata sentir a partir de então de forma mais consciente.

Helena começa perceber um estranhamento muito grande entre o mundo dos patrões e o mundo dos empregados. Bem como um sentimento de incomunicabilidade entre esses dois mundos. Em São Paulo ela começa a sentir mais do que nunca, a perceber e pensar a incomunicabilidade entre os dois mundos que polarizam os conflitos de classe. Começa a não se reconhecer e não se sentir reconhecida no mundo dos patrões. E passa a viver uma comunicação mais distintiva com o mundo dos cidadãos das classes pobres; dos trabalhadores baixo remunerados. O mundo passa a conhecer uma cisão. Ela começa a descobrir que o mundo é realmente um mundo dividido por antagonismos sociais, antagonismos entre grupos.

Nesse momento de transição, embora exista a disposição de não se submeter (como faz Helena transferindo o título e abraçando como seu o lugar dos pobres, dos negros e nordestinos: dos oprimidos e explorados), ainda não há um acúmulo político na consciência. Assim, embora as relações sociais sejam sentidas como injustas, a tendência é que elas ainda apareçam como inevitáveis. Pode-se mudar então uma concepção de “sempre foi assim” (naturalizada) para “sempre foram injustas” (com valoração, mas ainda relativamente naturalizadas). Seriam necessárias, ainda, algumas condições para que a revolta possa se amadurecer em consciência política50.

*

49 O autor cita como exemplo um trabalhador que acreditou a vida toda que trabalhando muito suas

condições de existência melhorariam. No entanto, depois de anos a fio se esforçando em jornadas extenuantes de trabalho, ainda se encontra em situação de miséria. Este trabalhador deixa de acreditar então em um aspecto da ideologia dominante (a meritocracia), desidealiza as relações de classe, passa a vivê-las como injustas e se revolta.

A faculdade – persistência de impedimentos, com algumas frestas de liberdade

Morando em São Paulo, Helena retomou o curso de Jornalismo na Universidade Braz Cubas, em Mogi das Cruzes. No contexto universitário a memória da pobreza também se faz muito presente, como na impossibilidade de comer com outros estudantes nos intervalos das aulas: “naquela época quem tinha grana vivia assim: ‘Ai, vamos tomar lanche?’ Não sei o que, aí eu dizia ‘Ah não, tô sem fome!’, mas não era, eu não tinha dinheiro mesmo para tomar. Eu fingia que não tinha fome, o estômago roncando de fome. Era chique tomar lanche!”.

Quando a comida também é impedimento, tomar lanche é considerado um luxo. “Era chique”. Como observamos, em Helena, as memórias dos tempos de escola são fortemente marcadas pelas clivagens de raça e de classe social. As primeiras lembranças da cidade e do trabalho em São Paulo carregam sentimentos de humilhação e rebaixamento. A faculdade também foi um ambiente onde esses sentimentos se faziam presentes, especialmente por sua condição de classe. O pagamento das mensalidades sempre foi difícil e, nas vésperas das provas, vinha acompanhado de experiências de vergonha e humilhação:

Faltava dinheiro pra pagar e se você não pagasse, não tivesse em dia, você não fazia prova! Aí era horrível! Foram muitos dias que eu tive que correr, pra ficar na fila pra pagar, juntava dinheiro pra poder fazer a prova, se não perdia a prova (...) Aí ficava na fila pra conseguir pagar… era um vexame! Eu, não, várias pessoas, né? Pagando correndo pra entrar na sala e pegar o documento, o número pra poder fazer prova. Pagava na faculdade, no caixa lá, aí o caixa já dava pra gente um recibo lá, você ia na diretoria, pegava o seu número e ia para a sala correndo. Todo mundo sabia que você tinha pagado naquela hora. Você entrava correndo na sala com o número na mão. E era... mas fazer o que? Era vexame! [grifos meus]

Novamente, vemos que o caráter coletivamente compartilhado do “vexame” e que tem como pano de fundo as relações de dominação-exploração de classes não poderia jamais ser interpretado como fenômeno individual. É humilhação social. O sofrimento vivido e compartilhado em grupo, contudo, se faz um pouco mais suportável. Helena sente-se mal, exposta, rebaixada. E a situação repete-se diversas vezes – ao longo das muitas parcelas de mensalidades a pagar. Ela poderia desistir, sair do lugar do vexame. Até esse momento, já havia sido obrigada a abandonar uma faculdade e já tinha passado por migrações entre três cidades. Mas ela não está sozinha. Encontra um grupo de outros jovens pobres que passam pelo mesmo sofrimento, e que são amparo para este sofrimento. Helena continua na faculdade até o final.

As relações de amizade com outras e outros jovens negros e pobres, aliados ao conhecimento e aprendizados possibilitados pelo ambiente universitário, foram gradativamente favorecendo uma percepção mais politizada do mundo. O período da faculdade também foi vivido como um momento de poder expressar-se mais livremente.

Era anos 80, eram anos muito bons de política e tudo. Tava nascendo o Partido dos Trabalhadores, era começo... tinha muita coisa acontecendo na música, e era muito gostoso! Eu era rebelde, me achava! Eu era

hippie (...) Eu não era petista, mas também me achava revolucionária

(...) eu já usava calça rasgada... usava cabelo black, que eu me inspirava no Djavan.

Helena começava a adotar uma expressão estética contra hegemônica. Ela relata que logo que se mudou para São Paulo, seu lazer era passear no shopping Iguatemi com uma amiga. Ela se arrumava o máximo que podia e sonhava em ter uma bolsa Louis Vitton: ainda ansiava por ser como a elite, compartilhar de seus símbolos de valor. Agora, o sonho da bolsa de marca vai sendo substituído pela materialidade da calça rasgada. O cabelo alisado começa a ceder lugar ao black power.

Durante este contexto da faculdade, Helena continua sua trajetória de trabalho e inicia uma trajetória de participação política, que passará por diferentes partidos e movimentos sociais.

O trabalho e a cidade

Depois de deixar os Jardins e o trabalho como babá e empregada doméstica, Helena passa em um concurso e começa a trabalhar na Caixa Econômica Federal. No entanto, pela dificuldade de “trabalhar com os números” e o sonho de atuar profissionalmente em jornal, depois de dois anos, a depoente pede exoneração.

Era muito ruim, trabalhar na Caixa Econômica, trabalhar com números, com não sei o quê… Fiquei dois anos na Caixa Econômica. Aí eu pedi exoneração… Eu pedi. Foi, foi… Foi horrível. Pedi, aí eu fiquei sem grana… Eu tinha comprado uma cas… Um apartamento financiado pela Caixa na “Rebouças”, aí nisso eu fiquei sem emprego, sem grana… Eu pedi exoneração da Caixa pra trabalhar num jornalzinho de bairro, eu fazia Jornalismo, né? E eu achava que jornal de bairro… Que ia me dar status, que não sei o quê… Olha, que cabeça?! (risos) Aí eu deixei o emprego, a grana acabou, não pude pagar o… Não pude pagar o… o… Apartamento, o financiamento, as prestações… Perdi apartamento, perdi tudo, aí você… Aí ferrou. Mas eu, eu sou… Eu não me importo, não, com sair da Caixa, porque… Trabalhar com número, não era meu… Números, eu tinha que fazer conta, não fechava as contas, tinha desgosto…

Saindo da Caixa, Helena trabalhou em alguns jornais pequenos “de bairro” e fez bicos, por exemplo, como vendedora de enciclopédias. Passando por necessidades financeiras, perdeu sua moradia - um apartamento que estava financiando. Por um tempo, foi morar “de favor” com uma prima. Mas, sentindo-se diminuída por sua condição de pobreza, saiu de lá:

Aí eu morava com a minha prima e a minha prima também fazia faculdade, por coincidência essa minha prima fazia, ela tinha mais grana que eu, ela tinha carro na época, eu me sentia diminuída, porque eu era pobre, eu andava de trem, de ônibus, ela já tinha o carro dela, ela fazia FIAM, então eu sentia uma coisa... Então eu peguei, não, não vai dar certo aqui, morei um tempo, eu era muito tímida, nem conversava com eles lá quase. Aí eu fui morar com uma amiga minha.

Mais uma vez, vemos as relações sociais de classe se refletindo em rebaixamento e na sensação de alguns ambientes como expulsivos. Em seguida, a depoente dividiu um quarto de pensão com uma amiga. Nesse período, desempregada, Helena conta que desenvolveu estratégias para lidar com a fome. Ela relata que aprendeu a passar fome:

Eu passei até fome nessa época, aí eu fui trabalhar no jornal de vila e não sei o que, o dinheiro acabou, perdi o apartamento que eu estava pagando, aí eu morava em quartinho, eu não tinha dinheiro para comer, aí eu lembro que eu aprendi a passar fome. Aí eu descobri nessa época que água mata fome. Eu não tinha coragem de pedir comida para ninguém. Eu tinha vergonha de pedir comida na rua (...) Eu não tinha coragem, jamais pedi comida para alguém. Aí eu bebia água o dia inteiro, às vezes, água, água, água. Às vezes pegava uma bolacha... eu morria de vergonha de pedir comida, de comer. Eu me lembro que eu pegava às vezes comida escondida, arroz, punha arroz puro num saquinho. Olha o que eu passei. Aí eu punha comida num saquinho e eu comia, para não comer assim, para não me ver na rua, eu ia comer no banheiro. Me lembro, quantas vezes eu comia arroz, arroz puro, aí eu comia em banheiro, para ninguém me ver eu comendo. E pronto. Eu fiz isso. Mas foi aprendizado. Hoje eu sei, se for para ir para a guerra eu vou para a guerra tranquila, que eu vou sobreviver na guerra.

Durante o desemprego, Helena cria então algumas estratégias individuais de resistência às situações de humilhações e de sobrevivência à fome e à miséria. Sua resposta consiste basicamente em esconder-se para se proteger, enquanto ainda sente muita vergonha pela condição de pobreza.

Helena lembra também de outro aspecto da pobreza como impedimento da cidade: a dificuldade de pagar pelo transporte público. Em uma cidade com a dimensão de São Paulo, a impossibilidade de pagar pelo transporte implica em, praticamente, não poder

acessar o espaço urbano. Considerando ainda que sua faculdade era em outro município, não acessar os meios de transporte equivaleria a ter que abandonar os estudos. Pela necessidade, outras estratégias de resistência vão sendo forjadas...

A gente andava bastante na linha para pegar o trem de graça lá na frente. (risos) andava na linha do trem, a gente pulava porque o trem parava na estação, a gente não tinha dinheiro para pagar, então os moleques fizerem, várias pessoas, fizeram um buraco lá numa grade, a gente andava dentro da linha, para pular o buraco e pegar o trem de graça. Muitas vezes. (...) chegava no Brás, da faculdade tinha que correr e pegar outro trem até na Luz. Até a Luz, que eu pegava o ônibus que eu morava nas periferias, tudo, tinha que pular, tinha que correr, já vinha o outro trem. Um dia quase que fomos atropelados, eu e várias pessoas, que a gente pulou na linha para atravessar para pegar para o outro lado, o trem buzinou, a gente passou e o trem passou (...) depois tinha os guardas também, tinha que ficar driblando guarda, para o guarda não ver, para a gente pular a grade. Aí tinha que ficar alguém lá olhando se tinha guarda e aí todo mundo corria.

Podemos perceber, pelo relato da depoente, uma organização arriscada e quase que espontânea entre colegas e desconhecidos: várias pessoas fazem, juntas, um buraco na cerca; todos usam do buraco; correm juntos; alguém vigia os guardas; se comunicam rapidamente; desviam dos guardas; correm juntos de novo... Esse movimento constitui- se como uma estratégia de resistência em grupo, e que precisa de grupo para funcionar bem. Embora se tratasse de algo muito pontual (que impossibilitaria, por exemplo, que houvesse o compartilhamento de um projeto político e de um conjunto de ações mais elaboradas a longo prazo), era uma ação que envolvia solidariedade e dependia de solidariedade. Tratavam-se de pessoas que partilhavam uma comunidade de destino. Entre essas pessoas, Helena não sentia vergonha.

Até mesmo durante as entrevistas, ao compartilhar o primeiro e o segundo episódio, Helena os comunica de formas bem distintas. Em sua entonação, gestos e silêncios, ela revela muito mais dor e constrangimento por ter passado fome e pelas formas como lidava com a fome, do que por precisar atravessar o buraco da cerca e quase ter morrido atropelada pelo trem. Isto pode ser um indício de que, nos espaços de solidariedade e comunidade, pode haver condições para superação (mesmo que temporária) da humilhação social.