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Sabemos que a linguagem está presente em todos os atos da humanidade, em todas as instâncias sociais, não apenas como forma de agir, mas como forma de representação do mundo: é por meio da linguagem que agimos e interagimos. Destarte, ela não pode ser estudada separadamente da sociedade que a produz, pois a realidade social tem influência direta no processo interativo, que envolve o locutor, o interlocutor, e a situação contextual.

A interação verbal, por sua vez, constitui a realidade fundamental da língua, cuja natureza social deve ser sempre considerada, conforme Bakhtin (2002). Devido a esse caráter social da língua, é imprescindível que o locutor considere o ponto de vista do interlocutor, pois toda enunciação pressupõe um processo de interação verbal, o qual se dá, no mínimo, entre dois sujeitos e, mesmo que não exista um interlocutor concreto, Bakthin (2002, p. 112) explica que este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor.

Bakhtin (2002, p. 113) explica ainda que toda palavra apresenta duas faces e a define, metaforicamente, como uma ponte: “A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apóia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor”. Em suma, a interlocução é uma via de mão dupla na qual figuram personagens distintos – locutor e interlocutor, que precisam ser considerados como seres que possuem uma história, uma ideologia, um mundo particular.

Nesse contexto, pensemos no discurso jurídico, sustentado por um dualismo que consiste numa relação hierárquica e marcado por um profundo autoritarismo que define bem o papel de cada sujeito no discurso. O sujeito que fala da posição de juiz, por exemplo, adsquire uma identidade: quando ele profere uma sentença resolvendo um litígio, não é ele que fala, mas a sua posição – posição em que todos os juízes se colocam. Assim, a sua fala é, relativamente, mais relevante e significativa que a dos demais sujeitos participantes do processo, no sentido em que explica Orlandi (2001, p. 32-33):

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Como nossa sociedade é construída por relações hierarquizadas, são relações de força, sustentadas no poder desses diferentes lugares, que se fazem valer na „comunicação‟. A fala de um juiz vale (significa) mais do que a do advogado.

No discurso jurídico, especialmente no contexto dos Juizados Especiais, muitas vezes a interação verbal não é efetivada, não há espaço para enunciação, pois os sujeitos envolvidos, os locutores e interlocutores, não pertencem à mesma comunidade lingüística – o que seria indispensável, conforme Bakhtin (2002, p.70), para que a troca lingüística fosse possível. Além disso, as partes não são consideradas em suas peculiaridades e fragilidades, em sua história e seu mundo particular, como deveria ser para que ocorresse a interlocução.

Se, de um lado, o próprio legislador permite que pessoas leigas, comumente humildes e de instrução limitada, possam, sem qualquer representante técnico, dirigir-se ao Estado-juiz; de outro, impende que o princípio da simplicidade atue viabilizando que tais pessoas sejam capazes de compreender os termos daquilo que estão sendo acusadas, os limites do que devem pagar, as conseqüências de seus atos, as razões do magistrado ao decidir, enfim, de maneira geral, todas as palavras adotadas nas petições, de modo que possam exercer seu direito de ampla defesa e contraditório, com a amplitude que a Constituição da República de 1988 os consagrou.

Em verdade, esse é o caminho para alcançar a interação verbal, na qual locutor e interlocutor utilizam-se da palavra como uma ponte. Ocorre que essa ponte parece ter desabado, dando lugar ao abismo entre os sujeitos processuais (magistrados, juízes leigos, conciliadores, partes e testemunhas), que não fazem da palavra um lugar comum. Algumas peças jurídicas são redigidas de uma forma tal que se torna impossível a compreensão desses textos por alguém que não faça parte do meio jurídico.

Nesse sentido, acreditamos que a linguagem, embora não tenha sido listada por Cappelletti e Garth (2010) como tal, também se apresenta como um obstáculo ao acesso efetivo à justiça, visto que para haver comunicação eficaz entre duas pessoas, numa dada circunstância, é preciso existir determinados elementos que favoreçam a situação comunicativa. No caso dos Juizados, em que se permite que a parte esteja pessoalmente em juízo, esses elementos concentram-se, principalmente, na adequação da terminologia jurídica à condição peculiar de cada pessoa que procura o judiciário, seu grau de instrução e formação cultural. Conceitualismo jurídico e purismo terminológico deve ser exigido dos técnicos e dispensado dos leigos.

40 Ademais, corroborando nosso pensamento, uma pesquisa realizada pelo Ibope em 2003, para avaliar a opinião da sociedade sobre o judiciário, constatou que, além da morosidade nos processos, é a linguagem jurídica usada por magistrados, advogados, promotores e demais operadores do direito que mais incomoda a população.

Ressalte-se, outrossim, que a lei dos Juizados Especiais admite que a parte compareça pessoalmente à secretaria do juízo e formule, oralmente, seu pedido, narrando os fatos ao servidor responsável pela secretaria, que o transcreverá “de forma simples e em linguagem acessível” (artigo 14, § 1º). Através de interpretação sistemática desta disposição legal, pode- se afirmar que a todos os atos deste procedimento especial deverá ser aplicada a regra da simplicidade de vocabulário.

Essa é a concepção do princípio da simplicidade conjugada com os modernos ditames do devido processo legal e do acesso à Justiça, no sentido de adequar a terminologia jurídica ao contexto de interlocução, no qual se insere um cidadão em busca de seus direitos, mas sem conhecimento técnico para defendê-los. Esta é a leitura que se deve fazer do dispositivo (artigo 2º) que consagra a simplicidade como um dos princípios norteadores dos Juizados Especiais.

A busca da clareza na linguagem não é questão apenas de clamor social, ela tem amparo legal, presente em princípios constitucionais e em dispositivos de leis, espalhados em nossa legislação, como na já citada lei dos juizados especiais (Lei n.º 9.099/95), que determina expressamente a simplificação da linguagem no seu procedimento; no Estatuto da Criança e do Adolescente, que tem como fundamento de concretização a participação de toda sociedade; no Código de Defesa do Consumidor que adotou o princípio da informação, que culmina na obrigatoriedade de clareza destas; além do próprio Código de Processo Civil que prevê eficiente remédio processual contra a obscuridade da linguagem, qual seja o embargo de declaração.

O CPC dispõe ainda, em seu artigo 156, que “em todos os atos e termos do processo é obrigatório o uso do vernáculo”. Discorrendo sobre esse artigo, Machado (2007, p. 154) diz que:

a exigência de emprego da língua portuguesa em todos os atos processuais não significa que os juízes [...] estejam proibidos de referir textualmente artigos de lei e lições doutrinárias, incluindo brocardos, em língua estrangeira. Tais referências encontram-se incorporadas à nossa tradição forense e não maculam a perfeita inteligibilidade das manifestações dos sujeitos do processo.

41 Ousamos discordar do doutrinador, pois a atividade jurídica avança no sentido da simplificação da linguagem, como meio de promover o acesso à justiça, e pensamentos assim configuram um entrave nesse caminho, pois, embora brocardos e citações estrangeiras façam realmente parte da tradição forense, não se pode afirmar que estes não prejudicam as manifestações dos sujeitos do processo. Se assim fosse, a população não se diria tão insatisfeita em relação à linguagem utilizada pelos operadores do direito.

Expressões estrangeiras só devem ser utilizadas quando não houver correspondente na língua portuguesa, quando não houver um substituto que não prejudique a precisão de significado. Não se pode admitir seu uso indiscriminadamente apenas como forma de demonstrar erudição, até porque, repetimos, o processo é dirigido às partes, elas são as maiores interessadas na solução da lide, não podem ser tolhidas de uma linguagem acessível.

Nesse sentido, vale citar o Projeto de Lei nº 7448, de 2006 (anexo J), ainda em tramitação, que visa a alterar a redação do inciso III do artigo 158 do Código de Processo Civil (que enumera os requisitos formais da sentença), acrescentando que a parte dispositiva será redigida de maneira acessível às partes.

A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) também se manifestou preocupada com a questão da linguagem e do acesso à Justiça e lançou, em agosto de 2005, uma campanha para simplificar a linguagem jurídica utilizada pelos operadores do direito. Para a entidade, a reeducação lingüística nos tribunais e nas faculdades de Direito, com o uso de uma linguagem mais simples, direta e objetiva, está entre os grandes desafios para que o Poder Judiciário fique mais próximo dos cidadãos.

O desembargador Lourival Serejo (2005), em texto premiado pela AMB, descreve como deve ser o comportamento do juiz para obter a clareza. Segundo ele, o magistrado deve evitar a prolixidade, adotar a palavra exata para denominar as coisas, usar parágrafos curtos, evitar o exagero dos termos técnicos e vencer a tentação de inovar a qualquer pretexto, inventando sinônimos desnecessários, substantivando verbos e coisas desse gênero.

Nessa perspectiva, Arrudão (2005) afirma que a simplificação da linguagem jurídica não significa assumir um estilo tosco, vulgar, sem conhecimento da nossa língua, da sua expressividade e até da função poética da linguagem, não podendo ser vista, também, como patrulhamento estilístico ou prescrição fórmulas de ouro a serem seguidas cegamente nos corredores forenses. Para se escrever com simplicidade, é preciso ter objetividade e clareza, respeitando o nível de linguagem.

42 Sem o atributo da clareza e da objetividade, o estilo judicial se perde nas dobras da vaidade e do narcisismo do seu autor e acaba prejudicando a entrega da prestação jurisdicional. Tais elementos são imprescindíveis na linguagem jurídica, notadamente na sentença jurídica que traduz a vontade da lei aplicada ao caso concreto, em que o magistrado deve expressar claramente o que foi decidido.

Além disso, é pressuposto para o cumprimento da função social do direito que este seja compreendido pelos jurisdicionados. Só através da simplificação a linguagem jurídica atingirá sua natureza dialógica em sua plenitude.

Portanto, a simplificação da linguagem passa a ser um instrumento fundamental na promoção do acesso à justiça, contribuindo para a compreensão do funcionamento e da atuação do Poder Judiciário como um todo, pois uma linguagem incompreensível torna o judiciário também incompreensível.

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