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A sistematização e a consolidação do monismo jurídico: a Revolução Francesa e as Codificações

O PARADIGMA PÓS-MODERNO PARTICIPATIVO

2.2.2 A sistematização e a consolidação do monismo jurídico: a Revolução Francesa e as Codificações

O segundo ciclo se inicia com a alteração estrutural do Estado Moderno, que após as Revoluções Liberais, organizadas e executadas

sob a liderança da burguesia, abandona a sua matriz política e jurídica absolutista e se organiza dentro das bases do liberalismo político e eco- nômico. A lei se torna um ato de vontade dos homens, elaborada através do Poder Legislativo, tendo como limite os direitos naturais.

Este período tem na Revolução Francesa o marco de sua constru- ção jurídica e política, ao concretizar a ideia do Estado-Nação, e se es- tende até a implantação das grandes Codificações do século XIX, que positivam o projeto burguês-capitalista. Tem este período a influência do pensamento de Grócio, Puffendorf, Volteire, Diderot, Locke, Rous- seau, Montesquieu, Kant e Hegel. O direito advindo do Estado não se expressa mais na vontade do príncipe soberano, mas na do Estado, que representa a vontade soberana da nação. É a matriz liberal-contra- tualista, de cunho jusnaturalista dos séculos XVII e XVIII, que arquiteta as bases desse novo Estado, com poderes mínimos, baseado no princípio da separação dos poderes, em um capitalismo industrial e concorrencial e no afastamento do exercício direto da cidadania pelo cidadão (WOLKMER, 1997, p. 45-46; GILISSEN, 1995).

Este afastamento, como já analisado no capítulo anterior, é cons- truído a partir das formulações teóricas de Locke, Montesquieu e Sieyès. Portanto, cabe à nação, como elemento caracterizador do poder sobera- no, a escolha dos representantes que irão governar e fazer as leis que re- gularão as relações sociais. Teoricamente esse processo é desenvolvido com a participação do povo, ou, pelo menos, de parte dele. A escolha cabe aos cidadãos proprietários, detentores dos direitos de cidadania. Entretanto, os representantes escolhidos não seriam possuidores de um mandato imperativo, conforme propôs Rousseau, mas de um mandato representativo, sendo o representante o verdadeiro proprietário do man- dato. E ele, representante, fará parte daqueles que no Legislativo compo- rão a vontade da nação e farão as leis que serão as únicas válidas no ter- ritório do Estado, porque emanadas dele. Assim, “não pode, [...] haver outras regras jurídicas que não sejam as que os representantes votaram livremente por maioria. [...] não existe nenhuma outra forma de direito senão a lei” (GILISSEN, 1995, p. 415).

Para Grossi (2007b, p. 129), neste cenário,

[...] o direito se resume à lei, as únicas fontes que, na pretensão jacobina, expressariam a vontade ge- ral: graças à sua generalidade e abstração, as leis poderiam obter o resultado de uma projeção jurí- dica compactamente uniforme; os cidadãos, por

seu turno, seriam – no plano jurídico – considera- dos todos abstratamente iguais, concebidos como indivíduos abstratos, malgrado as misérias e os grilhões das situações concretas em que vivem.

Estas bases são construídas na lógica de uma igualdade jurídica (perante a lei estatal), que liberta os indivíduos dos antigos laços esta- mentais e os insere no mercado capitalista, que requeria “sujeitos de di- reitos autônomos, formalmente livres e iguais, mas vistos como indiví- duos fragmentados e atomizados no mundo das mercadorias” (CORRÊA, 2002, p. 65).

Destaca Capella (2002, p. 132-133) que,

[...] vistas pelo direito burguês moderno, as pessoas são primariamente vozes de mercadorias, titulares de um patrimônio. Só secundariamente têm outras funções; o direito se desinteressa de seus atos na esfera privada quando não tem um conteúdo ou conseqüências no âmbito patrimonial.

Neste paradigma moderno liberal, a legitimidade da ordem jurídica se dá sob o prisma das abstrações do mito moderno, realizada através de um processo de despersonalização do poder e na formação de um sistema normativo construído sob os padrões jurídico-racionais que incidira so- bre os indivíduos e também sobre o Estado (POGGI, 1981). Essa cons- trução teórica que se insere na normatização tem sua constituição na ideologia do jusnaturalismo liberal-contratualista (WOLKMER, 1997).

É como expressão deste paradigma normativo que se realizada as grandes codificações com e a partir de Napoleão e que tem a sua mani- festação teórica na Escola da Exegese70 francesa, a qual reduz toda a ci-

ência a uma manifestação de exegese. Temos então a teoria do direito natural manifestada e concretizada no positivismo jurídico e nas con- cepções da dogmática jurídica (WOLKMER, 1997; VASCONCELOS, 2006, GROSSI, 2007b; BILLIER; MARYOLI, 2005). Assim, “o valor atribuído outrora ao direito natural, nas doutrinas jusnaturalistas, encon- trou-se transferido para o direito positivo editado pela vontade soberana do Estado” (BILLIER; MARYOLI, 2005, p. 187).

70 O auge da escola se dá entre 1830-1880, na França. “A escola da exegese pretende excluir

do direito qualquer filosofia: ela quer para si a garantia de um estudo da ordem jurídica e codifica” (BILLIER; MARYOLI, 2005, p. 187).

Esse processo de codificação71 aspira reduzir “toda a experiência

em um sistema articuladíssimo e minuciosíssimo de regras escritas, con- templando todos os institutos possíveis”, direcionadas para os seus pro- tagonistas: “sujeitos abstratos aos quais se refere uma faixa de relações igualmente abstratas”, pois dentro deste projeto em que se a mitologia moderna tanto a abstração quanto a igualdade jurídica se constituem em postulados constitucionais que o fundamentam (GROSSI, 2007b, p. 99 e 104-105). A elaboração do Código Civil francês, dirigido por Jean- Etienne-Marie Portalis tornou concreto a necessidade de realizar uma ordenação sistemática do direito e unitária do direito, compactada e “simples na sua estruturação rigidamente centralizada” (GOYARD- FABRE, 2007, p. 112-113; GROSSI, 2007a). Tal empreitada “teria sido, ao contrário, impensável no Antigo Regime, quando a monarquia estava acima de uma realidade social e juridicamente complexa, se apresentando como uma autêntica ‘société de sociétés72’” (GROSSI, 2007a p. 10 – gri-

fo no original), o que tornava a consumação do poder político moderno. O Código Civil francês de 1804 realiza a aspiração burguesa de uma propriedade privada livre, desembaraçada de todas as instituições feudais e livre para o capitalismo, constituído dentro de uma concepção monoclassista. Ele representada o mundo do “ter”, tanto que possuía em torno de 800 artigos dispondo sobre a propriedade privada. Conferiu ainda as garantias processuais para está propriedade pudesse ser usufru- ída (GROSSI, 2007b; HUBERMAN, 1986; LASKI, 1973). Ele repre- senta “a tradução em nível normativo de um rigoroso absolutismo jurí- dico” (GROSSI, 2007b, p. 100). Tudo isso se desenvolve sobre um estri- to monismo jurídico, exceto no que diz respeito à possibilidade a auto- nomia contratual dos indivíduos. Esta possibilidade da autonomia de vontade dos contratantes que é marca do Estado Liberal confere ao con- trato a autoridade de lei e significou a recusa da instituição de qualquer iniciativa de controle ao regime capitalista (GROSSI, 2007b; BURDEAU, 1979, LASKI, 1973). Esta liberdade contratual propugna e realizada pela burguesia “emancipou os detentores de bens e propriedades de seus grilhões; mas, na realização dessa liberdade, estava envolvida a

71 A codificação terá, no final do século XIX, um Código que, de antemão, corresponde à

conclusão do positivismo legalista da Pandetística, o Código Imperial Germânico (BGB), que já preconiza um conjunto de cláusulas gerais que se constituem em “brechas abertas para o juiz através do mundo dos fatos”. O termo Pandetística diz respeito “à grande corrente científica que, tendo por base as Pandetas de Justiniano, edifica na Alemanha do século XIX um saber jurídico extremamente conceitualizado, fundamentado sobre modelos abstratos e purificado das escórias factuais de índole econômica e social” (GROSSI, 2007b, p. 103).

escravização dos que nada tinham para vender senão a força de traba- lho” (LASKI, 1973, p. 149).

Nesta perspectiva, reza Andrade (1993, p. 59) que

A cidadania é, [...] criação do Direito racional- formal, atendendo as exigências específicas do modo capitalista de produção. Com efeito, o pri- meiro movimento possibilitado pela cidadania, enquanto mediação, é o de converter indivíduos atomizados em sujeitos jurídicos, livres e iguais, capazes de contratar livremente. Seu pressuposto é a igualdade abstrata dos sujeitos prescindindo de qualquer ‘propriedade’, que não seja a sua força de trabalho.

O positivismo jurídico, a partir deste processo de codificação normativa impõe-se como a principal formulação teórica da doutrina ju- rídica contemporânea, em contraposição as teorias jusnaturalistas ampa- radas no direito natural e na razão humana. Assim, ao mesmo tempo em que reduz o direito estatal ao direito positivo, também o expressa como o único e verdadeiro direito. É nesta realidade que se apresentam as con- tribuições teóricas de John Austin e Rudof von Ihering. O primeiro en- cara o “Direito como um mandato positivo fixado pela autoridade do soberano”, propõe-se fazer a conciliação entres os postulados utilitaris- tas e a dogmática positivista, dentro de um “rigoroso formalismo lógico- -estatista”. Já Ihering construiu a teoria que mais correspondeu “aos ho- rizontes histórico-sociais de seu tempo”, por meio da identificação entre direito e coação social e pela atribuição deste monopólio de aplicação da coação social ao Estado (WOLKMER, 1997, p. 47-51; BILLIER; MARYOLI, 2005).

2.2.3 A legalidade dogmática com pretensões científicas: