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Mefistófeles em Machado de Assis

D. Afonso, a grande coluna do Ramalhete, morre, cobrindo de luto o

4. Elementos de comparação entre os dois romances

4.1. Mefistófeles

4.1.1. Mefistófeles em Machado de Assis

Convém começar pela interpretação que de Mefistófeles dão dois grandes estudiosos de símbolos:

Aquele que odeia a luz. Demônio da literatura medieval, que assiste o doutor Fausto, a partir do momento em que este entrega a sua alma ao Príncipe do Inferno. Amargo e sarcástico, a sua ironia esconde a dor desesperada da criatura de essência superior que, privada do Deus para o

36 Giorgio CUSATELLI et al. Enciclopedia Garzanti della Letteratura. 2. ed. Milano: Aldo Garzanti,

qual foi feita, se encontra, a partir daí, em toda a parte prisioneira do inferno (DICP, 418).

Este demônio faz-se reconhecer – alguns acreditaram erradamente encontrar nos seus traços o ricto de um Voltaire envelhecido – pela sua maldade fria, pelo seu riso amargo que insulta até às lágrimas, pela alegria feroz que lhe causa o aspecto das dores. É ele que, pela zombaria, ataca as virtudes, enche de desprezo os talentos, corrói com a ferrugem da calúnia o brilho da glória... é, depois de Satã, o mais terrível administrador do inferno (COLD, 454).

Goethe transformou a personagem medieval de Mefistófeles num símbolo metafísico. Para que a humanidade não adormeça numa paz enganadora e enfadonha, Mefistófeles recebe de Deus liberdade de desempenhar no mundo o papel da inquietação fecunda e criadora. Tem, portanto, o seu lugar na evolução progressiva, como um dos fatores essenciais, mesmo que negativo, do devir universal.

Eu sou uma parte das forças que querem sempre o mal, diz ele a Fausto, e sem cessar criam o bem.

Mas a visão harmoniosa deste progresso escapa à sua inteligência limitada: ele julga conduzir os homens à condenação, enquanto o final das aventuras a que ele os conduziu é a salvação que eles descobrem. O mistificador é mistificado.

A psicanálise poderá ver em Mefistófeles a tendência perversa do espírito, que só desperta as forças do inconsciente para daí tirar poderes e satisfações, em vez de as integrar num conjunto harmonioso dos atos humanos. É o aprendiz de feiticeiro que brinca com o inconsciente e que não o eleva à luz da consciência, a não ser para melhor ridicularizar a consciência. Esta, despertada por ele, deverá sacudir o jugo do falso senhor e constituir-se a si mesma segundo o seu próprio caminho: o despertador passa a ser o grande ludibriado.

Mefistófeles simboliza ainda o desafio da vida, com todos os equívocos que comporta. Fausto não tinha conseguido viver plenamente uma parte importante da sua juventude. Conseqüentemente, ficou um ser incompleto, semi-real, que se perdia numa vã procura metafísica, cujos objetos nunca se realizavam. Recusava-se ainda a fazer face ao desafio da vida, a experimentar tanto o mal como o bem. É este aspecto do seu inconsciente que vem excitar e iluminar Mefistófeles. Esse apelo do lado obscuro da personalidade, da energia que ele representa e do seu papel na preparação do herói para as lutas da vida é uma transição essencial... (JUNH,121)37.

Em Dom Casmurro, a referência a Fausto é feita no início da narrativa, quando Bentinho, procurando inspiração para escrever um livro que o tire da monotonia, pensa num tema. Várias propostas vêm-lhe à cabeça, mas a maioria demandava documentos e datas para começar; seria árido e longo. Entra então a “personificação da casa” em sua primeira grande cena: através dos bustos pintados nas paredes, ela sugere a Bentinho o tema a escrever; que pegasse da pena e dissesse dos tempos idos, que as sombras do passado escoassem o tempo, trazendo à tona as reminiscências e pondo fim à vida monótona, para viverem apenas os fatos de relevo. As “sombras” de sua vida, iguais às de Fausto, perpassariam novamente.

Dessa forma entra Fausto na narrativa, simbolicamente aguçado por Mefistófeles, o demônio que desafia a vida, cuja função é inquietar o ser humano, fecundar e criar uma evolução progressiva do mal na mente de todos os “Faustos”. Ao mesmo tempo, contudo, esse progresso escapa à sua inteligência demoníaca limitada e, em lugar de levar os homens à condenação, faculta-lhes de certo modo o caminho da salvação, ou – pelo menos – aponta-lhes como redimir-se dos pecados.

Bentinho confiará ao papel tudo o que viveu, sofrerá novamente com os fatos marcantes, tentará com isso expiar seus pecados, todo o mal que porventura fizera. Procurando reviver uma juventude perdida, uma infância irrecuperável, tentou evocá-las nas casas em que viveu. Mas a de Engenho Novo, que o acompanhava, por mais que se assemelhasse à de Matacavalos, não ressuscitava aquela, assim como tampouco podia ressuscitar-lhe a vida de antes: a magia de “ligar as duas pontas da vida” estava além de construir e mobiliar uma casa. Bentinho acaba concluindo com suas “sombras faustianas” que um dos “ofícios do homem é fechar e

apertar muito os olhos, e ver se continua pela noite velha o sonho truncado da noite moça”. Condenação fatal: ainda que fac-símile do passado, a casa não lho trazia de volta porque quem faltava ali era ele mesmo, Bentinho, e essa lacuna é tudo, “semelhante à pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito externo, [...] o interno não agüenta tinta”. Eis o mistificador mistificado.

Foi então que os bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer- -me que, uma vez que eles não alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse a pena e contasse alguns. Talvez a narração me desse a ilusão, e as sombras viessem perpassar ligeiras, como ao poeta, não o do trem, mas o do Fausto: Aí vindes outra vez, inquietas sombras...?

(Dom Casmurro. p.13).

Sucinta e profunda, bem ao estilo de Machado, essa reflexão sobre Fausto é a única de todo o romance, mas, como diz o narrador no capítulo “A Saída”, “Já esta página vale por meses, outras valerão por anos, e assim chegaremos ao fim”.