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2 SERENDIPIDADE: A INCIDÊNCIA CONTUMAZ SOBRE A INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA

2.1 Princípio da Serendipidade: origem, conceito e natureza jurídica

Para uma melhor compreensão do princípio que nomina e orienta a Teoria da Serendipidade, é de bom alvitre conhecer, primeiramente, a origem e o significado atribuídos a esta palavra. Tal grafia em língua portuguesa constitui um neologismo advindo da palavra inglesa serendipity, que teria sido cunhada pelo escritor inglês Horace Walpole (1717-1797), no ano de 1754, com o fim de designar “descobertas afortunadas feitas, aparentemente, por acaso”, consoante refere Joseph Shafan (2010).

Etimologicamente, ainda se verifica que serendipity (serendipidade), segundo o Dicionário Houaiss (2001), provém do topônimo Serendip ou Serendib (do árabe Sarandib), antigo nome da Ilha do Ceilão e atual Sri Lanka. Não obstante, foi nas histórias narradas num conto persa, intitulado e traduzido para The Three Princes of Serendip (Os Três Príncipes de Serendip), que o escritor Horace Walpole teria buscado referência para imprimir significado e sentido ao novo vocábulo.

Referido conto, datado de tempos longínquos, retratava incríveis jornadas realizadas por três príncipes aventureiros da Ilha Serendip, filhos do rei Giaffer, os quais costumavam fazer inúmeras descobertas inesperadas e valiosas. Embora não coincidissem com o que de fato procuravam, os tesouros encontrados acidentalmente por eles revelavam a capacidade de observação e sagacidade de cada um.

A serendipidade, para além de abarcar um mero conceito, tornou-se objeto de estudo de distintos ramos da ciência, a exemplo da Ciência Jurídica. Assim, foi migrada para o Direito Processual Penal como um princípio basilar da Teoria da Serendipidade, sendo largamente aplicada em matéria probatória, notadamente naquelas situações em que a revelação de eventual conduta delituosa, a qual originalmente não era o alvo da investigação, vem à tona por acaso ao se tentar elucidar outra prática tipificada na lei penal. Por conta disso, a serendipidade também é denominada juridicamente de encontro fortuito ou casual de provas, descoberta de provas ao acaso, achado fortuito, conhecimento fortuito, entre outras expressões semelhantes empregadas pela doutrina e jurisprudência.

A existência do Príncípio da Serendipidade é assim referendada por Távora e Alencar (2017, p. 639):

No âmbito do direito processual penal, serendipidade significa, em poucas palavras, o encontro fortuito de provas relativas a fato delituoso diverso daquele que é o objeto das investigações. A aplicação da serendipidade para entender válida a prova encontrada casualmente é que nos dá a ideia da existência de um princípio. Tal princípio, que exigirá a presença de certos requisitos, possibilita reconhecer como lícita a prova ou a fonte de prova1 de outra infração penal, obtida no bojo de investigação cujo objeto não abrangia o que foi, inesperadamente, revelado.

Nesse contexto jurídico, a Teoria da Serendipidade ocupa-se de analisar a validade da prova fortuitamente descoberta, seja de fato novo penalmente relevante, recaindo ou não sobre sujeito já investigado, seja do envolvimento de outra pessoa em prática delitiva, coincidindo ou não com o mesmo fato investigado. Assim, são oportunas as palavras de Tiago Kalkmann (2018, p. 48) ao exemplificar de forma sintetizada:

É possível falar, portanto, de serendipidade objetiva, considerada mais comum, que ocorre na hipótese em que uma investigação de tráfico de drogas descubra a prática de crime de homicídio (STF: HC 129678/SP). Todavia, é possível que a serendipidade seja subjetiva, ao se descobrir, acidentalmente, que o autor do fato investigado não coincide com o suspeito inicial. Por fim, ela pode ser mista, quando, no curso da investigação, a autoridade descobre a prática de fato diverso por pessoa sem relação com a investigação corrente.

1 Os autores referem-se à “fonte de prova” no sentido de notícia-crime, que serve de base para instauração de

A propósito, foi uma decisão da Suprema Corte Alemã que, segundo Nicolas Dourado Galves Alves e Laís Batista Toledo Duran (2015, n.p), trouxe a primeira qualificação jurídica para a serendipidade, a evidenciar o surgimento de uma teoria que leva o seu nome:

Saindo do campo etimológico, a primeira qualificação jurídica do termo deu- se em 1976, quando a Suprema Corte alemã, após anos de discussão doutrinária, julgou a admissibilidade desse instituto frente à lei de escutas telefônicas, de 1968. O leading case fez originar na cultura jurídica alemã a expressão Zufallsfunden (aglutinação de palavras, as quais significam “achados aleatórios”). Desde sua alcunha jurídica passou pelo direito espanhol, sob a nomenclatura quer de hallazgos fortuitos quer de

descubrimientos casuales, chegou, por fim, a terrae brasilis, graças a nossa

forte influência dos direitos português e alemão (embora com os anos de diferença que o oceano, mesmo na contemporaneidade, nos proporciona), apelidado de “encontro fortuito”.

Embora a legislação brasileira permaneça omissa em relação à regulamentação desse assunto, observa-se que a Teoria da Serendipidade, importada do Direito estrangeiro, está implícita no ordenamento pátrio, acolhida segundo a concepção pós-positivista. Aliás, cada vez mais ela vem ocupando lugar no âmbito do processo penal brasileiro, admitida pela doutrina e pela jurisprudência. Entretanto, muitas divergências giram em torno do conteúdo do Princípio da Serendipidade e da aplicação da respectiva teoria, já que esta não está positivada e nem mesmo há consenso acerca dos critérios mais adequados para validação e valoração das provas fortuitas.

Ao tratar da serendipidade, Lima (2016, n.p) destaca a importância da autorização judicial e da forma como é realizada a diligência para determinar a validade ou não da prova fortuita:

Fala-se em encontro fortuito de provas ou serendipidade quando a prova de determinada infração penal é obtida a partir de diligência regularmente autorizada para a investigação de outro crime. Nesses casos, a validade da prova inesperadamente obtida está condicionada à forma como foi realizada a diligência: se houve desvio de finalidade, abuso de autoridade, a prova não deve ser considerada válida; se o encontro da prova foi casual, fortuito, a prova é válida.

Calha ressaltar novamente que o encontro fortuito ou casual de provas ocorre com bastante frequência no curso da interceptação da comunicação telefônica ou telemática e da busca e apreensão. Convém reafirmar, todavia, que tais mecanismos de obtenção de provas não se prestam, legitimamente, a instrumentalizar busca aleatória e desmedida por delitos de

que previamente não se tinha o mínimo conhecimento da sua prática, como se fosse possível empreender uma caça ao tesouro sem limites, em alusão ao conto “Os Três Príncipes de Serendip”.

Ao contrário, referidos instrumentos têm por finalidade e essência colher quaisquer elementos que evidenciem a prática de um delito específico já noticiado (materialidade) e confirmem a suspeita sobre o indivíduo que o praticou, devidamente qualificado (indício suficiente de autoria). Nesse contexto, pelo menos em tese, não estariam abrangidas as descobertas ocasionais, realizadas sem que houvesse notícia-crime anterior e indicação de suspeito.

Aquelas medidas em excesso acarretam desvio de finalidade e até mesmo abuso de autoridade. Nesse sentido, Polianne Herlize Moreira Ratz dos Reis (2017, p. 120) complementa:

Com efeito, a serendipidade deverá ser aplicada com cautela evitando-se o desvio de finalidade, uma vez que não será utilizada como instrumento para que a atuação da atividade policial seja sem limites, perpetrando manifesta ilegalidade diante dos direitos do investigado à intimidade, privacidade, entre outras garantias.

Nesse ponto, deve-se ter um cuidado ainda maior na aplicação da Teoria da Serendipidade aos encontros fortuitos de provas ocorridos no curso de interceptação telefônica, notadamente à luz dos princípios constitucionais aplicáveis às provas e das regras estampadas na Lei n.º 9.692/96. Isso por conta da natureza jurídica da medida, extremamente invasiva, cujas normas incidentes guardam restrições e peculiaridades que merecem então uma atenção especial por parte do presente estudo, como já frisado anteriormente.

Com efeito, convém destacar dois requisitos “sumamente relevantes”, nas palavras de Luiz Flávio Gomes (2009, n.p), insculpidos Lei das Interceptações Telefônicas, que precisam ser observados:

Da decisão judicial que determina a interceptação telefônica sobressaem, dentre outros, dois requisitos sumamente relevantes, sendo certo que ambos estão previstos no art. 2.º, parágrafo único, da Lei 9.296/96: a) descrição com clareza da situação objeto da investigação; b) indicação e qualificação dos investigados (dos sujeitos passivos). Fala-se em parte objetiva (fática) e subjetiva (pessoas) da medida cautelar. A lei, com inteira razão, preocupou-

se com a correta individualização do fato objeto da persecução, assim como com a pessoa que está sendo investigada.

Por conseguinte, o objeto da investigação deve ser claro e objetivo para a interceptação não invadir demasiadamente a intimidade dos sujeitos investigados e de outras pessoas que com eles se comunicam, sem que exista qualquer indício concreto. Nas palavras de Lênio Luiz Streck (2001, p. 123-124), a lei tem o intuito de evitar autorizações “no atacado”, que levem a descobertas de crimes e autores “no varejo”. Não obstante, esse autor defende uma interpretação menos rigorosa e mais criteriosa da lei, para que não se ignorem crimes graves, como homicídio, bem como se permita a utilização da prova não englobada no contexto da autorização judicial, mas que dela se originou, desde que o crime descoberto por acaso esteja dentro de uma cadeia de fatos atribuídos a sujeitos que tiveram suas conversas monitoradas. Pondera, ainda, a título de exemplo, que na investigação de grandes quadrilhas é impossível especificar todas as situações concretas no pedido de interceptação.

Não se olvida, ainda, que o uso da interceptação telefônica numa investigação possui caráter excepcional, preferindo-se quaisquer outras diligências menos invasivas àquela, que igualmente possibilitem alcançar o mesmo resultado. Aliás, ainda que esgotadas essas diligências, não restando outra alternativa senão a interceptação, exige-se a observância de determinadas condições legais para sua utilização, não podendo, ainda, extrapolar os limites traçados na decisão judicial autorizadora da medida. Assim, essa determinação judicial não pode ser genérica, pois deve ser fundamentada e estar alinhada ao objeto da investigação.

Ademais, não cabe de início o deferimento da interceptação telefônica para investigar crimes apenados com detenção, mas apenas sujeitos à reclusão. Mesmo assim, não há como evitar que, no curso do procedimento devidamente autorizado para apurar crime mais graves, casualmente venham também a ser descobertos crimes de menor gravidade. Para essa situação, doutrina e jurisprudência buscam uma flexibilização daquela regra, notadamente pela utilização do critério da conexão, melhor detalhado na sequência.

Percebe-se, portanto, várias restrições para que sejam aceitas propriamente como provas as conversas telefônicas fortuitamente interceptadas que trazem à tona fato delitivo diverso daquele que constitui objeto da investigação originária. Por conseguinte, para que sirvam como provas, tais elementos precisam enquadrar-se aos princípios constitucionais aplicáveis

às provas e a outros requisitos estabelecidos pelo ordenamento jurídico, notadamente pela Lei das Interceptações Telefônicas, bem como se adequar aos critérios que embasam o Princípio da Serendipidade, interpretados segundo o entendimento doutrinário e jurisprudencial. Caso contrário, servirão, no máximo, como notitia criminis a desencadear outra investigação com novo objeto.

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