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A simbologia das casas em Os Maias e Dom Casmurro

Para a narrativa de ambos os autores, a figura da casa é de suma importância. Num e noutro, as casas ultrapassam os limites de espaço e tornam-se personagens atuantes na narrativa, personificadas com intensidades diferentes, mas com uma trajetória de atuação e recepção dos fatos muito semelhante e de fim comum: desolação, destruição e morte desses espaços personificados – o Ramalhete e a Toca para Eça e Matacavalos para Machado.

Ambos os espaços estão repletos de simbologia, denunciando as intenções dos fatos ou as conseqüências. Todavia, Eça e Machado são sui generis na criação, cultivando este um Realismo muito particular, esquivo das convenções literárias estabelecidas pelo movimento, o que se constata em sua personificação de Matacavalos, muito diferente da de Eça, com opções simbólicas mais sutis que as do escritor português.

Eça, em primeiro lugar, cognomina as casas. Em Os Maias têm nome e endereço: Santa Olávia, o Ramalhete, a Toca, e outras de várias personagens.

Machado não dá nome às casas: o lugar, o espaço é a denominação utilizada. É a casa da Rua de Matacavalos, na Glória, a casa do Engenho Novo, e outras de várias personagens.

Este capítulo mostrará a relação das três casas mais importantes das duas obras, seus aspectos simbólicos, antitéticos e análogos.

2.1. O Ramalhete

O nome da principal casa de Os Maias é Ramalhete, feito de girassóis atados por uma fita.

A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no outono de 1875, era conhecida na vizinhança da rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janelas Verdes, pela casa do Ramalhete ou simplesmente o

Ramalhete [...]

[...] O nome de Ramalhete provinha decerto dum revestimento quadrado de azulejos fazendo painel no lugar heráldico do escudo de armas, que nunca chegara a ser colocado, e representando um grande ramo de girassóis

atado por uma fita onde se distinguiam letras e números duma data10.

(Os Maias. p. 11. v. 1).

O girassol, simbolicamente,

Devido à forma radiada das pétalas de suas flores, à sua cor amarelo-ouro e à sua particularidade de virar-se sempre para o sol, é em diferentes culturas um símbolo solar de grandeza. No cristianismo é símbolo do

amor divino, da alma e dos pensamentos e sentimentos dirigidos

incessantemente a Deus; nesse caso, simboliza também a prece11.

O símbolo “solar de grandeza” é o que representa o Ramalhete, a antiga habitação da família Maia. Inabitado durante muitos anos, porque a família Maia estava morando em Santa Olávia, despertou em Carlos, ao concluir o curso de medicina, o desejo de reocupá-lo, para o que seriam necessárias obras de restauração. Depois delas, que pouparam apenas a fachada do edifício – por insistência absoluta do avô de Carlos, D. Afonso –, todo o interior foi alterado segundo o projeto de um arquiteto inglês e o Ramalhete atulhou-se de peças

10 Eça de QUEIRÓS, Os Maias, p. 11, v. 1.

ornamentais japonesas, espanholas, mouriscas, persas, holandesas, indianas, etc. O excesso de luxo e as reformas comandadas por Carlos no Ramalhete vieram a acabar com a alma do velho lar.

Na Lisboa corrompida, o Ramalhete transforma-se num microespaço em que as personagens ligadas à intriga e à comédia de costumes vão viver ou freqüentar, como palco para a vida de lazer, de jogo e soirées.

Carlos apareceu em Lisboa com um arquiteto-decorador de Londres, e, depois de estudar com ele à pressa algumas ornamentações e alguns tons de estofos, entregou-lhe as quatro paredes do Ramalhete, para ele ali criar, exercendo o seu gosto, um interior confortável, de luxo inteligente

e sóbrio.

(Os Maias. p. 13. v. 1).

As obras de restauro feitas no Ramalhete e os luxos e decorações exigidos por Carlos, até o requinte de um arquiteto inglês, simbolizam uma nova oportunidade – a última – de reformar e modernizar a casa, isto é, de introduzir uma nova etapa no país. De algum modo, é a reflexão do ideal reformista da geração de Carlos, que, junto com o seu melhor amigo, João da Ega, encarnará a renovação da geração de 70, sem, tal como ela, conseguir concretizar os seus projetos e as belas idéias de reformas e melhoramento do país.

Vilaça ressentiu amargamente esta desconsideração pelo artista

nacional; Esteves foi berrar ao seu centro político que isto era um país perdido. E Afonso lamentou também que se tivesse despedido o Esteves,

exigiu mesmo que o encarregassem da construção das cocheiras. O artista ia aceitar – quando foi nomeado governador civil.

(Os Maias. p. 13. v. 1).

Confira-se a crítica irônica de Eça, que relega ao artista nacional a execução das cocheiras, ou seja, o descrédito pelo nacional e a valorização da cultura e gosto estrangeiros como símbolos de grandeza.

O símbolo solar está na própria flor que se vira constantemente em busca do sol. E no cristianismo é símbolo do amor divino, da alma, e dos pensamentos e sentimentos dirigidos incessantemente a Deus; nesse caso, pelas críticas severas que se lêem à Igreja Católica no decorrer de toda a narrativa, a opção propende por negar a Deus. Avulta entre as figuras com tal comportamento o patriarca Afonso da Maia, espírito revolucionário e científico, baseado em Rousseau, Volney, Helvetius e a Enciclopédia, crítico da Constituição portuguesa, que recitava pelas lojas maçônicas odes abomináveis ao Supremo Arquiteto do Universo. Isso tudo ia de encontro à cultura e aos pensamentos do pai, Caetano da Maia, português antigo, fidalgo, doente, beato e fiel, que se benzia ao nome de Robespierre.

Afonso da Maia foi expulso de casa, sem mesada e sem bênção, renegado como bastardo. Dissera-lhe o pai que “aquele pedreiro-livre não poderia ser do seu sangue!”.

Nesse trecho, há uma simbologia da maçonaria, que é dividida em

graus12: servente (aprendiz), pedreiros e carpinteiros (companheiros) e um mestre-de-obra (mestres). Afonso da Maia, que pertencia à maçonaria, ao casar-se com D. Maria Eduarda Runa, católica fervorosa, discorda abertamente da educação

12 Graus – a Maçonaria, de um modo geral, buscou na organização do Templo de Salomão a base

para sua própria Instituição. Os primeiros maçons foram, assim, os operários que o construíram, dos quais, segundo a Bíblia, nenhum era judeu. Hoje, numa construção de alvenaria, há três graus: servente (aprendiz), pedreiros e carpinteiros (companheiros) e um mestre-de-obras (mestres). Inicialmente, a Maçonaria era Operativa, ou seja, dedicada ao trabalho manual; depois é que se dedicou a apurar os conhecimentos de forma intelectual, passando a ser chamada de Simbólica ou Especulativa. Por fim, voltou-se exclusivamente ao intelecto, denominando-se Filosófica. Assim, de acordo com a capacidade de cada operário, possuía suas gradações ou graus. Hoje, além dos três primeiros, comuns a todos os Ritos, há outros cuja configuração varia de acordo com o Rito adotado. Seu número varia de sete a 99. Como numa universidade (produto das primeiras Corporações), em que, para chegar ao topo da instrução, o estudante deve passar por vários estágios progressivos, o que constitui o grau, decidiu-se adotar procedimento semelhante na Maçonaria (Sérgio Pereira

dada a seu filho Pedro da Maia, sob orientação do Pe. Vasques, e a critica severamente. Essa carolice que o cercava ia lançando Afonso da Maia num ateísmo rancoroso, e ele queria as igrejas fechadas como os mosteiros, as imagens escavadas a machado, uma matança de reverendos.

Quando começavam as rezas em sua casa, ele fugia para o fundo da quinta, lia Voltaire ou partia em busca de seu velho amigo, o Cel. Sequeira, que vivia numa quinta em Queluz (cf. p. 17-23, v. 1).

Ao longo da narrativa, virão outras personagens que se perfilarão contra a carolice da Igreja, como Carlos da Maia, Ega e tantas outras admitidas no Ramalhete.

O girassol, como símbolo da alma, dá vida ao Ramalhete,

personificando a casa. Carlos da Maia chega modificando esse animus, altera todo o casarão; apenas a aparência externa, a casca, sofrerá pouca modificação, porque internamente tudo seria novo e melhor, com mais vida, com os entusiasmos da juventude.

Ao fim dum ano, durante o qual Carlos viera freqüentemente a Lisboa colaborar nos trabalhos, “dar os seus retoques estéticos” – do antigo

Ramalhete só restava a fachada tristonha, que Afonso não quisera alterar

por constituir a fisionomia da casa.

(Os Maias. p. 13. v. 1).