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A semiótica dos sentidos e a sinestesia: o sensível em significados e

2. O SIGNO E A SEMIÓTICA DAS SENSAÇÕES: UMA CHANCE AO SENSÍVEL

2.3 A semiótica dos sentidos e a sinestesia: o sensível em significados e

Toda a relação com o signo peirceano nos aponta que o processo da semiose é complexo, pois leva em consideração inúmeras possibilidades que influenciarão no sentido interpretativo que o signo adquire ou assume em dada relação ou contexto. Por ser o homem um ser sígnico por natureza, portanto um ser de linguagem – ou seria essa uma relação inversa? – todo processo de interpretação de um signo desencadeia em outros signos. “Em qualquer momento, o homem é um pensamento, e como o pensamento é uma espécie de símbolo, a resposta geral à questão: Que é o homem? – é que ele é um símbolo” (PEIRCE 7.582 apud PIGNATARI, 2004, p. 40).

A linguagem é símbolo porque enquanto signo aponta para uma outra coisa, seu objeto, através de uma lei convencionada, que permite que o código linguístico represente o algo dito/escrito em dada esfera comunicativa, a saber: no idioma português brasileiro contemporâneo, por exemplo. É a partir da linguagem, e não apenas a verbal, que os fenômenos adquirem sentido diante da realidade consciente para nós, seres pensantes ou sígnicos. Pignatari (2004) discorre sobre a relação da leitura icônica que realizamos na literatura, signo simbólico, dado que é código linguístico. O teórico defende que o icônico e o simbólico estabelecem uma relação de troca não hierárquica na leitura de qualquer signo e é nessa relação não-hierárquica que buscamos construir nossa análise semiótica.

Em torno da palavra sentido, essa escorregadia, há um número considerável de significações. Em O sentido dos sentidos: a educação do sensível, Duarte Júnior (2001) discorre sobre alguns deles já na sua introdução. Desconsiderando alguns não relacionados à discussão elaborada neste estudo, citamos os que mais se destacam:

O primeiro se refere ao uso do termo para denotar “consciência”, como em “perdi os sentidos”. O segundo, indica uma lógica, uma razão de ser: “qual o sentido disso?” O terceiro, diz respeito a uma orientação, a uma direção: “em que sentido devo

seguir?” E, por fim, o quarto e o quinto remetem à nossa percepção do mundo, numa referência aos “órgãos dos sentidos” e também àquela faculdade que, supõe-se, possuímos e os transcenda: nosso “sexto sentido”, que aponta uma intuitiva capacidade de conhecer. Mas é preciso ainda tomar o termo enquanto particípio passado do verbo sentir, indicativo de tudo o que foi apreendido pelo nosso corpo de modo direto, sensível, sem passar pelos meandros do pensamento e da reflexão”. (DUARTE JÚNIOR, 2001, p. 12)

É interessante perceber que os significados acima mencionados estão extremamente relacionados a uma apreensão do mundo, uma relação sensorial com o externo e consigo mesmo, como forma consciente e como direção lógica de relacionamento e vivência com o espaço circundante ao sujeito. Isso porque, primeiramente, vivemos o mundo de forma sensória, nós o compreendemos, absorvemos e com ele interagimos a partir dos estímulos sensoriais. Nosso corpo e nossa mente pensam, primeiro, de forma sensível, e não racional. É a partir dos nossos sentidos que damos sentido ao mundo, que o significamos.

Começamos a trilhar, então, o caminho da semiótica das sensações, e pelas sensações vivemos a sinestesia. Vamos pensar a relação entre signo e as sensações no campo icônico da vida e da literatura. Como o jasmineiro possui forte apelo sensório, agindo pela semelhança – aspecto icônico do signo –, são suas sugestões sensoriais e qualitativas que auxiliam na construção de sua representação simbólica, agindo na lei que o legitima como símbolo. Discutiremos, pois, a relação sensorial da leitura do signo, bem como seu poder de cativação e emotividade. Para isso, vamos pensar o signo jasmineiro através dos sentidos, sinestesicamente.

Plaza (2003) afirma, no capítulo A tradução intersemiótica como intercurso dos

sentidos, que os estímulos sensoriais não são sentidos de forma departamentalizada, mas de

modo sinestésico. As sensações são, por excelência, sinestésicas. Isso é um ponto importante, pois, se tratando da criação ou ressignificação de um símbolo como o jasmim, quando falamos em sua cor, forma, textura ou cheiro, estamos teorizando de forma a interrelacionar os sentidos sob os quais o captamos, do mesmo modo como eles são absorvidos e sentidos na experiência real. Ou seja, as qualidades sensórias do signo jasmim agem de forma sinestésica, conjuntamente, simultaneamente.

O que nos interessa de modo especial nesse diálogo com Plaza, é sua noção de sinestesia como sensibilidade integrada, já que a leitura do signo escrito age conjuntamente com a leitura icônica do signo, ou seja, para além da linguagem verbal. Sobre sentidos e sensações é o teórico quem comenta:

Muito mais do que o real, o que os nossos sentidos captam é o choque das forças físicas com os receptores sensoriais. A palavra “sentidos” é tão enganosa quanto o conceito de “sensação”, pois não existem sentidos departamentalizados, mas sinestesia como inter-relação de todos os sentidos. A sinestesia como sensibilidade integrada ao movimento e inter-relação dos sentidos, garante-nos a apreensão do real” (PLAZA, 2003, p. 46).

O cheiro do jasmim, por exemplo, perde considerável valor se compreendido, especialmente em fins de construção estético-literária, desvinculado da imagem de sua flor, da cor, da textura de suas pétalas. Se ainda na percepção sensorial os sentidos agem de modo relacional, ao passar a ser representação linguística, signo linguístico, não age em compartimentos, mas em interrelações, seja nos juízos perceptivos que fazemos, na sensação gerada ou na representação. É justamente essa percepção que se transmuta em linguagem e nela deixa marcas.

Se os meios e, por extensão, as linguagens que eles (os juízos perceptivos) veiculam são ampliações diferenciadas da diversidade do nosso sistema sensório, de uma forma ou de outra, o caráter desse sistema sensório fica inscrito ou traduzido nesses meios” (PLAZA, 2003, p. 48).

Em outros termos, a palavra se constrói, também, por sensações, sua compreensão não se dá apenas no campo do verbal e racional, mas inclui o campo do icônico, do sensório, que deixa suas marcas na leitura do código. É essa mesma linha de pensamento, talvez apenas menos claramente sensória, que faz com que Pignatari (2004) considere a relação não hierárquica da leitura icônico-simbólica da literatura.

É também Plaza (2003) quem discute outra questão de interesse a este trabalho: a insuficiência do código como reflexo da insuficiência da percepção e dos sentidos departamentalizados. Pois, se nossos sentidos captam muito mais “o choque das forças físicas com os receptores sensoriais” (PLAZA, 2003, p. 46), isso implica dizer que nossos sentidos não captam, se não sinestesicamente, o real em seu caráter completo e complexo. Dessa forma, as linguagens, especialmente a verbal, como uma extensão lógica de transmissão de nossas experiências com o meio através dos sentidos e sensações, são insuficientes em seus signos, meios e efetivações comunicativas, para a representação do algo apreendido sensivelmente.

Para exemplificar e adentrar um pouco mais nessa questão da insuficiência do código para a significação do sensório, abrimos um parêntese para nos centrarmos no olfato, este captor de cheiros e sensações advindas do signo literário. Em Making sense: sense perpection

GOMES, 2009) destaca obras como O nariz, de Nicolai Gogol, Cyrano de Bergerac, de Edmond Rostand, Pinocchio, de Carlo Collodi, etc., como exemplos literários que fazem amplo uso do simbolismo nasal, entretanto, ressalta também que o interesse literário no nariz é bastante subdesenvolvido. “Em contraste com o penetrante olho ou com o musical ouvido, o nariz tende a implicar incômodas conotações de dissoluta vulgaridade e grotesca abjeção” (HERTEL, 2005, p. 116, apud GOMES, 2009, p. 21). É provavelmente por sua sensibilidade ao incômodo que o nariz foi relegado à posição de último dos sentidos e tão pouco estudado na literatura e pesquisado na biologia. Um dos problemas mais destacados é a problemática da riqueza de cheiros versus pobreza de linguagem. A descrição dos cheiros é um problema que tem seu cerne na ciência. Para alguns pesquisadores o cheiro seria mesmo algo subjetivo, podendo haver variações entre o que eu sinto ser o cheiro do jasmim e o que você sente, logo, possibilitando lacunas entre o que eu e você julgamos como um “odor enjoativo” ou um “odor agradável”.

Hertel (2005, apud GOMES, 2009) destaca que para descrevermos os cheiros nós lançamos mão de comparações (isso cheira como gato molhado) ou utilizamos empréstimos de palavras de outros domínios (tem uma mistura de notas florais e amadeiradas). Algo significativo, tendo em vista que a descrição de um cheiro acaba sendo a descrição de uma comparação com outros odores e/ou sensações, fazendo com que palavras de relação ganhem maior poder interpretativo. Em O imperador do olfato, Luca Turin, o protagonista, se incomoda com a fugacidade da nomeação dos cheiros: “Até os perfumistas usavam a palavra

madeira para descrever odores que eram bastante diferentes” (BURR, 2006, p. 277 - grifos do

autor).

Gomes (2009, p. 23) chama a atenção para o fato de que nem mesmo palavras como

perfume e cheiro são olfativas em sua origem etimológica. Segundo ela, perfumare

(esfumaçar através) e smölen (chamuscar) se referem a substâncias no ar que podem ser captadas pelos sentidos, incluindo o olfato, mas não são propriamente designativas de uma percepção olfativa do processo sensório. Por isso utilizamos analogias (Isso cheira como leite azedo), ou tomamos palavras de outros domínios, ressignificando seu sentido contextualmente (O perfume tem notas florais).

As relações comparativas que usamos no cerne da linguagem para descrever o cheiro das coisas é carregado de uma sinestesia de sensações e sentimentos que tomam por base a captação olfativa, mas com ela não se comprometem, acarretando na linguagem um acréscimo, isso sim, de sentimentos despertados por aquele cheiro, sentido em um lugar ou situação específicos. Em outras palavras, a linguagem verbal escrita, como signo, de modo

mais específico, é insuficiente para descrever as sensações olfativas puras, porque nossas sensações são mascaradas por outros processos sensórios, lógicos, racionais e situacionais. A linguagem é signo, e um signo sugere, indica ou representa um fenômeno que se apresenta à consciência, mas nunca é o fenômeno em si.

Nossa percepção sensória é sinestésica e assim também o é o processo de semiose. Ao pensar o cheiro do jasmim, essa qualidade pura de cheiro, não ignoramos que esse ícone funciona também como índice, estando ligado ao objeto de representação, o próprio jasmineiro, e aos locais em que este se vincula, ou simbólico, o que nesse cheiro e nessa planta se tornam lei, generalização de um conceito. O que acontece é que nas análises literárias muito se fala do símbolo sem se dar a devida atenção aos ícones que ele carrega, olhando superficialmente para os índices que o constituem. Esse apagamento dos sentidos se intensifica com a modernidade, o que vai acarretar aos novos processos interpretativos uma minimização das qualidades sensórias vinculadas ao signo de caráter simbólico.