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1. A segurança jurídica

1.4. A segurança jurídica e o ordenamento processual civil brasileiro

A Constituição da República de 1988, já no caput do artigo 5º, alinha a segurança ao seleto elenco dos direitos invioláveis, ao lado dos direitos à vida, liberdade, igualdade e propriedade. Ingo Wolfgang Sarlet, em estudo sobre o tema, reconhece que, “embora em nenhum momento tenha o nosso Constituinte referido expressamente um direito à segurança jurídica, este (em algumas de suas manifestações mais relevantes) acabou sendo contemplado em diversos dispositivos”68, como no princípio da legalidade, da proteção ao direito adquirido, da coisa julgada e do ato jurídico perfeito, bem como no princípio da anterioridade em matéria penal, entre outros.

José Afonso da Silva69 diz que a Constituição Brasileira de 1988 reconhece quatro tipos de segurança jurídica: a segurança como garantia; a segurança como proteção dos direitos subjetivos; a segurança como direito social e a segurança por meio do Direito.

67 LIMA, Alcides de Mendonça. Introdução aos Recursos Cíveis. p. 139.

68 A Eficácia do Direito Fundamental à Segurança Jurídica: Dignidade da Pessoa Humana, Direitos

Fundamentais e Proibição do Retrocesso Social no Direito Constitucional Brasileiro in ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Constituição e Segurança Jurídica: Direito Adquirido, Ato Jurídico Perfeito e

Coisa Julgada — Estudos em Homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence. p. 91.

A segurança como garantia vem tratada no caput do artigo 5º, da Constituição70 e significa o respeito ao exercício e ao gozo de direitos individuais fundamentais, como a intimidade (segurança do domicílio), a liberdade pessoal (segurança das comunicações pessoais) ou a incolumidade física ou moral.

A segurança como proteção dos direitos subjetivos refere-se ao respeito aos direitos subjetivos em face das mutações formais do direito posto, em face especialmente da sucessão de leis no tempo e à necessidade de assegurar a estabilidade dos direitos adquiridos, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada. Nesse sentido, o inciso XXXVI da Constituição da República71.

Nesse ponto, surge uma discussão interessante, já pacificada no âmbito do Supremo Tribunal Federal: se a norma constitucional garante o respeito absoluto à coisa julgada ou apenas o respeito em face de lei (e não de decisão judicial, por exemplo).

No nosso entender, a referência constitucional à coisa julgada garante o respeito absoluto à garantia, no sentido de não protegê-la apenas em face de lei que possa desrespeitá-la, mas, também de decisões judiciais. Isso porque a intenção da norma é a de, alçando em nível constitucional, assegurar a observância contra qualquer ataque, por representar, a coisa julgada, instrumento de efetividade do valor máximo segurança jurídica.

A lei não pode desrespeitar a coisa julgada, sob pena de se instaurar a insegurança jurídica. Que razão há, então, para autorizar que, sem violar a norma constitucional, um juiz ou o administrador público ou um particular não obedeça ao comando insculpido em uma decisão judicial transitada em julgado, que fez coisa julgada? O desrespeito do juiz, do administrador ou do particular, da mesma forma que do legislador, também causa insegurança jurídica, valor a ser preservado pela garantia da inviolabilidade da coisa julgada.

Some-se que, pela natural lentidão do processo legislativo, é maior o número de situações cotidianas que podem levar à ofensa à coisa julgada. Até por isso, a garantia em nível constitucional da preservação da coisa julgada não deve ser entendida

70 “Art. 5: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos

brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: ...”

apenas em sentido estrito (“a lei não prejudicará”), mas em sentido amplo (nada prejudicará).

O Supremo Tribunal Federal, todavia, tem entendimento majoritário no sentido de que a coisa julgada constitucional só é afetada quando envolvida questão de direito intertemporal, não quando, por exemplo, uma decisão afronta a coisa julgada formada em outro processo. Merecem referência, por elucidativos, os seguintes arestos:

EMENTA:

“DIREITO CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO: PRESSUPOSTOS DE

ADMISSIBILIDADE. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO AO ART. 5º, INCISO XXXVI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PREQUESTIONAMENTO. AGRAVO.

1. O tema da coisa julgada foi apreciado no aresto, mediante interpretação de normas de direito processual.

Infraconstitucionais, portanto.

E não em face de direito intertemporal, como focalizado no inciso XXXVI do art. 50 da Constituição Federal.

2. E, como salientado na decisão ora agravada, é pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no sentido de não admitir, em R. E., alegação de ofensa indireta à Constituição Federal, por má interpretação ou aplicação e mesmo inobservância de normas infraconstitucionais, como são as de natureza processual, que regulam os limites objetivos da coisa julgada.

3. Agravo improvido.” (STF — Agr. em AI 294115. Rel. Min. Sidney Sanches. Primeira Turma. DJ de 15-12-2000)

EMENTA:

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO — POSTULADO CONSTITUCIONAL DA COISA JULGADA — ALEGAÇÃO DE OFENSA DIRETA — INOCORRÊNCIA — LIMITES OBJETIVOS — TEMA DE DIREITO PROCESSUAL — MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL — VIOLAÇÃO OBLÍQUA À CONSTITUIÇÃO — RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. Se a discussão em torno da integridade da coisa julgada reclamar análise prévia e necessária dos requisitos legais, que, em nosso sistema jurídico, conformam o fenômeno processual da res judicata, revelar-se-á incabível o recurso

extraordinário, eis que, em tal hipótese, a indagação em torno do que dispõe o art. 5º, XXXVI, da Constituição — por supor o exame, in concreto, dos limites subjetivos (CPC, art. 472) e/ou objetivos (CPC, arts. 468, 469, 470 e 474) da coisa julgada - traduzirá matéria revestida de caráter infraconstitucional, podendo configurar, quando muito, situação de conflito indireto com o texto da Carta Política, circunstância essa que torna inviável o acesso à via recursal extraordinária. Precedentes.” (STF — Agr. em RE 220517. Rel. Min. Celso de Mello. Segunda Turma. DJ de 10-08-2001)

A segurança como direito social é a que vem disposta no artigo 6º, da Constituição Federal72 e significa a previsão de meios (direitos sociais) que garantam aos indivíduos e às suas famílias condições sociais dignas.

Ainda na concepção de José Afonso da Silva, há a segurança por meio do Direito, que se subdivide em segurança do Estado, relativa às condições básicas de defesa do Estado (estado de defesa e estado de sítio), e segurança das pessoas, que se refere “à manutenção da ordem pública contra o crime em geral”73 (segurança pública e garantias penais).

Além da previsão constitucional, a legislação infraconstitucional também reconhece a segurança jurídica. Por exemplo, a Lei de Introdução ao Código Civil, no artigo 6º, protege o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada74; o Código de Processo Civil descreve a coisa julgada75 e proíbe ao juiz que decida novamente questões já apreciadas76, elenca em rol taxativo as hipóteses de cabimento de ação rescisória77, prevê o duplo grau de jurisdição obrigatório para causas contra o Poder Público78.

72 Art. 6°. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a

previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

73 Op. cit. p. 24.

74 Art. 6º. A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito

adquirido e a coisa julgada.

75 Art. 467. Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença,

não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.

76 Art. 471. Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas, relativas à mesma lide, salvo: (...). 77 Art. 485. A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando: (...).

78 Art. 475. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada

Esses dispositivos, entre outros que materializam também as normas constitucionais já referidas, bem demonstram que a segurança é um valor contemplado pelo ordenamento jurídico pátrio e protegido pelo principio da segurança jurídica.