• Nenhum resultado encontrado

1.4 Entre a razão e o amor, o Direito Natural no mundo lusitano

1.4.2 A sociabilidade natural ou a concretude do amor

O homem possui aptidão à philia superior a todos os outros animais. Tal aptidão resulta diretamente, segundo Gonzaga, da vontade de Deus, que criou o homem dotando-o do instinto de sociabilidade. Apesar das paixões que desviam os homens do caminho da retidão, o caráter sociável os faz capazes de amar os seus semelhantes. É o amor, portanto, e o amor a Deus e ao próximo, o liame moral da vida em sociedade. Nas palavras de Gonzaga, “se houvesse um homem só no mundo, ainda assim teríamos tanto nós como este a obrigação de o amarmos”.155

Há, em Gonzaga, obrigações morais que sujeitam o homem natural porque ele é, já, um “homem em companhia”. É o amor e a amizade ao próximo que aproximam um homem de outro homem, reunindo-os nessa comunidade natural – a que chama “sociedade”. Pois, ainda que o homem, por improvável desventura, vivesse despido de

153 1 Coríntios 13. 154 22 Mateus 37-40. 155

qualquer vínculo sociável, ou se existisse um único homem no mundo, ainda assim, sublinhemos, os homens teriam a obrigação de amá-lo.156

António Barreto e Aragão, menos detalhado do que Gonzaga, porém bastante contundente na exposição das suas ideias, indaga na História da Jurisprudência Natural: “se a natureza não confirmasse o Direito, não haveria virtude; e então que coisa era a liberalidade, o amor à pátria, a probidade, a beneficência, e a gratidão?” A sua resposta é reveladora: “estas virtudes nascem, porque nós somos inclinados a amar os nossos semelhantes, que é a base de todo o direito”.157

Em outras palavras, o amor ao próximo é o fundamento do direito; logo, o amor é o princípio das regras morais que devem guiar a conduta humana.

É exatamente esse amor que, segundo Gonzaga no Tratado de Direito Natural, rege a sociabilidade natural. Fruto do amor primeiro – o amor a Deus –, o instinto sociável estende-se – por força da lei divina – ao amor a si mesmo e à amizade a outrem. Aqui o jurista fia-se nas passagens bíblicas encontradas em Marcos e Mateus para dar força aos seus argumentos: “Toda a lei dependia de amarmos a Deus com todo o entendimento, com todo o coração e com toda a força, e ao próximo como a nós mesmos”.158

Recorre ainda ao evangelho paulino “que nos diz que toda [lei] se reduz ao preceito de amarmos ao nosso próximo, concluindo que o amor é complemento de toda a lei”.159

O elo societário, portanto, provém antes de mais nada da ordenação divina, a qual dita – por meio do amor – as regras infundidas por Deus no coração de cada um: o Direito Natural. Nesse sentido, o amor, enquanto complemento da lei, possui caráter normativo e produz obrigação.

Neste ponto, Gonzaga e Barreto e Aragão se afastam, como sublinhamos, da corrente jusnaturalista representada pelos grandes expoentes Hugo Grotius e Samuel Pufendorf, tão em voga no seu tempo. Para Hugo Grotius, relembremos, a sociabilidade constitui a fonte do Direito Natural. Mas, à diferença de Gonzaga, esse desejo de

156

“Que seria de um menino, de um enfermo, se a mão piedosa do seu semelhante não os socorrera?” E, continua Gonzaga, “cada dia seriam os homens pasto e alimento das feras, pois fora da sociedade nem poderiam fabricar armas necessárias para se defenderem do seu furor”. (Tomás António Gonzaga,

Tratado de Direito Natural, p. 128-129).

157

António Barnabé de Elescano Barreto e Aragão. História da Jurisprudência Natural..., 1771, pp. 47- 48.

158

Gonzaga cita Mateus, cap. 22, n. 40 e Marcos, cap. 10, n. 27.

159

sociedade, isto é, essa inclinação a viver em comum e em acordo com os seus semelhantes, não tem, para o jurista holandês, origem na imediata vontade divina, advindo antes dos princípios subjetivos da reta razão.160

É tal caráter sociável, verdadeira fonte de direito, que faz dos homens seres morais. O atributo permite que conheçam a distinção entre o que é o bem e o que é o mal para a vida em sociedade. E tal distinção, pensa Grotius, é produto da própria razão, “que nos leva a conhecer que uma ação, dependendo se é ou não conforme à natureza racional, é afetada por deformidade moral ou por necessidade moral”, tornando inteligível o que é uma ação moralmente honesta ou desonesta.161 Disso decorre a conclusão – e a inovação – grotiana – segundo Gonzaga, “impiíssima” –, de que existiria direito mesmo que admitíssemos que Deus não “existisse”.162

Tal afirmação de Grotius incomoda Gonzaga. Nas palavras do jurisconsulto luso- brasileiro:

Sendo pois o princípio do Direito Natural a vontade de Deus, não podemos subscrever a opinião de Grócio, enquanto afirma que, se não houvesse Deus, ou ele não cuidasse das coisas humanas, sempre haveria Direito Natural. Essa doutrina repugna à piedade, pois é supor que além de Deus há outro ente, a quem tenhamos obrigação de obedecer, e com quem Deus tivesse a necessidade de se conformar.163

Nesse ponto, as ideias de Gonzaga também se afastam do pensamento de Pufendorf. Para o jurista suíço, os homens possuem de fato em si mesmo um apetite sociável, porque o ser humano é racional e a razão é idêntica em todos os seres inteligentes, e porque “um ser inteligente tem a preocupação de se conservar e de desenvolver seu ser”, o que não aconteceria no isolamento e na miséria do estado de natureza.164 Ou seja, o liame da sociabilidade, para Pufendorf, é a razão humana, ao

160

Hugo Grotius, O Direito da Guerra e da Paz; Tradução: Ciro Mioranza. Ijuí: Editora Unijuí, 2ª Ed., 2005 (Coleção Clássicos do Direito Internacional/ coord. Arno Dal Ri Junior), p. 37.

161

Idem, Ibidem, p. 79.

162

Idem, Ibidem, p. 40.

163

Tomás António Gonzaga, Tratado de Direito Natural, 2005, pp. 78-79.

164

Samuel Pufendorf, Le Droit de la nature et des gents, t. I, p. 194. Ver Alain Renaut, “Pufendorf” in:

Dicionário de obras políticas organizado por Châtelet, Duhamel e Pisier. Rio de Janeiro: civilização

passo que para Gonzaga e para Barreto e Aragão, é a vontade de Deus que determina que o homem “viva sociável com o [seu] semelhante, para poder ser feliz”.165

Contra Pufendorf, mas sobretudo contra Grotius, é a Heinécio que recorre Gonzaga:

Heinécio mostra a falsidade desta doutrina do modo seguinte: para haver obrigação, deve haver antecedentemente lei. Para haver lei, há de haver legislador, e não o há tirado Deus. Logo, tirado Deus, não pode haver lei natural; e, por consequência, nem obrigação.166

De fato, o trecho de Hugo Grotius citado por Gonzaga no capítulo intitulado “Do princípio do Direito Natural” não nega a origem primeira da autoridade – Deus:

Seria um grande crime – afirma Grotius – conceder que não exista Deus ou que os negócios humanos não sejam objeto dos seus cuidados. O contrário tem nos sido inculcado em parte por nossa razão, em parte por uma tradição perpétua, e nos tem sido confirmado por numerosas provas e milagres atestados através dos séculos; disso se segue que devemos obedecer a Deus, sem exceção, como ao Criador e ao qual somos devedores daquilo que somos e de tudo que possuímos, tanto mais que muitas maneiras ele se tem mostrado extremamente bom e poderoso.167

Se Grotius, como se leu, não abandona a origem divina do direito, ele faz, porém, da vontade de Deus a sua fonte indireta. Bastando-se com anunciar o caráter quase sacrílego da tese grotiana – há direito, repitamos, mesmo quando não “existisse” Deus – , Gonzaga, em atitude consciente e voluntária, entende que Deus seria responsável pelo motor do mundo e, por isso, seria a “base principal de todo direito” e de toda obrigação.

Para Gonzaga, o princípio do direito, embora encontre sua gênese na própria natureza humana, advém de Deus. As leis da natureza, infundidas por Ele no coração de cada homem, são por isso conhecidas pela razão em complementariedade com um sentimento que antecede e legitima o direito: o amor.

165

Tomás António Gonzaga. Tratado de Direito Natural, 2005, p. 29.

166

Tomás António Gonzaga, Tratado de Direito Natural, 2005, pp. 78-79.

167

Gonzaga compartilha com Heinécio o pressuposto de que os homens devem amar os seus superiores, os seus iguais e os seus inferiores. Em relação aos superiores, os homens os amariam com amor de obediência e devoção, “tanto maior quanto maiores forem as suas perfeições e a sua superioridade”; quanto aos seus iguais, amam os homens com amor de amizade; e aos inferiores, com amor de benevolência.168

Portanto, Deus, fonte do Direito Natural, isto é, do conjunto das leis infundidas no coração de cada homem, organiza as relações entre os homens e fornece o fundamento do mundo humano-social. O Direito Natural assim entendido é a raiz sobre a qual está assentada a superioridade do governante.

A noção de amor na teoria jusnaturalista apresentada pelos tratadistas portugueses é definida em função da ideia de obrigação. O amor é, portanto, um sentimento de sujeição entre Deus e os seus servos, estendido também à relação entre o soberano temporal e os seus súditos, e originado de uma ordem interior que obriga a obedecer às leis régias, as quais, como veremos ao longo deste trabalho, são a expressão racional das leis naturais. Neste sentido, o amor, como frisamos, não é um afeto entendido como oposto à razão, mas produzido por ela como um sentimento de sujeição, indispensável para legitimar a obediência à vontade de um superior. O amor adquire assim uma conotação não apenas moral, nem propriamente teológica, mas sobretudo jurídica.