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Os pássaros: a identidade pelo jasmineiro

4 SENTINDO O SIGNO: SANTA RITA EM PERSONAGENS, CHEIROS E

4.1 Santa Rita: um passeio cheirando a jasmins do Cabo

4.1.4 Os pássaros: a identidade pelo jasmineiro

Afonso é o protagonista da novela Os pássaros, presente na segunda parte da obra

Santa Rita. Filho de um antigo dono de escravos, esse personagem possui certas semelhanças

com Aprígio de Azevedo. Com a abolição da escravatura, a Guerra do Paraguai e a decadência que passou a assolar Santa Rita, Afonso viu o seu futuro confortável se desfazer. Agora casado e com uma filha moça, vive sem emprego,

Porque, tendo falido o negócio da serraria, havia seis meses, não descobrira meios de montar outra ocupação. [...] Até os vinte anos trabalhara no campo, ajudando o pai a dirigir os escravos nas plantações; não seria depois dessa idade que iria aprender outro ofício (CONDÉ, 1977, p. 215).

Diferente dos demais personagens de pequenos proprietários falidos, Afonso se afirma como um homem que não se mantém apegado ao passado, mesmo com mulher e filha a lhe cobrarem que seja o que seus pais foram: uma referência de poder econômico e moral. Contudo, nossa passagem pelo conto Os pássaros deve-se não a Afonso, mas a Aprígio. É através da narrativa daquele que sabemos sobre a morte deste último, que era amigo do seu pai, nos tempos em que os cafezais ainda cobriam os campos da cidade. Portanto, não nos deteremos nas aproximações que se podem realizar entre os dois personagens, mas apenas em uma rápida aparição do jasmineiro, tão rápida e significativa quanto a aparição de Aprígio nesta narrativa.

“_ O velho Aprígio de Azevedo morreu hoje de manhã...” (Ibidem, p. 2014). É assim, sem muitos detalhes, que descobrimos que a solidão foi vencida pela morte, o maior dos abandonos. Aprígio deixou de existir no plano de uma realidade ficcional, mas sua relação simbólica com o jasmineiro e o sobrado se mantém ainda e, arriscamos dizer, muito irá se passar antes que se apague do imaginário daquelas pessoas de Santa Rita, ou de seus leitores.

O sobrado do velho Aprígio funciona quase como uma extensão do personagem, como avaliamos anteriormente. Seus jasmineiros, que antes lemos como signo icônico, indicial e simbólico, em sua complexidade de relações com o próprio cheiro da planta, o sobrado, Aprígio e seu passado, são agora também uma parte significativa da construção da vida e da morte desse personagem, como o foi para outros em João e O apelo.

Um quarteirão adiante, fica o sobrado que pertencera ao velho Aprígio de Azevedo. Parece outro: as paredes caiadas, portas e janelas pintadas de novo, cachos de jasmineiros por sobre o muro. ‘Apesar de tudo, o sobrado deixou de ser o que foi. Morreu por dentro’. (Ibidem, p. 219).

Em Chão de Santa Rita, Aprígio nos afirma que a reforma fez o sobrado ser como era antigamente, como nunca deixou de ser para ele, mas em Os pássaros, Afonso não nos diz apenas que Aprígio morreu, mas também que o sobrado, com seus jasmineiros que, aqui, não exalam seu cheiro marcante e característico, não é mais o mesmo, ainda que esteja em ótimas condições, pois “morreu por dentro”, como se fosse mesmo uma pessoa, uma extensão de Aprígio, do próprio Afonso, do que de antigo já morreu nessa cidade. Sintomática afirmação de Afonso e sintomática também a ausência do cheiro do jasmim.

Em ocasiões anteriores, quando relacionamos o cheiro do jasmim a uma representação da morte de alguns personagens nas narrativas analisadas neste capítulo, o cheiro sufocante e marcadamente presente do jasmineiro era uma forte contribuição para a construção dessa relação. Contudo, é bastante pertinente a ausência dessa qualidade do signo nesse contexto já que, na construção da narrativa de Aprígio, o jasmineiro esteve presente como uma extensão do sobrado e parte da representação de uma identidade do personagem. A morte de Aprígio é refletida na morte do sobrado e, consequentemente, da morte odorífera dos jasmineiros que cobriam seu muro. O apagamento do odor característico dos jasmins do Cabo, nesse contexto, pode ser lido como representação de uma morte inodora no aspecto social, pois sendo o velho Aprígio um personagem já desprovido de prestígio na comunidade, abandonado e solitário, quem choraria a sua morte? A quem sua partida comoveria? A quem o cheiro dos jasmineiros poderia angustiar ao ponto de fazê-lo(a) desejar queimá-los, se o próprio Aprígio nos revela que, de todos os seus – entes, amigos, companheiros de vida –, só ele restara? Afonso recorda a sua figura antiga e imponente, na época em que ainda não havia enfrentado os paraguaios, quando ainda não conhecia a ruína, mas tampouco chora sua morte. Chora o leitor?

Nessa narrativa não parece haver quem se culpe pela morte de Aprígio, logo, o cheiro dos jasmins não poderia perturbar qualquer personagem. E como vínculo com a identidade de Aprígio, sua morte olfativa acompanha a morte do personagem. O jasmim tem se mostrado um signo de forte poder indicativo ao longo das análises. Seus aspectos icônicos e indiciais se mostram pertinentes e integrados na formação de um potencial simbólico. Seja qual for a relação estabelecida, o jasmim sempre aponta para um outro: outro sentimento, outro lugar, expressão ou abandono.

O jasmineiro parece estar presente sempre em contextos muito particulares e especialmente ligado ao passado, às recordações de uma vida menos miserável, em uma cidade menos decadente, para alguns ao menos. O jasmineiro não se vincula, enquanto signo linguístico-literário, apenas aos personagens, mas também à espaços, memórias, tempos e ações. Age de forma distinta no micro espaço das narrativas, mas em uma análise macro é

possível perceber as conexões e interrelações do seu processo de semiose narrativa se estendendo como teias entre os contos e novelas, não apenas unindo-os numa obra que se completa, mas criando para si, enquanto símbolo, um espaço e uma significação distinta e irrefreável nessa literatura.