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3 A saúde da mulher no contexto da reprodução

3.3 A saúde da mulher nas Ciências Sociais

3.3.3 A saúde «glocal» da mulher

Até aos princípios dos anos 1990, a vasta maioria dos trabalhos etnográficos tinha feito tábua das forças sociais globais que modelavam a experiência individual da gravidez e parto (Browner & Sargent, 2007). Porém, a partir de então, à semelhança do que se observara no domínio da Antropologia Médica Crítica, o domínio da saúde reprodutiva tornou-se mais politizado. Conforme mencionaram (Davis-Floyd & Sargent, 1997b):

«…the cultural arena of birth serves as a microcosm in which the relationships between rapid technological progress and cultural values, normative behaviors, social organization, gender relations, and the political economy can be clearly viewed. » (p.6)

As práticas e experiências reprodutivas dos indivíduos passaram a ser cada vez mais examinadas tendo em conta as desigualdades transnacionais e enquadradas com o conceito de violência estrutural. As pessoas não eram consideradas recipientes passivos das forças glocais. Muito pelo contrário, as suas lógicas culturais locais e as suas relações sociais eram mobilizadas diariamente para incorporar, rever ou resistir à influência de forças políticas e económicas aparentemente distantes (Ginsburg & Rapp, 1995b). A conceptualização desta glocalidade permitiu reformular as dimensões económicas e políticas que os teóricos marxistas já tinham trazido para o campo da reprodução. Mas, retirando-lhes algum do determinismo subjacente às interpretações que viam as mulheres como meras vítimas passivas da autoridade política masculina, como argumentou Tabet (1985), ou do poder financeiro, como argumentou W. Penn Handwerker (1990).

114 Neste seguimento, apareceu no âmbito das ciências sociais um conjunto de trabalhos coletivos que procurou relacionar diversos aspetos do domínio da saúde reprodutiva com a disseminação do liberalismo à escala global e do consequente agravamento das desigualdades sociais (Carvalho, 2018; Davis-Floyd & Sargent, 1997a; Ginsburg & Rapp, 1995a; Turshen, 1991c, 1999, 2000).

A emergência do VIH-SIDA e a incapacidade das políticas de saúde pública travaram o ritmo de propagação através das suas medidas preventivas pouco eficazes conduziram a um novo olhar sobre as mulheres dos chamados países subdesenvolvidos. Apesar das inúmeras campanhas de sensibilização alertando para os comportamentos de riscos e dos rumores sobre a doença entre as pessoas conhecidas que iam falecendo, muitas mulheres continuaram a gerir a sua vida sexual e reprodutiva como se essa espada não estivesse sobre as suas cabeças. Os seus desconcertantes comportamentos, à luz das racionalidades dominantes, contribuíram para quer muitos autores se debruçassem sobre as suas estratégias reprodutivas e de sobrevivência, visto ambas estarem totalmente imbricadas, tendo como pano de fundo contradições glocais vivenciadas. Entre outras coisas, estes trabalhos permitiriam que, no âmbito dos estudos de género, as análises sobre as desigualdades de entre homens e mulheres se aprofundassem a um nível sem precedentes.

Vários autores constataram que nos países do Global Sul, as mulheres, regra geral, desejavam constituir prole. A infertilidade era uma condição estatutária bastante receada (Moussa, 2012). Com efeito, a maternidade43 podia trazer diversas vantagens de índole social e estatutária (Alfieri, 2000; Nzegwu, 2001; Paulme, 1963; Riss, 1989; Sargent, 1982), quais se podiam revelar fundamentais em termos de sobrevivência principalmente em locais onde o Estado é omisso. O nascimento preferencialmente devia acontecer dentro do quadro legal de um contrato matrimonial. Nalgumas sociedades, as gravidezes de mulheres celibatárias tendiam a ser reprovadas (Fortier, 2013; Vangeenderhuysen & Souley, 2001; Wade, 2001), impedindo-as de usufruir de todos os benefícios associados à chegada de uma criança.

A aspiração de ser mãe não significava que a grande multiparidade, ou seja, um número de gravidezes superior a cinco, fosse uma condição que muitas mulheres ambicionassem. Porém, as relações de poder desvantajosas em que se encontravam inseridas acabam muitas vezes por ditar o seu desempenho reprodutivo. Os processos

115 sociais que contribuem para aumentar a fecundidade tendiam invariavelmente a traduzir uma dominação masculina sobre as mulheres (Tabet, 1985). As mulheres eram muitas vezes pressionadas pela linhagem do cônjuge (Pearce, 1995), sobretudo pelos maridos e sogras (Desgrées du Loû, 2000) a multiplicarem a sua prole de forma contínua. Para além do prestígio social subjacente a uma família numerosa, a diversificação das estratégias de sobrevivência dependia muitas vezes da quantidade de elementos familiares disponíveis para trabalhar (Morsy, 1995; Gilliard, 2005; Pearce, 1995). Marie Denise Riss (1989) argumentou que com o fenómeno da urbanização e a proliferação das relações monogâmicas contribuiu para que a prática tradicional de abstenção sexual durante o período da ablactação tenha caído em desuso em todo o continente africano, independentemente de as mulheres fazerem ou não planeamento familiar durante esse tempo. Segundo Annabel Desgrées du Loû (2000), este prolongado período de abstinência sexual acontecia sobretudo no seio de relações poligâmicas. Contudo, devido à elevada competição pelos magros recursos disponíveis, até as mulheres casadas em regime de poligamia deixaram de praticar essa abstinência.

Regra geral, as mulheres aspiravam a um número de filhos mais reduzidos que os seus maridos (Browner, 1986; Lovell, 1995). Muitas vezes as metas reprodutivas não eram partilhadas uniformemente no seio das famílias e muito menos no interior das comunidades (Browner, 1986; 2000). Principalmente por causa do acesso diferenciado ao poder e ao prestígio existente dentro das sociedades. Por exemplo, Carole Browner (1986) analisou os conflitos entre os desejos reprodutivos de uma comunidade mexicana de ter mulheres muito fecundas e as agendas demográficas nacionais e/ou internacionais apenas preocupadas em conter a natalidade. Em consequência deste antagonismo, as mulheres mesmo que partilhassem o desejo de reduzir o tamanho das suas famílias, deixaram de não conseguir fazê-lo. A presença e disponibilidade de contracetivos bioquímicos teve um efeito contrário ao esperado, pois tornou as mulheres “ainda mais” suspeitas aos olhos da comunidade, tornando inclusive a utilização de outros métodos de planeamento familiar ditos tradicionais muito mais difícil. Em contextos de violência doméstica, normas conflituosas de masculinidade e limitadas oportunidades socioeconómicas para as mulheres, a regulação dos nascimentos depende da permissão do marido (Torri, 2017c). Os cônjuges, mesmo que nalguns casos não desejem uma descendência muito numerosa, por vezes não autorizam a utilização de contraceção com receio que possa potenciar a infidelidade conjugal (Guillaume & Bonnet, 2004). O facto

116 desta capacidade de decisão se encontrar distribuída de forma diferenciada no seio da família contribui para reforçar as desigualdades de género e a incapacidade da mulher tomar determinadas decisões sobre o seu corpo e a sua saúde (Pat Armstrong apud Torri, 2017a).

A dependência económica e/ou social relativamente à família alargada no quadro do casamento tornou a margem negocial de muitas mulheres muito estreita, tanto em relação aos comportamentos em matéria de fecundidade como dos encargos com a saúde (Guillaume & Bonnet, 2004). Qualquer atitude aberta de desafio às normas sociais instituídas podia provocar uma descapitalização, nomeadamente através do abandono ou divórcio. Consequentemente, observou-se que as mulheres tendiam a desenvolver estratégias subversivas de gestão da sua fecundidade, independentemente de serem casadas ou viverem em uniões informais. Por um lado, cada vez que assumiam uma nova relação procuram gerar um novo filho para cimentar as relações com a família do progenitor e, deste modo, melhorarem a sua condição social. Por outro, demonstraram não ter qualquer problema em recorrer dissimuladamente à limitação dos nascimentos sempre que as circunstâncias assim o exigiam. Odile Reveyrand-Coulon (1993) mostrou que as senegalesas que iam em peregrinação a Meca utilizavam métodos contracetivos por causa da interdição de pisarem solo sagrado durante a menstruação. Alexandra Sousa, Dominique Waltisperger e Thérèse Locoh (1995) referiram um comportamento semelhante entre as mulheres bijagós da Guiné-Bissau durante um período de festividades específico. Tola Pearce (1995) argumentou que devido ao longo período de abstinência sexual imposto pela aleitação, muitas mulheres yoruba da Nigéria recorriam ao planeamento familiar para evitar o afastamento e desinteresse dos maridos. O aborto e o infanticídio foram igualmente duas práticas observadas no seio das mulheres casadas, designadamente em situações de crianças incapacitadas (Einarsd ttir, 2004), adultério ou gravidezes tardias, ou seja, após o nascimento dos primeiros netos. O investimento parental diferenciado, também denominado de infanticídio passivo, relativamente à descendência foi registado por Nancy Scheper-Hughes (1993) entre mulheres economicamente desfavorecidas residentes em favelas do nordeste brasileiro. As desvantagens associadas à opção de reduzir deliberadamente o número de filhos foram contornadas através de uma aposta seletiva nos elementos da prole fisicamente mais viáveis ou capitalizáveis. Uma teoria totalmente oposta foi desenvolvida por Jónína Einarsd ttir (2004) relativamente às

117 mulheres papéis da Guiné-Bissau. Segundo esta autora, apesar da elevada fertilidade e mortalidade infantil na região, as mães empenhavam-se na recuperação dos filhos doentes, independentemente da sua viabilidade. De igual modo, Odile Journet (1990) observou que as mulheres diola de Casamança, quando sequenciais gravidezes não chegavam a termo ou quando faleciam sucessivamente vários filhos durante a primeira infância, submetiam-se a um ritual terapêutico conjurador, denominado kañaalen, de forma a assegurar a sobrevivência da criança seguinte. Como referiram Browner e Sargent (2007), a gestão da reprodução é algo de muito complexo que mobiliza ideologias de género, políticas domésticas, religiões e cosmologias, hierarquias ocupacionais, medicinas locais e a estrutura dos serviços de saúde subvencionados pelo Estado.

O risco de exposição das mulheres, sobretudo pertencentes às camadas mais desfavorecidas e/ou residindo no Global Sul, às DST tende a ser uma consequência das suas estratégias reprodutivas e de sobrevivência. A forma como o empobrecimento generalizado das populações, em resultado da mencionada crise económica internacional nos finais dos anos 1970 e da consequente disseminação da cartilha liberal à escala global, agravou as assimetrias de género tornou-se particularmente visível no contexto emergente do VIH-SIDA (Browner & Sargent, 2007; Fassin, 1999; Nasirumbi, 2000). No Global Norte, os primeiros grupos sociais a serem atingidos por esta síndrome eram definidos como marginais e, por causa disso, a opinião pública podia facilmente responsabilizá-los pelos seus comportamentos de risco. Pelo contrário, no Global Sul, a construção do risco rapidamente se estendeu às mulheres que mantinham uma relação estável [formal ou informal], as quais na viragem do Milénio tinham-se tornado no grupo social mais exposto à contaminação por VIH. A construção estatística deste segmento populacional como o mais vulnerável à contração da infeção devia-se ao facto de muitas mulheres serem despistadas no quadro da gravidez.

Paradoxalmente, no contexto do casamento, um veículo de excelência de promoção social da mulher pelo enquadramento legal que confere à maternidade, é que muitas das vulnerabilidades femininas se tornaram evidentes em razão do acelerado ritmo de propagação do vírus no seio das famílias. Desgrées du Loû (2000) mostrou que, quando as mulheres grávidas marfinenses eram despistadas positivamente para o VIH-SIDA, raramente informavam o marido e a família sobre a sua seropositividade; utilizavam preservativos durante as relações sexuais; interrompiam a sua vida genésica; ou

118 deixavam de amamentar os filhos. O medo de perderem os recursos cruciais à sua sobrevivência e dos seus filhos levava muitas mulheres a optarem pelo silêncio. Uma notícia desta natureza facilmente precipitava o divórcio ou abandono, agravado pela impossibilidade de voltarem a casar após a notícia sobre a seu estatuto serológico se espalhar no seio da família e comunidade.

A condição de seropositidade era sobretudo escondida no quadro da poligamia (Moha, 2011). Com essa omissão tornava-se extremamente difícil negociar sexo protegido com o seu marido sem que o risco de um clima de suspeição de infidelidade ou promiscuidade se abatesse sobre a conduta moral da mulher (Bledsoe, 1990) ou sobre o comportamento sexual de ambos (Guillaume & Bonnet, 2004). Muitas mulheres eram inclusive proactivas na ocultação do seu estatuto sorológico, continuando a engravidar e a amamentar a descendência, ignorando completamente os eventuais perigos associados a estas novas gestações. As mulheres precisavam de continuar a ter filhos para manterem laços estáveis com os homens e os seus recursos. Quanto maiores fossem as redes que conseguissem estabelecer através dos seus filhos maiores eram as suas hipóteses de sobrevivência. A mudança frequente de marido ou de parceiro no caso das relações informais aumentavam ainda mais o risco de exposição ao VIH-SIDA (Bledsoe, 1990). Brooke Schoepf, Walu Engundu, Rukarangira Nkera, Payanzo Ntsomo e Claude Schoepf (1991) designaram as estratégias de sobrevivência adotadas pelas mulheres no contexto desta pandemia de estratégias de morte. Nos anos 1990, o risco de contaminação por VIH-SIDA era algo que acompanha diariamente as estratégias de sobrevivência das mulheres (Bledsoe, 1990), principalmente daquelas que são oriundas das camadas mais desfavorecidas.

Cada nova gestação reforçava a posição da mulher no seio da família (Desgrées du Loû, 2000), dissipando quaisquer dúvidas que pudessem existir em torno de uma eventual contaminação. Se as mulheres se recusassem em amamentar os seus próprios filhos ariscavam-se a ser estigmatizadas no seio da própria família (Guillaume & Bonnet, 2004). O medo de descapitalização social por causa desta síndrome era algo de omnipresente. Por exemplo, no Uganda, Tony Barnett e Piers Blaikie constataram que quando se sabia ou suspeitava que o cônjuge tivesse morrido de complicações relacionadas como o VIH-SIDA, as viúvas e filhos eram deserdados e obrigados a adotar estratégias individuais de sobrevivência (Guillaume & Bonnet, 2004).

119 A tendência comportamental não significava que as mulheres não entendessem a noção de risco de contágio. Desgrées du Loû (2000) observou que as mulheres multíparas diagnosticadas com VIH, quando já tinham um número considerável de filhos que lhes permitisse subtrair à pressão conjugal e familiar, normalmente encerravam a sua vida genésica. Chiara Alfieri (2000) mostrou que, por medo de uma eventual contaminação, as crianças bobo do Burkina Faso tinham deixado de ser amamentadas pelas mulheres da sua família para passarem a ser aleitadas exclusivamente pela sua progenitora.

Nos locais onde a competição por bens escassos é elevada, a viabilização do acesso da mulher aos recursos familiares, designadamente através da preservação do seu estatuto social de casada, é um elemento fundamental nas suas estratégias de sobrevivência. Por causa disso, em prole de um bem maior, valia a pena sacrificar o eventual bem-estar de alguns dos seus filhos. O perigo de transmissão vertical durante a gravidez, parto ou aleitação era, muitas vezes, percecionado com um problema menor para quem diariamente tinha de lidar tensões, conflitos e estratagemas centrífugos no interior e exterior do espaço doméstico. Esta estratégia de dar à luz filhos potencialmente inviáveis aproximava-se mais do que se afastava do padrão comportamental descrito por Scheper-Hughes (1993). A uma conclusão semelhante chegou Alice Desclaux (2000) relativamente ao aleitamento por parte de mulheres portadora de VIH, antes das políticas de saúde públicas generalizarem os programas de Prevenção da Transmissão Vertical (PTV). A elevada incidência da subnutrição entre os filhos das mães seropositivas levou a OMS a decretar que o risco de contágio através da amamentação passou a ser preferível do que a morte por inanição. Estes constrangimentos diários que as mulheres se encontravam subordinadas deviam ser tidos em linha de conta pelas campanhas de prevenção ao VIH-SIDA (Desgrées du Loû, 2000). O risco de contaminação por VIH-SIDA é algo que acompanha diariamente as estratégias de sobrevivência das mulheres (Bledsoe, 1990), principalmente daquelas que são oriundas das camadas mais desfavorecidas. Numa linha muito próxima, Torri (2017) afirmou que era preciso desafiar estes pressupostos e relocalizar a saúde reprodutiva das mulheres dentro dos contextos globais, nacionais, regionais e locais porque o corpo somente podia ser entendido em relações e espaços específicos.

O foco de análise rapidamente se estendeu além da saúde reprodutiva feminina, que, aliás, foi considerado redutor por circunscrever o bem-estar da mulher à sua

120 componente reprodutora (Browner & Sargent, 2007) (Browner & Sargent, 2007; Raymond, Greenberg, & Leeder, 2005). Portanto, tornou-se igualmente importante compreender como os mecanismos de diferenciação e as relações de dominação, influenciavam, de uma maneira geral, a saúde das mulheres (Turshen, 1991b) por via das suas estratégias de sobrevivência. Brigit Obrist (2003, 2006) estudou a forma como elementos de grupos femininos mais desfavorecidos administravam as suas preocupações em matéria de saúde na Tanzânia. Anteriormente, Patricia Jeffery, Roger Jeffery e Andrew Lyon (1984) tinham argumentado que as exigências laborais das mulheres indianas oriundas das camadas mais desfavorecidas tinham repercussões negativas sobre o seu estado de saúde e dos seus filhos. Por causa disso, estes autores chamaram à atenção para o facto de os programas de saúde públicos terem um entendimento desadequado da posição social da mulher nas sociedades. Joyce Avotri e Vivienne Walters (1999) constataram que parcos e irregulares recursos associados a uma sobrecarga excessiva de trabalho tendiam a ser percecionados pelas mulheres ganesas como algo de nefasto para o seu estado de saúde, facilitando o desenvolvimento de um tipo de mal-estar psicossocial. Essas preocupações eram muitas vezes expressas através de um género de discurso que colocava em evidência as suas constantes inquietações quotidianas. Mark Nichter (1981) denominara, algumas décadas antes, esta forma de expressão, relativamente ao contexto indiano, de ‘idioma da angústia’. Ainda no início da década de 1980, Browner (1983) apresentou outro exemplo de como as contradições sociais vivenciadas no dia-a-dia podiam se exprimir através do corpo dos indivíduos. Esta antropóloga argumentou que as grávidas colombianas residentes em meio urbano que dependiam apenas do suporte económico provido pelos seus parceiros reportavam mais frequentemente situações de couvade. Dito por outras palavras, os companheiros sobre os quais era exercida uma maior pressão enquanto provedores financeiros do agregado familiar tendiam a manifestar um conjunto de sintomas de mal- estar durante o tempo de gestação das suas companheiras. Os dois trabalhos coletivos publicados por Turshen (1991c, 2000), com referência à saúde da mulher, introduziram nesta equação variáveis como os PAE, a violência doméstica, o trabalho renumerado ou o trabalho doméstico e sexual.

As decisões terapêuticas tomadas pelas mulheres relativamente à sua saúde devem portanto ser analisadas à luz destas dinâmicas histórias e das correlações de força em que se as mulheres se encontram inseridas. Presentemente não se mais deixar de assumir

121 que questões como o facto de as mulheres não terem direito de adquirir bens em seu nome, de reclamar a guarda dos filhos em caso de divórcio ou de reivindicar direitos sucessórios (Guillaume & Bonnet, 2004) influenciam diretamente os seus comportamentos em torno da procura de bem-estar.

Por último, a questão do risco materno. No domínio da gestação, qualquer iniciativa de índole terapêutica durante a gravidez e o parto deve ter em conta este conceito (Chapman, 2003, 2006, 2010). A forma como este é formulado, por exemplo, ao nível dos organismos internacionais tende a divergir bastante do modo como é percecionado localmente (Allen, 2004; Igberase, Isah, & Igbekoyi, 2009). Enquanto os programas de saúde pública tendem a equacioná-lo de um ponto de vista estritamente biológico, em muitos sítios o risco materno tem uma forte dimensão social e simbólica, que a aleatoriedade quotidiana experienciada através das forças glocais tende a exacerbar como um mecanismo de empoderamento simbólicos individuais, conforme demonstrou noutro contexto Peter Geschiere (1997).

Neste caso específico, o cumprimento de determinadas regras e a observância de certos tabus permite à mulher ter um maior controlo sobre o processo gestativo em si. Em consequência disso, a frequente mobilização de especialistas das forças do oculto e a subutilização dos serviços de saúde públicos durante o período de gestão deve ser compreendido à luz destas dinâmicas (Chapman, 2004). Chapman (2004) observou que, no contexto moçambicano, o atendimento de CPN revelava socialmente a condição de gestante e, por causa disso, a mulher podia ficar exposta à inveja, mau-olhado e ao capricho das forças sobrenaturais ao desvendar publicamente uma condição que se deveria manter secreta. A assunção prematura de uma gravidez pode conduzir à sua inviabilização e, consequentemente, a perca de capital social e económico por parte da mulher. A descapitalização social relacionada com a utilização dos serviços de saúde públicos foi assinalada por várias antropólogas, designadamente Sargent (1982) e Jordan (1990).

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SEGUNDA PARTE

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