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1) a prova obtida fortuitamente será válida (serendipidade de primeiro

2.3 A serendipidade na interceptação telefônica: uma análise jurisprudencial

Em que pese o Senado Federal tenha formalizado a primeira tentativa no sentido de regulamentar a matéria atinente aos encontros fortuitos de provas, ainda que de forma bastante modesta, no bojo do Projeto de Lei n.º 156/2009, aprovado e encaminhado para revisão da Câmara dos Deputados em final de 2010, especificamente no artigo 250, que trata somente das interceptações telefônicas, até o presente momento isso não se concretizou. Isso faz perdurar uma lacuna legislativa que não foi preenchida nem mesmo a partir da vigência da Lei das Interceptações Telefônicas em 1996.

Enquanto essa positivação não ocorre, a jurisprudência dos tribunais volta-se à aplicação da Teoria ou Princípio da Serendipidade ao caso concreto, em que pese isso ocorra de maneira não uniformizada ante as divergências de interpretação existentes. Pelo entendimento majoritário, aplica-se o critério da conexão/continência, verificando-se quando ela está presente (endossa a prova) ou ausente (endossa a notícia-crime), para determinar o grau de serendipidade. Contudo, vale ressalvar que será possível encontrar algumas decisões bastante flexíveis se comparadas com aquelas colacionadas a seguir, a ponto de admitir o encontro fortuito como prova propriamente dita (e não notícia-crime), sem maiores fundamentações, mesmo não havendo conexão com o fato originariamente objeto da investigação, o que segue na contramão dos direitos e garantias fundamentais, bem como fere princípios insculpidos na Constituição Federal de 1988, como o princípio da proporcionalidade.

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus n.º 83.515/RS (BRASIL, 2004, grifo nosso), de relatoria do Ministro Nelson Jobim, pela primeira vez manifestou-se favoravelmente à admissibilidade dos encontros fortuitos de prova nas interceptações telefônicas:

HABEAS CORPUS. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA. PRAZO DE VALIDADE. ALEGAÇÃO DE EXISTÊNCIA DE OUTRO MEIO DE INVESTIGAÇÃO. FALTA DE TRANSCRIÇÃO DE CONVERSAS INTERCEPTADAS NOS RELATÓRIOS APRESENTADOS AO JUIZ. AUSÊNCIA DE CIÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO ACERCA DOS PEDIDOS DE PRORROGAÇÃO. APURAÇÃO DE CRIME PUNIDO COM PENA DE DETENÇÃO. 1. É possível a prorrogação do prazo de autorização para a interceptação telefônica, mesmo que sucessivas, especialmente quando o fato é complexo a exigir investigação diferenciada e

contínua. Não configuração de desrespeito ao art. 5º, caput, da L. 9.296/96. 2. A interceptação telefônica foi decretada após longa e minuciosa apuração dos fatos por CPI estadual, na qual houve coleta de documentos, oitiva de testemunhas e audiências, além do procedimento investigatório normal da polícia. Ademais, a interceptação telefônica é perfeitamente viável sempre que somente por meio dela se puder investigar determinados fatos ou circunstâncias que envolverem os denunciados. 3. Para fundamentar o pedido de interceptação, a lei apenas exige relatório circunstanciado da polícia com a explicação das conversas e da necessidade da continuação das investigações. Não é exigida a transcrição total dessas conversas o que, em alguns casos, poderia prejudicar a celeridade da investigação e a obtenção das provas necessárias (art. 6º, § 2º, da L. 9.296/96). 4. Na linha do art. 6º, caput, da L. 9.296/96, a obrigação de cientificar o Ministério Público das diligências efetuadas é prioritariamente da polícia. O argumento da falta de ciência do MP é superado pelo fato de que a denúncia não sugere surpresa, novidade ou desconhecimento do procurador, mas sim envolvimento próximo com as investigações e conhecimento pleno das providências tomadas. 5. Uma vez realizada a interceptação telefônica de forma

fundamentada, legal e legítima, as informações e provas coletas dessa diligência podem subsidiar denúncia com base em crimes puníveis com pena de detenção, desde que conexos aos primeiros tipos penais que justificaram a interceptação. Do contrário, a interpretação do art. 2º, III, da L. 9.296/96 levaria ao absurdo de concluir pela impossibilidade de interceptação para investigar crimes apenados com reclusão quando forem estes conexos com crimes punidos com detenção. Habeas corpus

indeferido.

Originariamente, o caso concreto referia-se a uma ação penal promovida contra vários réus em dezembro de 2001, junto à Primeira Vara Federal de Canoas/RS, em face do cometimento de diversos crimes, como evasão de divisas, formação de quadrilha, lavagem de dinheiro, sonegação fiscal, venda de substância nociva à saúde, fornecimento de substância medicinal em desacordo com receita médica e usura, praticados por organização criminosa, alguns punidos com pena de reclusão (três primeiros) e os demais com pena de detenção. Nesse sentido, tratava-se de um conjunto complexo de fatos e crimes interligando inúmeros réus, processados ao fim de uma longa investigação, em que houve inúmeras renovações de interceptações telefônicas, fundamentadas pelo Juízo. Além de propiciarem os encontros fortuitos de provas, as sucessivas renovações trouxeram muitos elementos de convicção a subsidiar a denúncia, recebida pelo Juízo singular.

Após o Tribunal Regional Federal da Quarta Região haver denegado Habeas Corpus e o Superior Tribunal de Justiça negar provimento a Recurso Ordinário interposto em Habeas

Corpus pela Defesa, o STF também indeferiu a ordem. Em seu voto, o Ministro relator

asseverou que a intenção da Lei n.º 9.296/96, em seu artigo 2º, inciso III, é evitar a banalização do procedimento da interceptação telefônica com o início da diligência pautado

na apuração de crime com menor gravidade, apenável com detenção, pois tal medida destina- se a desvendar crime mais grave, punido com reclusão. Contudo, no caso em comento, ressalvou que a interceptação executada de forma legal, trazendo novos elementos probatórios de outros crimes que não constituíam o objeto das gravações, pode e deve fazer valer tais provas, uma vez havendo conexão.

Como visto, há mais de década o STF vem admitindo os encontros fortuitos como provas, sobretudo no caso concreto acima ilustrado, em que tais elementos derivaram de interceptação telefônica devidamente autorizada, mediante decisão judicial fundamentada, ainda que o objeto investigado fosse outro. A Suprema Corte foi além, admitindo, inclusive, que a interceptação subsidiasse a denúncia com base em infrações penais conexas punidas com pena de detenção. A situação aqui posta enquadra-se, portanto, como serendipidade de primeiro grau, pois considera a conexão entre o fato fortuito apenado com detenção e o fato objeto da investigação punido com pena de reclusão, para determinar a validade da prova.

Naquela época, o Superior Tribunal de Justiça também decidiu favoravelmente pela admissão dos encontros fortuitos como prova, desde que observado o critério da conexão/continência, que fundamenta a serendipidade de primeiro grau. Nesse sentido, a ementa do julgamento do Habeas Corpus n.º 33.553/CE (BRASIL, 2005, grifo nosso):

HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. PRISÃO PREVENTIVA. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS AUTORIZADORES. REVOGAÇÃO DA PRISÃO CAUTELAR. PERDA DO OBJETO. PROVA. ESCUTA TELEFÔNICA. ILICITUDE. INEXISTÊNCIA. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE. 1. Constatada a revogação da prisão preventiva do ora Paciente, resta esvaído parte do objeto do presente writ, que visava ao reconhecimento de constrangimento ilegal pela manutenção da prisão cautelar. 2. É lícita a prova de crime diverso, obtida por meio de

interceptação de ligações telefônicas de terceiro não mencionado na autorização judicial de escuta, desde que relacionada com o fato criminoso objeto da investigação. 3. A legitimidade do Ministério Público

para conduzir diligências investigatórias decorre de expressa previsão constitucional, oportunamente regulamentada pela Lei Complementar n.º 75/93. É consectário lógico da própria função do órgão ministerial - titular exclusivo da ação penal pública -, proceder a coleta de elementos de convicção, a fim de elucidar a materialidade do crime e os indícios de autoria. 4. Writ prejudicado em parte e, na parte conhecida, denegado.

Tratava-se, na origem, de uma ação penal promovida junto à Primeira Vara da Comarca de Crateús/CE, em face da prática de homicídio qualificado, em concurso de agentes, bem

como de associação criminosa. Pelo que se depreende da análise do caso, os fatos ensejadores da denúncia foram descobertos por acaso, durante investigação de diversos suspeitos que tiveram suas ligações telefônicas monitoradas por autorização judicial, visando especificamente à apuração dos envolvidos na clonagem de cartões bancários. O nome do réu foi citado várias vezes no decorrer da interceptação, como sendo o executor de uma tentativa de homicídio, a mando de grupo criminoso. Assim, devido a sua relação com terceiros investigados, descobriu-se sua co-participação em crime diferente, porém diretamente relacionado com as atividades da organização criminosa a qual estava vinculado.

Em face da decisão de primeiro grau, foi impetrado Habeas Corpus, denegado pela Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Ceará. Contra o acórdão proferido pela Corte Estadual, também foi impetrado Habeas Corpus, mas a Quinta Turma do STJ julgou parcialmente prejudicado o pedido e, no mais, denegou o Writ. Segundo a relatora do Habeas

Corpus, Ministra Laurita Vaz, inexistiu violação ao direito de intimidade do paciente ou

ilicitude nas provas, pois o crime descoberto fortuitamente se relacionava diretamente com as atividades criminosas investigadas.

Exceção ao pronunciamento judicial anterior consta do julgamento do Habeas Corpus n.º 69.552/PR (BRASIL, 2007, grifo nosso), que dispensou o critério da conexão:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. ART. 288 DO CÓDIGO PENAL. INÉPCIA DA DENÚNCIA OFERECIDA EM DESFAVOR DOS PACIENTES BASEADA EM MATERIAL COLHIDO DURANTE A REALIZAÇÃO DE INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA PARA APURAR A PRÁTICA DE CRIME DIVERSO. ENCONTRO FORTUITO. NECESSIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DA CONEXÃO ENTRE O CRIME INICIALMENTE INVESTIGADO E AQUELE FORTUITAMENTE DESCOBERTO. I - Em

princípio, havendo o encontro fortuito de notícia da prática futura de conduta delituosa, durante a realização de interceptação telefônica devidamente autorizada pela autoridade competente, não se deve exigir a demonstração da conexão entre o fato investigado e aquele descoberto,

a uma, porque a própria Lei nº 9.296/96 não a exige, a duas, pois o Estado não pode se quedar inerte diante da ciência de que um crime vai ser praticado e, a três, tendo em vista que se por um lado o Estado, por seus órgãos investigatórios, violou a intimidade de alguém, o fez com respaldo constitucional e legal, motivo pelo qual a prova se consolidou lícita. II - A

discussão a respeito da conexão entre o fato investigado e o fato encontrado fortuitamente só se coloca em se tratando de infração penal pretérita, porquanto no que concerne as infrações futuras o cerne da

partir do qual se tomou conhecimento de tal conduta criminosa. Habeas corpus denegado.

O excerto da decisão colegiada refere-se, originariamente, à ação penal promovida perante o Juízo da Vara Criminal da Comarca de Apucarana/PR em face de três denunciados, pela prática, em tese, do crime de associação criminosa, que tinha como finalidade o cometimento de outros crimes. Com efeito, a notícia de que estava sendo planejado pelos denunciados um roubo em estabelecimento veio a conhecimento da polícia por meio de interceptação telefônica da linha utilizada por sujeitos diversos. Assim, a interceptação foi deferida em desproveito de terceiro estranho à ação penal, mas levou à descoberta e prisão dos denunciados, sem a determinação de outras diligências. A Quarta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Paraná acordou pela denegação do Habeas Corpus impetrado em benefício dos denunciados.

Observa-se que a decisão considerou válida a prova de fato encontrado fortuitamente ainda que sem conexão com o fato investigado, tendo em vista que aquele dizia respeito à notícia de prática criminosa futura. Segundo o relator, Ministro Felix Fischer, o Estado não pode se quedar inerte a partir do momento que tomou ciência de que será cometido um crime, seja este conexo ou não com o crime investigado, mesmo porque afirma que a conexão não é uma exigência da Lei n.º 9.296/96. E vai além, afirmando que a violação do direito à intimidade está respaldada na Constituição Federal e na legislação infraconstitucional.

No que tange à serendipidade de segundo grau, o STJ já decidiu no sentido de que a descoberta fortuita de novos ilícitos, sem conexão com os fatos originalmente investigados, pode dar ensejo à nova investigação pela autoridade policial, inclusive à nova interceptação telefônica. Nessa linha foi o julgamento do Habeas Corpus n.º 189.735/ES (BRASIL, 2013, grifo nosso):

[…] FORMAÇÃO DE QUADRILHA, FALSIDADE IDEOLÓGICA E LAVAGEM DE DINHEIRO (ARTIGOS 288 E 299, AMBOS DO CÓDIGO PENAL, E ARTIGO 1º, INCISO VII, DA LEI 9.613/1998).

INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS. DECISÕES JUDICIAIS

FUNDAMENTADAS.

1. O sigilo das comunicações telefônicas é garantido no inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal, e para que haja o seu afastamento exige-se ordem judicial que, também por determinação constitucional, precisa ser fundamentada (artigo 93, inciso IX, da Carta Magna).

2. O artigo 5º da Lei 9.296/1996, ao tratar da manifestação judicial sobre o pedido de interceptação telefônica, preceitua que "a decisão será fundamentada, sob pena de nulidade, indicando também a forma de execução da diligência, que não poderá exceder o prazo de quinze dias, renovável por igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova".

3. Do teor das decisões judiciais anexadas aos autos, percebe-se, com clareza, que a excepcionalidade do deferimento da interceptação telefônica foi justificada em razão da suspeita da prática reiterada de várias e graves infrações penais pelos investigados, alguns deles servidores públicos que manteriam relações promíscuas com a iniciativa privada, como o paciente, tendo sido prolongada no tempo em face do conteúdo das conversas monitoradas, que indicariam a existência de complexa quadrilha que estaria cometendo diversos ilícitos.

4. Em arremate, é imperioso frisar que a interceptação telefônica não constituiu a primeira medida de investigação para deflagrar a persecução criminal em exame pois o inquérito policial que resultou na instauração da ação penal em tela foi iniciado a partir do desmembramento de outro, oriundo da "Operação Turquia", no qual diversas medidas investigatórias, além do monitoramento de conversas telefônicas, teriam sido empreendidas. ALEGADA NULIDADE DAS INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS.

QUEBRA DO SIGILO TELEFÔNICO DECORRENTE DO

DESMEMBRAMENTO DE INQUÉRITO POLICIAL QUE

INVESTIGARIA FATOS DISTINTOS. POSSIBILIDADE.

DESCOBERTA FORTUITA DE NOVOS CRIMES. NECESSIDADE

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