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3 A saúde da mulher no contexto da reprodução

3.3 A saúde da mulher nas Ciências Sociais

3.3.2 Antropologia da reprodução

A partir dos anos 1980, as investigações aprofundadas de terreno passaram gradualmente a serem privilegiadas em detrimento das comparações transculturais. Os temas dos trabalhos etnográficos tornaram-se mais diversificados. Dennis McGilvray (1982) descreveu os rituais relativamente à menarca; as representações referentes à circuncisão, menarca, conceção e gravidez; os costumes relativamente ao nascimento; as crenças acerca do aleitamento e do desmame; as estratégias de combate à infertilidade; e o comportamento perante o planeamento familiar no seio de duas comunidades do Sri Lanka oriental. Victoria Ebin (1982) relatou interpretações e práticas terapêuticas realizadas por terapeutas locais ganeses no combate à infertilidade. Carolyn Sargent (1982) trabalhou sobre o período do climatério no seu estudo sobre as mulheres beninesas. Nicholas David e David Voas (1981) investigaram os problemas relacionados com a infecundidade no norte dos Camarões. Carole Browner ( 1985a, 1985b, 1986) dedicou-se ao estudo da contraceção na Colômbia e no México. Una Mclean (1982) falou sobre a gestão local da gravidez, parto e cuidados durante a infância na Nigéria. Doris Bonnet (1988) estudou as representações locais em torno do fenómeno da procriação no Burkina-Faso. Anteriormente, Durand-Comiot (1977) já se tinha debruçado sobre a fase do puerpério no Senegal. Nesta altura, nem todas as monografias evidenciavam preocupações de enquadramento das pesquisas no contexto da diversidade terapêutica. Regra geral, a grande prioridade era ainda resgatar as semiologias populares no domínio da reprodução.

110 O alargamento das temáticas exploradas em torno do fenómeno da procriação levou Thomas Johnson e Sargent (1990a) preferiam denominar este campo disciplinar de Antropologia da reprodução. De acordo com estes autores, o domínio da Antropologia da reprodução resultava da convergência de duas correntes distintas. Uma que privilegiava as monografias intensivas sobre os conceitos folk de etnofisiologia e a sua relação com as práticas rituais, reprodutivas e terapêuticas. Outra que se dedicava à análise dos processos de decisão terapêutica, principalmente relacionado com a questão da fertilidade. Um interesse particular foi dedicado os comportamentos femininos em matéria de fertilidade. As razões pelas quais as mulheres mais desfavorecidas eram tão relutantes em utilizar contraceção biomédica passaram a ser analisadas tendo em conta as conjunturas sociais, económicas e políticas em que se encontravam inseridas as populações (Agounké, Lévi, & Pilon, 1994; Benoit, 1995; Caldwell & Caldwell, 1987, 1995; Desgrées du Loû, 2000; Pilon & Guillaume, 2000; Randall & Legrand, 2003).

As descrições etnográficas detalhadas sobre as representações culturais e sociais que envolviam nascimento, e até mesmo sobre outros aspetos relacionados com a saúde reprodutiva, não surgiram nos finais da década de 1980. Apesar da tendência observada no período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial para se publicarem comparações transculturais, mesmo nessa altura era necessário que alguns investigadores fizessem pesquisas de terreno aprofundadas de modo a recolherem o material etnográfico necessário a estas análises comparativas (Newton & Newton, 1972). A título de exemplo, J. Franklin Ewing (1960) trabalhou sobre os costumes envolvendo o nascimento nas Filipinas. Goodman (1951) estudou os cuidados obstetrícios locais durante a gravidez e parto entre as mulheres nativas do Gana. SMG Moller (1958, 1961) escreveu sobre as teorias de conceção e os tabus alimentares na gravidez e puerpério presentes comunidades haya do Tanganica.

Sob influência da IMSR, os estudos etnográficos na esfera da saúde reprodutiva sofrem um outro tipo de inflexão. Daí em diante, denotou-se uma preocupação em muitos trabalhos etnográficos de contribuir para o melhoramento dos programas de saúde vocacionados as mulheres. Nesse sentido foi dada primazia à análise dos comportamentos terapêuticos plurais, tendo em conta a subutilização dos serviços de saúde públicos. Nadja Reissland e Richard Burghart (1989) mostraram como as parturientes nepalesas utilizavam simultaneamente cuidados de saúde ditos tradicionais e biomédicos durante os nascimentos dos seus filhos. Esta concomitante mobilização

111 era possível por causa da falta de recursos hospitalares. Neste caso, as parturientes e as suas redes sociais negociavam em que modalidades os cuidados biomédicos eram integrados conjuntamente com as práticas obstétricas locais. Mohamed (2010) estudou a gestão da gravidez e do nascimento no norte do Mali, no contexto da diversidade terapêutica. Olivier de Sardan, Adamou Moumouni e Aboubacar Souley (1999, 2001) fizeram um estudo semelhante na República do Níger. O trabalho de Browner (1985), apesar de ter sido publicado antes da implementação do programa IMSR, enquadra-se perfeitamente nesta linha teórica, ao estudar os critérios locais usados por mexicanos para selecionar as plantas medicinais apropriadas para a reprodução e saúde reprodutiva. O seu propósito era fornecer informação antropológica pertinente aos decisores políticos internacionais para que pudessem ser elaborados programas de saúde mais adaptados às realidades sociais.

Com o enquadramento institucional da diversidade terapêutica, a questão da «autenticidade» dos dados recolhidos, ou seja, a recuperação de informação sobre as crenças e práticas em torno do nascimento antes da presença europeia foi-se tornando cada vez mais irrelevante. Este género de preocupação tinha atormentado sobretudo os etnógrafos que tinham feito pesquisas de terreno nas primeiras décadas do século XX (Newton & Newton, 1972). Ainda assim, resquícios deste pensamento continuaram, de forma mais esporádica, a ser observadas em alguns textos. Cosminsky (1982) preocupou-se em resgatar as crenças locais em torno do nascimento na aldeia montanhosa de Chuchexic na Guatemala, as quais se encontravam ameaçadas pelas mudanças trazidas pela biomedicina. Younoussa Touré (2000) procurou recuperar as representações «tradicionais e autênticas» songhay sobre a gravidez com recurso à memória individual e/ou coletiva de anciãos residente na cidade maliana de Gao. Para tal, este autor não introduziu qualquer filtro relativamente às narrativas orais recolhidas cujo teor esteve sujeito a permanentes reformulações à luz da experiência e contradições sociais vivenciadas pelos entrevistados.

A ênfase colocada no combate à mortalidade materna, no quadro da IMSR, também potenciou a produção de trabalhos científicos centrados na recuperação dos determinantes sociais e culturais que impactavam negativamente no corpo biológico da mulher em idade reprodutiva (Cantrelle & Locoh, 1990; Haaga, Wasserheit, & Tsui, 1997) ou da sua prole (Guillaume et al., 1995; Vangeenderhuysen & Souley, 2001). Konou Wade (2001) debruçou-se, entre outras coisas, sobre o impacto em termos

112 sanitários da maternidade celibatária. Este género de textos abraçava sem rodeios o primado positivista e, por isso mesmo, aproximava-se do ponto de vista epistemológico, da produção académica existente no quadro da demografia sobre a repartição espacial da fertilidade. Ambos procuravam explicações sociais e culturais para fenómenos que os programas de saúde pública tinham reduzido a variáveis estatísticas. Regra geral, estes trabalhos eram bem acolhidos pelos decisores políticos, pois permitiam subdelegar de parte da responsabilidade pelo fracasso das políticas de saúde nas próprias mulheres. Para estes autores, a promoção da saúde reprodutiva encontrava-se inequivocamente relacionada com a biomedicalização do corpo da mulher.

Trabalhos que enalteciam o determinismo biológico dos comportamentos terapêuticos na esfera da reprodução já haviam sido publicados antes do conceito de maternidade sem risco ter sido formulado. Designadamente relativamente à fase de aleitamento, a qual Mead designara como «período de transição» (Mead & Newton, 1967). Por exemplo, Melvin Konner e Majorie Shostak (1987) subordinaram aspetos sociais e culturais relacionados com a abstinência sexual e espaçamento de nascimentos entre os saan da África austral a considerações de ordem puramente fisiológicas. Estes autores indagavam sobre a existência ou não de um período de amenorreia entre as lactantes. Porém, as interdições sexuais justificadas com o facto de o sémen estragar o leite impediam de conhecer até que ponto as mulheres eram fecundas durante esse espaço de tempo. Dentro dessa mesma linha de pensamento, Etienne van de Walle e Francine van de Walle, (1972) analisaram a influência da amamentação na fecundidade na França pré-industrial. Estas investigadoras descobriram tabus de natureza sexual relativamente ao período do aleitamento. Por causa disso, as mulheres das camadas sociais mais abastadas contratavam amas-de-leite para amamentar os seus filhos, de forma a promoverem o mais rapidamente possível o acesso dos seus maridos aos seus corpos na sequência de um nascimento.

Alguns investigadores debruçaram-se sobre os fatores repulsivos, que condicionavam o acesso das mulheres, às unidades de saúde pública em matéria de cuidados biomédicos na esfera da saúde reprodutiva. Claire Konan Bla (2003) trabalhou sobre este assunto na Costa do Marfim. Hadiza Moussa (2003); Souley (2001, 2003); e Moumouni e Souley (2004) analisaram o contexto nigerino. Yannick Diallo e M. Campell Camara (2003) fizeram trabalho de campo num centro de saúde de base comunitária da Guiné-Conacri. Jaffré, Younoussa Touré e A. Bouré (2003)

113 investigaram os disfuncionamentos existentes em duas unidades de saúde de base. A falta de condições gerais no interior de muitas formações sanitárias existentes nos países ditos em desenvolvimento levou mesmo alguns autores, tal como TK Sundari (1992), a defenderem a realização dos partos a domicílio. Este autor argumentou que as condições de higiene deploráveis existentes em muitas maternidades representavam um risco elevado para a saúde da parturiente, puérpera e recém-nascido devido à grande probabilidade de contaminação infeciosa. Além da insalubridade, a falta de qualidade dos cuidados prestados devido à falta de meios e de preparação dos profissionais de saúde foi igualmente assinalada (Sousa et al., 1995) com uma das razões para o afastamento das mulheres das formações sanitárias.

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