• Nenhum resultado encontrado

O Direito é uma ciência que disciplina a conduta das pessoas, normatizando como devem agir em determinadas situações (estabelecendo, por exemplo, os deveres dos cônjuges, no Código Civil) e como não devem agir em outras, enquanto cidadãos individualmente responsáveis pela paz e bem estar social (sistematizando, por exemplo, condutas inaceitáveis e passíveis de punição, no Código Penal). Além disso, o judiciário é chamado a solucionar os litígios oriundos das relações sociais, indicando o modo de proceder frente a determinada circunstância e realizando o que se entende por Justiça.

Tudo isso é feito por meio de uma linguagem que preza pelo purismo linguístico – fenômeno se processa pelo que foi historicamente elegido como o “melhor” em detrimento dos demais, estabelecendo o que se convencionou de um modo de falar e escrever como o melhor, aquele a ser seguido e imitado por todos, garantindo, assim a pureza da língua. São chamados puristas aqueles que, prezando por essa pureza da língua, rejeitam todas as formas e termos inovadores, vistos, segundo Marcos Bagno (2009) como a “decadência”, “corrupção” e “ruína” não só da língua, mas também, muitas vezes, dos valores morais da sociedade.

Conforme as lições de Bagno (2009), o termo purista surgiu na França, no século XVII, no apogeu do regime absolutista, centralizado na figura de um rei todo-poderoso, de

43 uma concepção de mundo e de sociedade doentiamente elitista, que só dava valor ao que vinha do topo do topo, da nata da nata. Hoje, cronológico e geograficamente distantes dessa realidade européia, ainda é possível identificar esse purismo e demasiado apreço pelas formas mais conservadoras no nosso país, especialmente no Judiciário.

A situação no Judiciário, em relação à linguagem conservadora, é tão séria que não são apenas termos do “melhor português” que vimos agigantar as peças processuais, mas também termos e expressões latinas, provenientes do direito romano, para os quais temos correspondentes em nossa língua. Sem deixar de reconhecer a importância do direito romano e todo o legado que nos deixou, pensamos que não há razão que justifique o uso de tais expressões, senão o conservadorismo e purismo linguístico – nada pragmáticos.

Ademais, se, como já enfatizamos nos tópicos anteriores, a linguagem figura como um óbice ao acesso à justiça, o motivo maior não é outro que não esse. O rebuscamento da linguagem jurídica já levou inclusive a consolidação do termo juridiquês – neologismo com conotação pejorativa utilizado para se referir à linguagem dos juristas, que se caracteriza pelo uso excessivo de termos técnicos e jargões próprios da seara jurídica, de palavras arcaicas, além do uso de estrangeirismos, sobretudo o latim.

Sabemos que muitos outros interesses, que não propriamente a pureza lingüística, contribuem para o conservadorismo e o uso de uma linguagem não acessível a todos no âmbito judicial. Também as relações de poder são determinantes nessa escolha. O magistrado e o promotor se utilizam da linguagem para expressar seu poder e para se fazerem respeitar, os advogados se utilizam da linguagem para impressionar seus clientes e se mostrar indispensáveis. Segundo Gnerre (1998), as pessoas falam para serem ouvidas, às vezes para serem respeitadas e também para exercer uma influência no ambiente em que realizam os atos lingüísticos. Contudo, não cabe nesse estudo um levantamento dos motivos que levam os operadores do direito a se utilizarem de tais artifícios; interessa-nos aqui investigar se e como a linguagem dificulta o acesso ao judiciário e de que modo a sua simplificação pode promover esse acesso.

Escolhemos como objeto de estudo e análise, dentre as peças jurídicas, a sentença. A sentença é uma das mais relevantes peças do âmbito jurídico, pois, segundo Fux (2004), é o ato pelo qual o juiz cumpre a função jurisdicional, aplicando o direito ao caso concreto, definindo o litígio e carreando a paz social pela imperatividade que a decisão encerra.

44 Este conceito fundamenta-se no art. 162, § 1º, do Código de Processo Civil, que preceitua que “a sentença é o ato pelo qual o juiz põe fim ao processo, decidindo ou não o mérito da causa”.

As sentenças, segundo Chimenti (2005, p. 198), podem ser definitivas ou terminativas. São definitivas quando apreciam o mérito da causa e definem o litígio, encerrando o processo; inexistindo impedimentos, esse é modo normal de extinção do processo, com a resolução da lide e extinção do direito de ação. São terminativas quando põem fim ao processo sem decidir a lide, em virtude de obstáculos processuais que impedem a análise do mérito; desse modo, a sentença terminativa encerra o processo, mas não resolve o litígio entre as partes, permitindo que a lide seja novamente proposta.

Ademais, Baptista (2006) ressalta que a classificação da sentença se faz pelo efeito principal do julgado, conforme contenha uma declaração, uma condenação ou uma constituição de relação jurídica. Destarte, as sentenças definitivas podem ser: declaratórias, quando reconhecem a existência ou inexistência de uma obrigação; condenatórias, quando declaram uma obrigação, condenando o vencido a cumpri-la – a sentença condenatória exerce dupla função, uma que é comum a todas as sentenças, de declarar o direito existente, e outra que lhe é própria, a aplicação da sansão –, ou constitutivas, quando declaram algo e simultaneamente criam, modificam ou extinguem determinada relação ou situação jurídica.

A sentença guarda estreita relação com o pedido do autor, porquanto as decisões prolatadas pelo magistrado, em regra, não podem conhecer senão das questões suscitadas e não podem decidir senão nos limites em que a ação foi proposta, conforme inteligência dos artigos 128 e 460 de nossa lei processual cível.

Em vista disso, assim, a sentença que decide questão inteiramente estranha ao que foi pedido é chamada de extra petita; a que decide além do que foi pedido, de ultra petita; a que deixa de analisar um dos pedidos, decidindo a respeito, de infrapetita. Nesse sentido, Liebman (1994) afirma que o que o juiz, ao prolatar a sentença, simplesmente declara a norma jurídica aplicável ao caso concreto. Sua atividade não lhe permite, portanto, criar direitos que já não estejam previstos no ordenamento jurídico. Assim, na sentença o juiz apenas apresentaria a norma jurídica que melhor se adaptasse ao caso concreto deduzido em juízo, sem apresentar conclusões valorativas subjetivas.

Ressalte-se que nos Juizados Especiais, em que o juiz deve adotar em cada caso a decisão que reputar mais justa e equânime, há que se reconhecer, conforme salienta Chimenti (2005, p. 199), que não implica julgamento extra petita indicar o julgador, ao acolher o

45 pedido, fundamento legal diverso do mencionado na inicial, pois a decisão deve se ater aos pedidos e não ao fundamento.

Outra observação pertinente quanto às sentenças prolatadas nos Juizados é que ela gera os mesmos efeitos das sentenças proferidas pelos magistrados das varas comuns, assim, quando se torna definitiva, faz coisa julgada material, não podendo a questão ser reapreciada nem pelo mesmo órgão nem por outro órgão jurisdicional.

A sentença encerra um juízo de valor jurídico através de um ato de inteligência do juiz acerca dos fatos e do direito aplicável, conforme Theodoro Junior (2006), e é revestida de uma força obrigatória, conferida pelo ordenamento jurídico e fruto de uma manifestação de poder. Contudo, para que tenha eficácia, esta peça deve atender a um conjunto de condições intrínsecas e formais; o artigo 458 do CPC elenca os requisitos essenciais da sentença: o relatório, os fundamentos e o dispositivo.

O relatório é o preâmbulo da sentença, nele se concentra o histórico de toda a relação processual, desde a juntada de documentos até os incidentes mais importantes. Conforme o Inciso I, do art. 458 do CPC, ele deve conter os nomes das partes, a suma do pedido e da resposta do réu, bem como o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo. A ausência de relatório enseja a nulidade da sentença. Vale salientar que a Lei n 9.099/95, que disciplina o processo nos Juizados Especiais, lastreada nos princípios da celeridade e informalidade, dispensa o relatório formal previsto no inciso I do art. 458. Apesar disso, destacam Melo e Teófilo Neto (1997, p. 65), é preciso que a sentença identifique, pelo menos, a ação em que foi proferida e as quais partes ela se destina.

Superado o relatório, o juiz passa a expor os fundamentos de sua decisão, ou, como denominou o art. 38 da Lei n 9.099/95, os elementos de sua convicção: “A sentença mencionará os elementos de convicção do Juiz, com breve resumo dos fatos relevantes ocorridos em audiência, dispensado o relatório”. A motivação das decisões judiciais é princípio assegurado constitucionalmente, como demonstrado na sessão anterior, pois a sentença sem fundamentação agride o ordenamento constitucional e mostra a face da arbitrariedade, incompatível com o Estado de Direito.

Ademais, a parte vencida precisa entender o raciocínio lógico e legal que levou o Juiz a decidir de determinada maneira, para que possa averiguar eventuais injustiças e ilegalidades encartadas no ato. É um direito de quem está sendo acusado compreender os termos da acusação. A falta de fundamentação acarreta nulidade da decisão, pois ofende o princípio constitucional da fundamentação das decisões judiciais, atingindo os litigantes diretamente, e

46 ainda a ordem pública, provocando o reconhecimento de nulidade que deve ser considerada como absoluta, podendo a instância superior conhecer dessa questão "ex officio", bem como a parte interessada pode interpor recurso de apelação.

Encerrando a sentença, temos o dispositivo, que concentra a decisão propriamente dita; é parte em que o juiz resolve as questões que lhe foram submetidas, julgando procedente, parcialmente procedente ou improcedente o pedido inicial. De acordo com Fraga (apud THEODORO JÚNIOR, 2006, p. 457), trata-se do elemento substancial do julgado, já que sua falta acarreta mais do que nulidade da decisão, pois a sentença sem dispositivo é ato inexistente.

Podemos perceber, assim, que o magistrado deve seguir uma estrutura prescrita em lei na elaboração da sentença e redigi-la de forma clara, sem arcaísmos jurídicos que prejudiquem o sentido da peça jurídica, para que se possa entender o raciocínio jurídico e para que se cumpra a sua função de instrumento pacificador na composição do litígio – principalmente, nos Juizados Especiais, em que as partes podem não estar assistidas por advogados.

Nas palavras (simples e claras) do desembargador Lourival Serejo10 (2005), não se pode falar em acesso à justiça mantendo-se a população distante das decisões judiciais pela barreira da linguagem hermética e pedante, longe da compreensão razoável e compatível com a escolaridade média do povo brasileiro.

Desse modo, sem o atributo da simplicidade e consequente clareza, a linguagem judicial se perde nas dobras da vaidade do seu autor e acaba prejudicando a prestação jurisdicional, pois não se cumpre aquilo que não se entende.

Partindo da premissa que a falta de clareza de uma decisão compromete o seu cumprimento, na sessão seguinte analisaremos algumas sentenças de Juizados Especiais a fim de investigar se os juízes observam o princípio da simplicidade em suas decisões e se estas podem ser normalmente compreendidas pelos seus destinatários, as partes – que, vale lembrar, nos Juizados litigam sem assessoria de advogado.

10 SEREJO, Lourival. A clareza da linguagem judicial como efetivação do acesso à Justiça. Disponível em: http://www.amb.com.br/portal/juridiques/juridiques.asp. Acesso em 24 de novembro de 2010. [Trabalho premiado, em 2º lugar, no concurso da AMB, resultante da campanha “Simplificação da Linguagem Jurídica”, em 2005]

47

5 UMA ANÁLISE DE SENTENÇAS DA COMARCA DE CAMPINA

GRANDE À LUZ DO PRINCÍPIO DA SIMPLICIDADE

A simplicidade foi contemplada em muitos aspectos da Lei n. 9.009/95, como na competência, capacidade postulatória e na delegação de atividades. No que concerne à competência, as causas a serem examinadas nos Juizados não podem ser de maior complexidade. No que diz respeito à capacidade postulatória, é facultado à parte litigar sem a assistência de advogado nas causas de até vinte salários mínimos. Quanto à delegação de atividades, a lei em questão autoriza que os atos processuais sejam presididos por conciliadores e juízes leigos, criando uma justiça mais sensível às necessidades locais.

Não obstante, no nosso entendimento, o aspecto mais relevante do princípio da simplicidade encontra-se normatizado pelo parágrafo primeiro do artigo 14 da Lei n. 9.099/95, que dispõe que o pedido apresentado à Secretaria do Juizado, escrito ou oral, deverá conter, de forma simples e em linguagem acessível, o nome, a qualificação e o endereço das partes (inciso I), os fatos e fundamentos, de forma sucinta (inciso II), e o objeto e seu valor. Através de interpretação sistemática desta disposição legal, pode-se afirmar que a todos os atos deste procedimento especial deverá ser aplicada a regra da simplicidade e concisão do vocabulário.

Como já ressaltado no capítulo anterior, essa é a concepção do princípio da simplicidade conjugada com os modernos ditames do devido processo legal e do acesso à Justiça, no sentido de tornar acessível às partes a linguagem utilizada em todos os atos do processo, especialmente nas decisões, garantindo o efetivo acesso ao cidadão que busca resguardar os seus direitos, mas não possui o conhecimento técnico para defendê-los.

Destarte, a primeira das aplicações práticas dessa formulação do princípio da simplicidade deve verificar-se nas decisões judiciais. Uma decisão que não observa esse princípio e foge da clareza e concisão fica comprometida, na medida em que as partes podem deixar de cumpri-la por não entendê-la.

A própria Lei n. 9.099 dispensa o relatório da sentença, estabelecendo uma orientação para o julgador, que deverá proferir decisão concisa, em evidente intuito de abreviar o procedimento. Do mesmo modo, a linguagem da fundamentação e do dispositivo das decisões deverá ser simplificada.

48 Em seu aspecto técnico, os fundamentos da decisão têm a função de permitir o controle da sentença pelas instâncias superiores e de fornecer às partes matéria-prima para a interposição de possíveis recursos, mas em seu escopo social, a fundamentação atua como pacificador, eis que as partes também devem reconhecer a justiça da decisão proferida.

Objetivando verificar a aplicação do princípio da simplicidade nas decisões proferidas nos Juizados Especiais desta Comarca, passaremos a analisar sentenças prolatadas pelo magistrado da 1º Juizado Especial, que constituem o nosso objeto de pesquisa.

Com base nas regularidades apresentadas pelos dados, organizamos esta análise em dois tópicos: o primeiro constituído por exemplos que apresentam expressões estrangeiras, especialmente o latim, e o arcaísmo; o segundo, por exemplos que apresentam uma linguagem excessivamente técnica em suas motivações.

Não pretendemos fazer uma análise exaustiva, nem tão pouco definitiva, até porque isto seria impossível. Nossa intenção é descrever os resultados encontrados para ao fim tecer nossas conclusões.

Documentos relacionados