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A segunda vaga do movimento feminista e a desbiomedicalização do nascimento

3 A saúde da mulher no contexto da reprodução

3.2 A segunda vaga do movimento feminista e a desbiomedicalização do nascimento

Os movimentos da sociedade civil que a partir da década de 1960 começaram a reclamar o reconhecimento de terapias alternativas à biomedicina nos denominados países desenvolvidos encontram-se intimamente associados à emergência da segunda vaga do movimento feminista. Ao contrário das sufragistas que tinham lutado sobretudo pelo direito das mulheres ao voto, estas ativistas encontravam-se fortemente empenhadas em combater os valores morais dominantes e os constrangimentos impostos pela sociedade em consequência da maternidade (Françoise Héritier apud Guillaume & Bonnet, 2004) O aparecimento da pílula anticoncecional acabou por despoletar essas reivindicações femininas, principalmente nas sociedades europeias e norte-americanas, graças ao controlo que a mulher doravante passou a poder ter sobre a sua fertilidade. Esta extraordinária invenção permitiu que a maternidade deixasse ser percecionada como um determinismo biológico a que quase todas as mulheres se

96 deviam sujeitar durante o seu percurso social de vida. Ser mãe tornou-se uma escolha e não uma predestinação. Em consequência disso, os partidários da causa feminista começaram a lutar pelo empoderamento da mulher no quadro da maternidade (Braun, 1987; Guillaume & Bonnet, 2004) . Entre outras coisas, passaram a advogar o direito das mulheres pertencentes aos grupos socias mais abastados acederem ao mercado de trabalho38 e construírem à semelhança dos homens uma carreira profissional. A reclusão ao espaço doméstico, ao qual tinham sido relegadas durante a era vitoriana chegava finalmente ao fim.

O controlo sobre a vida genésica levou também a uma reclamação de um maior domínio sobre a gravidez e o parto. A subtração feminina à autoridade patriarcal também passou a ser expressa através de uma crítica aberta à biomedicina. Nesta sequência, surgiu uma extensa literatura que procurou resgatar o nascimento da condição de patológico e/ou anómalo construída pela biomedicina (Litoff, 1978). Com a sua patologização acabou por ser dada uma ênfase desproporcional aos fatores de risco durante a gravidez e o parto, justificando desta maneira a natureza invasiva das intervenções clínicas (Salim, 2017). Os procedimentos biomédicos foram definidos pelas feministas académicas como um locus privilegiado de produção e reprodução das relações de poder, argumentando que a maioria dos cuidados prestados pela biomedicina tinha reduzido o indivíduo a um corpo doente (Robbie David-Floyd; Ann Oackley apud Torri, 2017c).

Após ter gozado de uma reputação inabalável durante décadas, mesmo depois de ter sido reconhecido oficialmente as negativas implicações de procedimentos clínicos como a lobotomia ou o uso da escopolamina durante o trabalho de parto, a biomedicina foi colocada debaixo de fogo pelas feministas, tanto por causa da sua excessiva e muitas vezes despropositada tecnologia (Kunisch, 1989) utilizada na monitorização do nascimento, como pela forma como esse aparato tecnológico expropriava a mulher do seu próprio corpo. Paradoxalmente, a biomedicina criara os seus próprios antagonistas. A libertação da mulher relativamente às contingências da reprodução resultava de uma descoberta feita pela biomedicina denominada pílula contracetiva oral. A dimensão libertadora e opressiva da biomedicina não deixavam de ser duas faces de uma mesma moeda.

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As mulheres que pertenciam aos estratos mais desfavorecidos da população nunca deixaram de trabalhar por causa de condicionalismos impostos pela maternidade.

97 A natureza desnecessária e coerciva de determinados procedimentos terapêuticos como a imobilização dos membros superiores e inferiores da parturiente; o corte do períneo ou episiotomia; ou a realização de enemas (Newton & Newton, 1972) foram colocadas em evidência para dar consistência às reivindicações políticas feministas perante a opinião pública. A utilização da posição decúbito dorsal durante o trabalho de parto, principalmente, após terem sido provados cientificamente os seus malefícios para a parturiente (William Mengert e Murphy Douglas apud Newton & Newton, 1972) tornou-se um dos alvos preferenciais de ataque. O perigo de infeção hospitalar decorrente do parto assistido clinicamente (Leavitt, 1988), assim como, as excessivas e desnecessárias cesarianas foram aspetos igualmente assinalados.

O desapossamento da mulher como resultado da progressiva biomedicalização do nascimento pode ser decomposto em três vertentes distintas: a perda de património em termos de conhecimento, de experiência corporal e de capital social.

A masculinização dos cuidados prestados no âmbito do nascimento pela biomedicina baseava-se na superioridade do homem e das suas capacidades médicas (Barbara Ehrenreich & Deirdre English apud Hollenberg, 2017b). O advento do obstetra combinava a metáfora da máquina como a utilização de equipamentos como os fórceps ou o espéculo. Estes dispositivos tinham permitido a substituição do toque efetuado pelos dedos femininos, por mãos mecânicas controladas pelo homem (Martin, 1992). A forma como os profissionais biomédicos na área da obstetrícia eram «maquinizados» durante o seu tempo de formação foi mencionada por Nancy Shaw (1974). Com a emergência dos movimentos feministas, essa supremacia masculina nos cuidados prestados em torno do nascimento passou a ser contestada. Após as parteiras locais terem sido banidas durante décadas pelo poder político, observou-se uma reapropriação da arte do partejo pelas mulheres (Hollenberg, 2017a).

Os discursos feministas também colocaram a tónica na perda de poder e controlo da mulher sobre o seu corpo (Jordan, 1990, 1992; Sargent, 1990) em resultado da biomedicalização do parto. Assim que as parturientes entravam nas instalações sanitárias era notória essa desapropriação:

«… decisions about care and interventions during childbirth […] [were] decided solely by the medical team […] women’s […] sensations and feelings […] were ignored […] the patient […] [was] not conceived in her whole but only as a body deprived of feelings.»» (Salim, 2017, p. 77-78).

98 Sob a égide dos cuidados biomédicos, a mulher deixou de ser a protagonista do nascimento, transformando-se numa mera espectadora que um processo que outrora dominara. Esta progressiva marginalização da mulher do centro de decisão potenciou uma radical transformação ao nível da perceção de si mesma e do seu lugar na sociedade. Por exemplo, a gradual transferência do nascimento para a jurisdição da biomedicina conduziu a uma transformação semântica a nível discursivo na língua francesa. A palavra tradicionalmente utilizada para designar o ato de dar à luz acabou por sofrer uma modificação. O verbo s’accoucher, que significava a capacidade da mulher colocar crianças no mundo pelos seus próprios meios acabou por perder o seu pronome reflexivo, dando origem a um verbo intransitivo accoucher, que suprimiu o protagonismo da parturiente durante o trabalho de parto (Laget, 1982). Anteriormente, Harold Atlee já tinha mostrado que o prestígio e o reconhecimento social do nascimento tinham sido usurpados à mãe pelo técnico de obstetrícia (Newton & Newton, 1972). Essa ideia seria retomada mais tarde por Costanza Torri,

«The procedure for giving birth in the hospital was designed to facilitate the doctor’s task, so that the doctor is “giving birth”, so to speak. The horizontal position allows the doctor to observe the delivery process, but is not necessarily a position that ensures a comfortable delivery for the women.» (2017a, p. 112).

Outra consequência nefasta do parto assistido clinicamente foi a descapitalização da parturiente em termos de redes sociais de apoio e solidariedade femininas (Leavitt, 1988; Newton & Newton, 1972). As familiares, amigas e vizinhas que antigamente se mobilizavam em torno do parto a domicílio e que amparavam a puérpera durante todo o período de convalescença acabaram por ser substituídas por um corpo clínico masculinizado que provê cuidados de forma totalmente impessoal (Davis-Floyd & Sargent, 1997b).

Embora muitas feministas continuassem a considerar que o parto biomedicamente assistido fosse a melhor solução para certos diagnósticos de risco, para a grande maioria dos nascimentos, que ocorriam sem qualquer tipo de complicação, estas ativistas argumentavam que o hospital era um obstáculo social e cultural para a parturiente porque transformava o nascimento numa experiência alienante (Parry, 2008). Uma solução encontrada pelas hippies da Califórnia para contrariar essa alienação foi começaram a ter os filhos em casa e a fazer do nascimento um acontecimento social, convidando os seus amigos para festejar com elas todo o processo do trabalho de parto (Newton & Newton, 1972). Conforme afirmou muito mais tarde Torri (2017a), as inter-

99 relações entre as pessoas e o meio ambiente são fundamentais para compreender a preferência das mulheres pelo parto em casa.

As reclamações por partos menos biomedicalizados acabariam por levar à organização de grupos políticos no interior da sociedade civil, especialmente norte- americana (Leavitt, 1988). Estes movimentos cívicos passariam a reclamar «… [the]

ownership of their own healing profession – as well as their own health and bodies.»

(Hollenberg, 2017a, pp. 13–14). Um livro publicado por Sheila Kitzinger (1978) foi decisivo para a legitimação destas organizações que defendiam, entre outras coisas, o retorno ao parto natural39 e/ou a domicílio. Nesta obra, a autora apresentou à população britânica uma variabilidade de cuidados populares eficazes na gestão do parto para demonstrar as arbitrariedades terapêuticas relativamente aos cuidados biomédicos. Em consequência da sua argumentação defendeu o regresso do controlo sobre o parto à mulher. Apesar de seu claro enviesamento em favor das mulheres brancas, urbanas e com recursos norte-americanas, a generalização da ideia de que as intervenções biomédicas na esfera do nascimento eram vitais porque as mulheres eram incapazes de tomar decisões sobre o seu corpo foi contestada por vários autores numa coletânea editada por Shelly Romalis (1981).

Mesmo com o resgate desta inequívoca descapitalização social e identitária feminina em consequência do enquadramento da reprodução humana pela biomedicina, muitas mulheres continuaram a se sentirem apenas seguras durante a gravidez e parto, quando rodeadas de um aparato tecnológico (Davis-Floyd, 2004). A crença na tecnologia biomédica tinha tamanha força que a declinação de determinados procedimentos clínicos fá-las-ia parecerem e sentirem-se irresponsáveis (Browner & Press, 1995) pela forma como supostamente comprometeriam a sua saúde e a da criança (Kunisch, 1989). Esta construção tecnológica da segurança materna e infantil encontrava-se subordinada a diversos interesses económicos (Kunisch, 1989) que se estavam por detrás da progressiva mercantilização da gestação e do nascimento (Rothman, 1987).

A partir dos anos 1980, na esteira da emergência das MAC, observou-se o regresso da diversidade em matéria de cuidados obstetrícios em países como os EUA. Passou a haver oficialmente muitas opções para além da anterior uniformidade: presença do pai

39 As reclamações pelo regresso ao parto natural permitiram que o método de Lamaze se vulgarizasse.

Este procedimento, desenvolvido pelo obstetra francês Fernand Lamaze como uma alternativa à intervenção biomédica durante o nascimento, apostava no relaxamento da parturiente através do controlo da sua respiração (Newton & Newton, 1972).

100 durante a gravidez e parto, o renascimento do sistema de partejo e da amamentação, o parto a domicílio, o parto na água e mesmo o parto não-assistido (Davis-Floyd & Sargent, 1997b). Algumas mulheres começaram a querer ter um maior controlo sobre a experiência do nascimento (Tieraona Low Dog apud Hollenberg, 2017a). A experiência sensorial e as relações sociais passaram a ser tidas como um aspeto tão importante como o processo fisiológico em si (Salim, 2017). O acompanhamento familiar assim como a segurança de se dar à luz num ambiente aconchegado, íntimo e privado tornaram-se prioritários (Torri, 2017a). Apesar desta pluralidade em matéria de oferta, o parto clinicamente assistido continuou a predominar nos EUA. Os movimentos contra o parto biomédico ou em favor da redução da sua biomedicalização na realidade representavam uma pequena minoria (Davis-Floyd & Sargent, 1997b) pertencente aos estratos mais abastados da população (Torri, 2017c).

As reclamações pela despatologização do nascimento acabaram por ter um impacto muito residual na formulação de políticas de saúde públicas internacionais. Os decisores políticos manter-se-iam indiferentes ao corpo teórico desenvolvido sobre esta matéria a partir dos anos 1970 no seio da Antropologia e Sociologia, em consequência do impulso inicial dado pelos estudos feministas (Downe, 2017).

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