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2. LENA

2.1 A menina fã de Robin Hood

Lena vem de um núcleo familiar pequeno, possuindo apenas um irmão, poucos anos mais novo. Durante toda a vida, morou com os pais e este irmão, sendo também muito próxima da avó materna e de suas duas tias, também maternas.

A avó, particularmente, está muito presente em suas memórias afetivas e teve participação ativa em sua criação, passando com ela muitas das tardes de sua infância, quando tanto seu pai como sua mãe trabalhavam fora. Ela é descrita pela depoente como

9 No início dos capítulos 2 a 7, para uma breve contextualização, são apresentados a idade e dados gerais

uma mulher forte e com papel central na configuração familiar; e, ao mesmo tempo, como muito afetiva e doce:

Minha avó juntava muitas coisas, assim, da vida com uma sabedoria, lá, que ela tinha, uma doçura dela, de... lidar com a gente... Todo mundo muito esquentado na família, né, a minha mãe, a minha tia, todo mundo fala alto e não sei quê... E ela era mais... tímida. Mas ao mesmo tempo ela sabia organizar as pessoas, assim, na hora que alguém dava um chilique muito grande, ela sabia chegar e falar, do jeito certo, que não era pra pessoa estar dando aquele chilique. E... de um jeito muito compreensivo.

A mãe de Lena também é descrita como uma mulher forte, por vezes dura, mas com quem ela tem muita proximidade e companheirismo. E o pai, rompendo com o que se espera de um padrão de masculinidade hegemônica – em que o masculino é tido como portador de agressividade, combatividade, provedor, focado majoritariamente no trabalho fora de casa e que não contribui com a realização o trabalho doméstico (TOMSEN; DONALDSON, 2003; CONNELL, 2005; 2013) -, é descrito como uma figura acolhedora e sensível. É um pai que possui uma relação de proximidade com os filhos, que não é o responsável pela maior parte da renda familiar, trabalha em casa e divide a realização do trabalho doméstico. Tanto a avó como a mãe e o pai de Lena têm uma posição política de esquerda.

A participação política é introduzida logo cedo na vida da depoente, justamente por sua família. Seu pai nunca teve uma militância política inserida em algum partido ou sindicato, mas sempre posicionou-se “à esquerda”. Ele participa do grupo Tortura nunca mais e trabalha há 15 anos com a produção de documentos baseados em memórias sobre a ditadura militar. Sua mãe é filiada ao Partido dos Trabalhadores (PT), atualmente é professora e milita no setorial de educação deste partido. Antes disso era radialista e diretora do sindicato dos radialistas, pela CUT. Lena relata como uma lembrança marcante de sua infância justamente a inserção, acompanhando a família, em espaços políticos:

Eu tenho muito a lembrança, assim, é de... estar nesses espaços desde pequena, então quando eu era pequena eu ficava, passava a tarde na casa da minha avó porque não tinha quem cuidasse de mim, mas também passava muitas tardes no sindicato. No meio dos companheiros da minha mãe, com a minha mãe fazendo jornal do sindicato... Essas coisas acontecendo e eu lá. Ou então lembro deles me levando em atos. Me levando em comícios de campanha... Essa é uma lembrança bem

recorrente, assim, da minha infância. Antes de eu mesma ir me organizar.

Então me lembro muito de, quando o Lula ganhou, ia na Paulista lá e ver a festa da vitória... essas coisas assim.

M: Você lembra como você se sentiu?

H: Eu me sentia muito... parte, assim, daquilo. Então, ele... eles me levavam pras coisas, mas... sempre me tratando como um sujeitinho pensante ali. E me explicavam tudo e... de um jeito para crianças, né?! Mas eu me lembro de saber muito sobre a guerra no Iraque, por exemplo (risos), mas, porque eles me falavam, mas porque eu também me interessava no que eles falavam e enfim. Era... era uma coisa muito respeitosa, assim. E aí eu me lembro de me sentir muito parte daquilo. De... ver que aquilo fazia sentido mesmo e pronto e... tinha que estar, eles estavam, por que que eu não iria junto de mãos dadas, ali, pequenininha? (risos) (...) E os meus pais inclusive... falavam pra gente... incentivavam a gente a fazer cartaz e essas coisas... Então a gente tinha que pensar sozinho, né?!

São interessantes, no relato da depoente, o sentimento de pertença despertado por aqueles espaços, mesmo que ainda criança. E também o destaque dado por ela a sentir-se tratada como sujeito pensante, o que pode ter favorecido tanto a sensação de respeito e acolhimento nesses lugares, como também o início de uma reflexão crítica sobre a realidade, ainda que limitada ao contexto e desenvolvimento possível de uma criança. Lena relata que, embora aquele espaço estivesse fazendo sentido para ela e ela se sentisse bem ali, sua participação era ainda, como “acompanhante”: “Mas eu era bem pequena, né?! Eu só... estava indo junto... tinha várias coisas que eu ia junto e estava ali acreditando naquilo, mas estava acompanhando”.

Sobre os aspectos que marcaram sua infância, Lena lembra também que, quando menina, mais do que animar-se assistindo a filmes de princesas ou com brincadeiras como barbies, uma de suas programações favoritas era assistir ao filme do Robin Hood, repetidamente.

Ah, não, não eu não gostava. Eu via... os filmes das princesas, mas o que eu mais gostava era do Robin Hood. E... e também não gostava muito de barbie, tive barbies, mas parei de gostar delas logo, assim (...) Mas o Robin Hood era demais! (risos) muito mais que tudo isso! Ele era bem justo, tinha uma coisa ali de ser justo. Era uma história sobre... quem importa, ali, no final das contas, né. Acho que era.. bem isso, assim, tem umas cenas sofridas, que vai todo mundo preso porque... não pagou? Não lembro qual é a história direito, mas tem uma hora que vai todo mundo preso... e aí está lá a mãe bicho com seu filhotinho preso, aí lembro de... da música, do sofrimento, ali, acho que deu pra entender algumas coisas (risos).

Provavelmente, a Lena criança que vibrava com o filme do Robin Hood não tinha grandes noções conscientes do conceito de justiça social. No entanto, a Lena de hoje, ao rememorar seu passatempo, atribui a valorização ao personagem justamente pela noção de justiça que ele carrega. Ecléa Bosi (2004) nos ensina que este processo faz parte do caráter dialético da memória: uma vez que, da mesma forma que a memória de experiências passadas influencia a constituição de nossa identidade e nossa relação com o presente; a nossa relação com o presente age sobre nossa memória e ressignificação do passado (BOSI, 2004).

*

Na infância, essa Lena menina que teve uma criação familiar relativamente livre dos estereótipos de gênero, que desfavorecem as mulheres (WHITAKER, 1998; SAFFIOTI, 2015); e cujas mulheres que eram suas maiores referências afetivas (mãe, avó, tias) não se encaixavam nos padrões de feminilidade socialmente impostos, também não os incorporou em suas atitudes ou em suas preferências:

Eu lembro de uma vez no pré, que eu usava brinquinho, porque... estava lá o brinquinho, né?! Mas lembro que aí no pré ou no jardim, alguma coisa assim, tinha uma professora que não usava brinco. Aí eu falei “ah, não vou usar também” e aí parei de usar. E lembro que fui crescendo, e aí também não... não gostava de usar vestido, não gostava de usar saia, não gostava de usar... cor de rosa. Qualquer coisa que remetesse muito, assim, eu negava e me distanciava. Não sei muito bem o que que... que faz isso numa cabeça de criança né, mas acho que... que é tanta coisa afunilando né, que as vezes a gente encontra esses, acha que esses são os métodos para... fugir disso. Então para... ter brincadeiras diferentes e não só aquelas, e... poder ter interesses diferentes e não só aqueles... acho que era algo por aí... de tentar não ser afunilada.

Eu lembro que de pequena, bem pequena, eu tinha uns amigos meninos... eu andava mais com... Não, não andava mais com os meninos, mas eu era mais... “moleque”, né. Então nem... nem conhecia muito os códigos das coisas que... as meninas podiam falar, assim (...) então a gente tinha umas brincadeiras lá, que... cabia todo mundo, aí se começava um assunto muito... “de menina” aí eu não entrava, mas também tinha outros... outras mil coisas, né...

Na escola, a Lena criança se via distante do grupo de meninas que apresentavam mais fortemente a incorporação dos padrões de feminilidade e construía vínculos de amizade com meninos e meninas que, em seus traços subjetivos, não haviam (pelo menos até aquele momento) incorporado tão fortemente os estereótipos de gênero. Aquele grupo

de meninas com o qual a criança Lena não se sentia identificada, além dos padrões de feminilidade, apresentava também elementos de diferenciação de classe social:

Não lembro muito de uma separação muito forte, entre meninos e meninas, mas lembro de... na outra escola, que era da primeira à quarta série, que tinha uma divisão bem grande entre os meninos que jogavam futebol e não sei o quê, e aí um grupo de meninas que... que eram meninas mais ricas e mais... dentro dos padrões de feminilidade, e não sei quê, que... ”gostavam” daquilo – com várias aspas né, mas elas... topavam aquilo... -. É... e as meninas que eram... mais “qualquer coisa assim” lá no meio (risos), alguma coisa lá no meio. E aí tinham várias situações que aconteciam com... com essas meninas, mais do que se diferenciar ou se distanciar ou tensionar com os meninos, eu lembro de muitas tensões com essas meninas. [grifos meus]

A depoente continua seu relato chamando a atenção para uma situação específica que lhe marcou de maneira intensa:

E coisas até meio que... que você pensa “por quê?!!” né... Então ficava eu e umas outras meninas e uma delas tinha Síndrome de Down. Aí uma dessas outras meninas um dia foi lá e pegou o óculos da menina e quebrou no meio do intervalo, assim. Coisas assim... que eram mais no conflito com as meninas... “patricinhas”, entre aspas.

M: E você lembra da sua sensação nesse episódio?

H: Eu fiquei... a menina estava deitada no banco, dormindo, assim... no recreio, a outra foi lá, pegou e... quebrou... Eu lembro de ter ficado brava com ela, assim. Como é possível alguém fazer uma coisa dessas, né?! Era meio... meio isso... rolava uma... esse sentimento meio assim, desse tensionamento, várias vezes, de ficar... “Como pode?!”, sabe?!

Lena enfatizou muito sua indignação com este episódio. Talvez tenha sido a primeira cena de discriminação levando à violência que a depoente testemunhou com proximidade. Ela lembra de também ter sentido raiva e uma angústia muito grande de não saber por que aquilo estava acontecendo, de não conseguir compreender, encontrar explicações para aquela situação, e, também, de não conseguir reagir.

Neste momento de sua história de vida, podemos observar uma menina que, por um lado, anima-se e empolga-se assistindo a um desenho que retrata situações de justiça e solidariedade. Assim como quando ocupa espaços em que presencia o enaltecimento desses valores e em que se sente tratada com respeito. E, por outro lado, incomoda-se e angustia-se ao testemunhar situações de desigualdade e violência.

No entanto, é como se todas essas sensações acontecessem na “esfera dos sentimentos”. Tratam-se de emoções, que parecem ainda não ter adquirido maturidade

suficiente para passar por interpretações, formulações de explicação, reflexões ou formações de consciência sobre os acontecimentos vividos e testemunhados.