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Da Alta à Baixa Idade Média: um cenário composto de pluralidade jurídica e política

O IDEÁRIO DA MODERNIDADE: O ESTADO E A CIDADANIA REPRESENTADA

1.3 OS PRIMEIROS PASSOS PARA CONSTRUÇÃO DO ESTADO: O TARDO MEDIEVAL

1.3.1 Da Alta à Baixa Idade Média: um cenário composto de pluralidade jurídica e política

Como visto, a ausência de um único poder totalizante como o se- rá o Estado Moderno, apesar da tentativa da Igreja em sê-lo, fez com que o Direito medieval não fosse um modelo unitário, havendo a convi- vência da multiplicidade de ordenamentos jurídicos, tanto de origem profana (laico) quanto espiritual (GROSSI, 2010).

Desse modo, o Direito medieval preceituava

[…] a globalidade, mas também a complexidade da sociedade, e a expressa – através dos usos – na imensidão dos seus particularismos, em um plura- lismo que tende a valorizar as microentidades, do momento em que as germinações consuetudiná- rias, impregnadas de factualidade, nascem no par- ticular, o afirmam e o garantem. (GROSSI, 2010, p. 29)

Assim, teremos na Alta Idade Média, o Direito Canônico convi- vendo com os ordenamentos orais (e alguns poucos escritos) organiza- dos com base nos resquícios do romanismo e da tradição da antiguidade tardia, acrescidos da “contribuição” dos povos germanos (WIEACKER, 2004, p. 15-22).

Com o advento da Baixa Idade Média, tem-se a coexistência den- tro desse modelo pluralista jurídico e político, de quatro matrizes jurídi- cas principais: a) uma formulação jurídica oriunda dos povos germanos; b) o Direito canônico; c) o Direito feudal; d) o processo de recuperação e renascimento do Direito romano (WIEACKER, 2004).

Destaca Wieacker (2004, p. 27-28) que os povos germânicos não tiveram repulsa às tradições romanas que haviam encontrado quando da ocupação do território Europeu do antigo Império Romano, mas assimi- laram a sua escrita e língua, bem como os princípios religiosos da Igreja Católica Romana. Suas leis não se caracterizavam como leis no sentido moderno do termo ou equivalente ao sentido dado pelos romanos. Na realidade, configuram-se como costumes e tradições “reduzidos a escrito com a ajuda dos ‘dizedores do direito’”, às vezes confirmados por aque- le que era o detentor da autoridade (GILISSEN, 1995, p. 172).

Entretanto, essa concepção de direito era muito rudimentar, o que possibilitou que nesse vácuo legislativo e, por consequência, político e jurídico, a Igreja Católica ocupasse esse espaço, na qualidade de “força espiritual de longe mais importante; era, ao mesmo tempo, a mais coe- rente e a mais extensa organização social da Idade Média”. Possuindo, mediante sua ordenação jurídica interna (Direito Canônico), o sistema jurídico mais importante do período (WIEACKER 2004, p. 67).

Apesar da reconstituição do “Império Romano com o nome Sacro Império Romano-Germânico” por Carlos Magno (título que foi atribuí- do pelo Papa Leão III), no século IX, e da tentativa posterior dos Impe- radores em terem o controle do poder temporal, a Igreja conseguiu man- ter até o final da Idade Média o controle do poder temporal e do ecle- siástico, sendo que a sua supremacia deixará de existir somente com o advento do Estado Moderno (TOUCHARD, 1970b, p. 33; DALLARI, 2009, p. 67).

Tal poder jurídico e político era reforçado com o poder que ela possuía de

[…] declarar hereges, excomungados (e, portanto condenados ao fogo do inferno e também à fo- gueira da ‘santa’ inquisição) todos aqueles que contrariassem os dogmas da Igreja, a hierarquia da Igreja Católica (Papa, Bispos, Padres, Monges, etc.) se atribuía o poder de dizer qual a vontade de Deus, qual era a justiça natural que deveria norte- ar a organização dos homens em sociedade. (CORRÊA, 2002, p. 43)

Entre as fases do Direito Canônico está aquela que representou o ápice do poder pontifical (poder dos papas) – ocorrida nos séculos XII e XIII, com a instauração da Reforma Gregoriana após os conflitos com o Sacro Império. Seu objetivo foi submeter este ao poder papal (que será aprofundado no próximo item) (GILISSEN, 1995, p. 137; SCHIAVINATO, 2010, p. 22; TOUCHARD, 1970b; SABINE, 1964, p. 231-233).

Segundo Gilissen (1995, p. 137),

De acordo com a concepção dos grandes papas da época (Gregório VII, Inocêncio III, Bonifácio VIII), os reis detêm o seu poder da Igreja que os sagra e os pode excomungar, no entanto, não se trata de uma teocracia, pois o Papa não pode exer- cer o poder temporal, salvo nos seus próprios Es- tados [deve ser entendido como territórios perten- centes à Igreja e não Estados no sentido moderno do termo].

Inserido nessa realidade e oriundo da pulverização política, irá surgir o Direito feudal, que conviverá com os outros sistemas jurídicos existentes no período. O Direito feudal advém do surgimento do feuda- lismo como modelo político, econômico, social e jurídico, não sendo composto por um ordenamento escrito e unitário, principalmente nos territórios partilhados do Império Carolíngio (também denominado Sa- cro Império Romano-Germânico ou Império Franco). Sua base é o uso prático do costume como única fonte de um direito não religioso, que regulava as relações sociais de cada domínio territorial ou aldeia. Assim, cada feudo era regido por sua tradição jurídica própria (GILISSEN, 1995, p. 188-191), expressada na vontade do senhor feudal. Para Gilis- sem (1995, p. 191), “a maior parte das relações entre os homens, que

nascem das convenções próprias das instituições feudo-vassálicas, são regidas pelo costume que fixa as obrigações duns e doutros”.

O sistema feudal teve a sua consolidação nos séculos XI e XII, marcado por relações sociais “rigidamente hierarquizadas” fundadas nos costumes e na ausência, na maioria dos casos, de ordenações escritas (TOUCHARD, 1970b; SABINE, 1964, p. 217-221).

Gilissen (1985, p. 189) afirma que

O feudalismo é caracterizado por um conjunto de instituições das quais as principais são a vassala- gem e o feudo. Nas relações feudo-vassálicas, a vassalagem é o elemento pessoal: o vassalo é um homem livre comprometido para com o seu se- nhor por um contrato solene pelo qual se submete ao seu poder e se obriga a ser-lhe fiel e a dar-lhe ajuda e conselho […], enquanto o senhor lhe deve protecção e manutenção. A ajuda é geralmente militar, isto é, o serviço a cavalo, porque a princi- pal razão de ser do contrato vassálico para o se- nhor é poder duma força armada composta por cavaleiros.

Desse modo, “o senhor feudal detinha, em uma só e indiferencia- da peça, o poder econômico, o político, o militar, o jurídico e o ideoló- gico sobre seus servos e vassalos” (CAPELLA, 2002, p. 84). Nesse sen- tido, no mundo medieval não havia espaço para “indivíduos, isolados e socialmente incaracterísticos” (HESPANHA, 2005, p. 103).

A terra se consubstancia no regime feudal, no elemento mais im- portante, permitindo ao seu proprietário, denominado senhor feudal, po- deres quase ilimitados, inclusive da vida dos ligados pelo vínculo da servidão a sua propriedade (HUBERMAN, 1986, p. 5-7; LOPES, 2002, p. 76; DALLARI, 2009, p. 69; SABINE, 1964). Para Huberman (1986, p. 13,) a Igreja estava integrada na estrutura feudal, tendo sido a maior proprietária de terras no período, algo em torno de “um terço à metade de todas as terras da Europa Ocidental”.

Esse modelo nucleado nos feudos e na mão de obra servil era um impedimento à circulação de pessoas e mercadorias, pois a vida se ori- ginava, se desenvolvia e se encerrava no feudo. Assim, a organização

das Cruzadas44 para a libertação da “Terra Santa” pelos papas acabou

sendo um fator decisivo para romper esse isolamento (HUBERMAN, 1986, p. 18-20), pois, “de uma maneira geral, contribuíram muito para fazer brotar, em todos que delas participaram, um sentimento de inte- gração [identidade] nacional […]” (TOUCHARD, 1970b, p. 129).

Aduz Huberman (1986, p. 21) que,

Do ponto de vista religioso, pouco duraram os re- sultados das Cruzadas, já que os muçulmanos, oportunamente, retomaram o reino de Jerusalém. Do ponto de vista do comércio, entretanto, os re- sultados foram tremendamente importantes. Elas ajudaram a despertar a Europa do seu sono feudal, espalhando sacerdotes guerreiros e trabalhadores e uma crescente classe de comerciantes por todo o continente [Europeu]; intensificaram a procura de mercadorias estrangeiras; arrebataram a rota do Mediterrâneo das mãos dos muçulmanos e a con- verteram, outra vez, na maior rota comercial entre o Oriente e o Ocidente, tal como antes.

O comércio será o elemento que romperá com as amarras do re- gime servil, pois o sistema jurídico, político e econômico feudal torna-se incompatível com o crescimento das relações de trocas surgidas. As re- lações de trocas oriundas do comércio aumentam a necessidade por mercadorias, o que favorece a produção manufatureira, atraindo servos “libertos” dos vínculos da servidão por seus senhores ou àqueles fugi- dos, que irão habitar um centro urbano distante do seu feudo de origem. O crescimento das relações comerciais leva à alteração da antiga eco- nomia natural (de simples trocas, sem a utilização do dinheiro e para a subsistência), ocorrendo a utilização do dinheiro, que refletirá na cons- trução, nos séculos seguintes, do modelo econômico capitalista (HUBERMAN, 1986, p. 27-42; SAES, 1987, p. 46-47; CAPELLA, 2002). Isso ocorrerá de forma acentuada quando do surgimento das ci- dades livres e comunas (SABINE, 1964).

Segundo Schiavone (2005, p. 248),

44 As Cruzadas ocorreram entre os séculos XI a XIV. Iniciadas pelo Papa Urbano II, tinham o

objetivo (pelo menos na justificativa religiosa) de libertar a Terra Santa (Jerusalém) dos infiéis (turcos) (TOUCHARD, 1970b).

A construção da modernidade econômica no Oci- dente teve como elementos determinantes a aqui- sição de características mentais e sociais totalmen- te estranhas ao mundo greco-romano: uma árdua e longa reapropriação civil do trabalho e a invenção de uma relação nunca antes experimentada entre trabalho dependente e liberdade pessoal, seja nas cidades que renasciam, seja nos campos depois do feudalismo.

Isso se dará no baixo medieval, ou tardo medieval, oriundo do comércio, que teve papel fundamental no surgimento dos burgos (que era no início apenas uma área fortificada para a proteção em caso de ataques). Tem-se a fundação das comunas e das cidades livres (fora do controle do senhor feudal), possuidoras de suas cartas ou Constituições próprias, as quais irão se organizar em tiranias e repúblicas ou consulados (com base no princípio democrático). O morador dos burgos era denomi- nado burguês ou comerciante (mercador). Entre essas cidades, destaca- ram-se Florença, Veneza, Luca e Bolonha (no território italiano); e já no século XIV, Bruges, Liége e Gand (no território belga) e Marselha, Arles e Nimes (no território francês) (SAES, 1987, p. 45-47; HUBERMAN, 1986).

Com o retorno do comércio, percebe-se que o Direito aplicado, não consegue dar respostas às necessidades das alterações produtivas, das novas relações sociais e dos novos núcleos de poder político. Os costumes aplicados nos feudos não davam conta da nova realidade sur- gida, necessário se fez construir outra matriz jurídica, política e econô- mica que pudesse responder às necessidades surgidas: a liberdade do uso da terra, de terem seus próprios tribunais, sua própria legislação e estabelecerem os seus impostos. Isso levaria à busca pela população das cidades de se livrarem das amarras das relações feudais (HUBERMAN, 1986, p. 27-30). Nesse sentido, as cidades buscariam um iurisdicto (“posição de poder de um sujeito ou de um ente”), que lhes permitisse “organizar-se juridicamente, dotar-se de um ius proprium” (COSTA, 2010, p. 129), estabelecendo a sua justiça e tendo o seu espaço de cida- dania, considerando as desigualdades estamentais do medievo.

Esse resgate da tradição jurídica romana ocorre a partir de 1100, com o surgimento das primeiras universidades, em especial, aquelas de origem laica, a exemplo de Bolonha, que desenvolveriam as escolas de formulações e interpretação jurídica do Direito medieval e que dariam

azo às bases jurídicas da Modernidade. Entre essas escolas45

se desta- cam: a) glosadores (séculos XII e XIII); b) escola de Orleães, de origem francesa e composta por professores que membros do clero (século XIII); c) pós-glosadores ou comentadores (séculos XIV e XV); d) hu- manistas (séculos XVI e XVII). Esse “renascimento” do Direito romano conviveu com uma doutrina do Direito canônico que era ministrada na maioria das universidades que surgiam (GILISSEN, 1995, p. 337 e 340). A Escola dos Glosadores surgiu em Bolonha, por volta dos sécu- los XII e XIII, do trabalho de juristas que buscavam a interpretação dos textos romanos, em especial do Corpus Iuris Civilis (WIEACKER, 2004, p. 47-53). Sua grande contribuição estava nos textos estudados, no caráter científico utilizado para esses estudos e no método que foi apli- cado. O método era a glosa, que se caracterizava pela explicação do tex- to analisado, por meio de sua exegese (GILISSEN, 1995, p. 342-344; HESPANHA, 2005, p. 197-208). Esses juristas “estudaram o direito ro- mano como um sistema jurídico coerente e completo, independentemen- te do direito do seu tempo” (GILISSEN, 1995, p. 341).

Wieacker (2004, p. 47-48) afirma que,

Quando os glosadores interpretam os seus textos e procuram ordená-los num edifício harmónico, par- tilham na verdade, com as modernas teologia e ju- risprudência, as intenções de uma dogmática, […], de um processo cognitivo, cujas condições e princípios fundamentais estão predeterminados através de uma autoridade […]. Do resto, eles queriam, em geral, pouco do que a ciência moder- na quer: nomeadamente, não queriam nem provar a ‘justeza’ da afirmação do texto perante o forum de razão não pré-condicionada, nem fundamentá- lo ou compreendê-lo do ponto de vista histórico, nem, tão pouco, ‘torná-lo útil para a vida prática’. […] queriam era antes comprovar com o instru- mento da razão – que, para eles, era constituído de lógica escolástica – a verdade irrefutável da auto- ridade (grifos no original).

Os Pós-glosadores, Consiliadores ou Comentadores são oriundos da Itália, tendo como principal representante Bartolo Sassoferrato [Sa-

45 Para fins deste estudo, será feita apenas uma breve análise das escolas dos Glosadores e

xoferrato] (1324-1357), considerado por Skinner (1996) “o mais original entre os juristas da Idade Média”. Para ele [Bartolo], havendo o confron- to entre a lei e os fatos, aquela deve se adequar a estes. Ademais, de sua construção do conceito de príncipe em si mesmo (sibi princeps), defen- deu a autonomia interna das cidades italianas em legislar e decidir os seus interesses políticos, sem a interferência, seja do Imperador, seja do Papa. Esse poder interno deve ser realizado por intermédio de seus cida- dãos, que têm a jurisdição da cidade em seu poder, podendo delegar aos governantes e magistrados para que o exerçam em seu nome (SKINNER, 1996, p. 30-33 e 82-83).

Realizaram uma evolução no método aplicado pelos glosadores, procurando interpretar os textos do Direito romano em seu conjunto, e por meio desse procedimento extrair princípios aplicáveis aos problemas e às necessidades concretas (WIEACKER, 2004, p. 79-80; GILISSEN, 1995, p. 346; HESPANHA, 2005, P. 209-220). Com esse método, “os comentadores caminharam cada vez mais para uma actividade de con- sulta, de cuja experiência resultou em geral uma impregnação e aperfei- çoamento científicos dos direitos estatutários”, tendo sido os arquitetos da modernidade europeia (WIEACKER, 2004, p. 80).

Desse modo, não existem dúvidas de que o Medievo não convi- veu com uma única concepção jurídica (monismo), como irá ocorrer com o surgimento do discurso moderno e do Estado Moderno. O Direito Medieval era pluralista, comportando os costumes e tradições de uso lo- cal, de cada feudo e reino, sem uma sistematização ou uma legislação ordenadora única (WOLKMER, 1997).

Na mesma linha, afirma Grossi (2007a, p. 26) que o Direito me- dieval, que era

[…] radicado no social e com escassas conexões com o político, refletia com fidelidade o terreno amplo e aberto das suas raízes. O pluralismo vigo- rava porque os produtores do direito eram uma pluralidade de ordenamentos jurídicos que fre- qüentemente que conviviam em um mesmo terri- tório de um modo harmonioso; as autonomias, na sua relatividade, se respeitavam mutuamente. Existiam direitos particulares – leis de princípios locais, estatutos das cidades e do campo, costumes feudais, costumes agrários, costumes e ainda esta- tutos mercantis -, com um particularismo jurídico minutíssimo, mas existia também sempre uma

tensão ao universal; sempre o fôlego do universal circula arejado pelas cidades e pelos campos me- dievais.

1.3.2 E o Estado moderno germina: o contributo jurídico e