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2.2 Os modos de alienação da soberania e as suas críticas

2.2.2 A soberania por direito de conquista

Na Dedução Cronológica e Analítica (1768), obra importante para entender a ideologia do Estado português em meados do Setecentos, José de Seabra assegura que todo o poder do soberano emana imediatamente de Deus. Posto que é “o interesse do repouso público” e a “necessidade de um freio para blindar a liberdade dos crimes” a “razão que estabeleceu a distinção dos domínios e fundou a sociedade”, Deus preveniu que o homem “não poderia subsistir sem governo”. A partir disto, instituiu-se o Supremo Poder, que, nas palavras de Seabra, “desde a criação do mundo se deu sobre todos os animais feitos à sua semelhança”. E continua: “Daqui veio o Supremo Poder,

que Deus exercitou visivelmente sobre si mesmo. Daqui veio o Supremo Poder que as potências humanas exercitam no seu nome em todas as nações”.230

Neste tópico, Seabra não se furta ao debate explícito com os monarcômacos. Como vimos, nos séculos XVI e XVII o desenvolvimento do Direito Natural esteve nas mãos de duas escolas – que mais tarde ficaram conhecidas na história das ideias como monarcomaquia –, as quais, apesar de se ignorarem mutuamente, acabaram por estabelecer algum paralelismo. De um lado – do lado católico –, jesuítas e dominicanos desenvolveram a “concepção de uma ordem natural gravada por Deus na natureza e dela fluindo por via da razão natural”. Por isso, o poder de mando não pode depender apenas de uma vontade singular e arbitrária, devendo-se impor, então, a concepção de uma soberania emanada do próprio povo de Deus. De outro lado, os protestantes, confrontando-se aos reis fiéis a Roma, desenvolveram concepção semelhante, embora aqui o papel maior fosse desempenhado pelo indivíduo, e não pelo corpo da cristandade entendido como “povo”, como entre os católicos.231

Para José de Seabra da Silva, esses dogmas dissolvem a união cristã e arruínam a sociedade civil, já que era impossível

que deixassem de assustar toda aquela parte do mundo, que vive debaixo da feliz sujeição aos preceitos divinos, e as regras, que deles se derivaram para as leis humanas, com as quais o supremo autor da natureza, e da graça, estabeleceu no respeito, e na segurança dos reis, dos reinos, e dos estados [...]. Daqui veio, que ao mesmo tempo em que foram aparecendo as dolosas composições dos ditos sectários monarcômacos; e consequentemente a dos referidos jesuítas seus sequazes; todos os sábios, e todos os supremos poderes da Europa, as foram confutando, e proscrevendo sucessiva, e vigorosamente. Unindo-se com igual necessidade os católicos romanos, e os protestantes, para convencerem, e desterrarem aquela perniciosa seita inimiga comum de toda a cristandade.232

230

José de Seabra da Silva, Dedução cronológica e analítica, 1767, p. 367-368.

231

Sobre a teoria da resistência desenvolvida por Calvino e a influência que irá exercer sobre o calvinismo posterior desenvolvido sistematicamente sobre uma base teológica e jusnaturalista, ver António Tryol Y Serra, Historia de la Filosofia del Derecho y del Estado. Vol 2. Del renascimiento a

kant, 1982, pp. 43-44 e 86-87.

232

A fundamentação teológica do poder, sublinhemos mais uma vez, é a base de todo o pensamento político do século XVIII português. A inovação de Dedução Cronológica, segundo Silva Dias, é o discurso histórico-jurisdicista.233 Segundo Seabra, importante expoente da escola de pensamento desenvolvida no reinado de D. José I, a soberania régia é resultado do direito de conquista em guerra justa e do antecedente título de doação dos monarcas da Espanha:

[…] nestes termos os Reinos de Portugal, e do Algarve por haverem sido doados pela Coroa de Leão, e ganhados em guerra justa, ficaram próprios dos ditos senhores reis, donatários e conquistadores, para se devolverem por via sucessão sem mais sujeições, ou partilhas, aos seus régios descendentes, ou parentes mais próximos aos últimos possuidores, no caso, em que estes não dispusessem outra coisa diversa.234

Dessa maneira, os soberanos portugueses não foram eleitos pelos povos, isto é, o poder régio não tem sua origem em um pacto social. A legitimidade histórica do primeiro rei português está nos títulos de conquista, doação e sucessão. Entretanto, o rei não deve governar de acordo com a sua vontade. Por isso, D. Afonso Henriques convocou as Cortes de Lamego, que são as leis fundamentais do reino, ou a base e princípio da sociedade civil; nas próprias palavras de Seabra, “o mais inviolável monumento da civilidade, e do sossego público em todas as nações, que se governam pelos ditames da razão”.235 Trata-se, então, de uma monarquia absoluta, não de uma monarquia despótica. Como pontuou Silva Dias, a monarquia portuguesa é compatível com a existência de uma constituição ou de leis fundamentais. Entretanto, para Seabra, as Cortes de Lamego não são convocadas para legitimar a soberania régia, mas para regular “a maneira de chamar o monarca, ou seja por eleição, ou seja por sucessão; a forma em que deve ser governado o Reino, ou regida a República”.236 Assim, as Cortes “não são um órgão constitucional, mas uma instituição conjuntural”.237

233

J. S. da Silva Dias, “Pombalismo e Teoria Política”, Revista Cultura: História e Política, 1982, p. 57.

234

José de Seabra da Silva, Dedução Cronológica e Analítica, 1767, p. 354.

235

Idem, Ibidem, 355.

236

Idem, Ibidem, p. 356.

237

J. S. da Silva Dias, “Pombalismo e Teoria Política”, Revista Cultura: História e Política, 1982, p. 58. Ver também Pedro Calafate, “A filosofia política” in História do Pensamento Filosófico Português, Vol III: As Luzes, p. 51-52.

O Estado português em sua origem seria patrimonial e não contratual. A aclamação de D. Afonso Henriques no campo de Ourique não foi caracterizada como a transferência da soberania dos povos ao governante, mas apenas a reafirmação do governo e da suprema jurisdição que ele já possuía pelos direitos de conquista, dote e sucessão. As Cortes de Lamego apenas confirmaram o título de rei. Depois, a Coroa portuguesa se desenvolveu por sucessão.238

A legitimidade da soberania por direito de conquista e doação é pontual na Dedução Cronológica. De acordo com a interpretação de Silva Dias, ela é usada para afirmar que a monarquia portuguesa é um poder autônomo não só em relação à igreja, mas independente e supremo em face da comunidade civil.239 Esta obra é sem dúvida o marco no debate posterior em torno da noção de soberania. Os discursos políticos posteriores à sua publicação têm com ela diálogos fundamentais para a consolidação da ideia de soberania portuguesa no século XVIII.

A teoria proposta na Dedução Cronológica e Analítica foi retomada no final do século XVIII pelos juristas Pascoal de Melo Freire e Francisco Coelho de Sousa e Sampaio, com o objetivo de legitimar a monarquia pura portuguesa. Pascoal de Mello Freire, renomado e atuante jurista do último quartel do século XVIII português, defende, no Novo Código do Direito Público de Portugal (1789), que o poder soberano exercido pelo monarca é oriundo da vontade de Deus.240 Não é necessário e nem conveniente, de acordo com Melo Freire, declarar se o poder do Príncipe vem, ou não, imediatamente da vontade de Deus; basta, afirma o jurista, “decidir que vem de Deus”, pois “é o mesmo que dizer que não deu o povo, no que se vem a condenar a opinião dos monarcômacos”.241

A monarquia pura portuguesa, para Melo Freire, não se legitimava por eleição e vontade dos povos, mas por conquista e sucessão. As palavras do jurista ecoam a doutrina defendida na Dedução Cronológica, sobretudo na distinção estabelecida entre a soberania e a legitimidade da monarquia lusitana. Neste ponto, a sua crítica é destinada aos teóricos portugueses que defendiam a necessidade de convocação das Cortes para a legitimação da Regência de D. João. É importante

238

J. Sebastião da Silva Dias, 1982, p. 58. Ver também Pedro Calafate, “A filosofia Política”, op.cit., p. 51.

239

J. Sebastião da Silva Dias, 1982, p. 57.

240

Pascoal de Melo Freire, Novo Código do Direito Público de Portugal, 1789 [1844], p. 1.

241

lembrar que esta questão passou a ser de suma importância após a doença de D. Maria I e o receio de se produzir um “vazio da soberania”. O discurso de Melo Freire é, assim, uma reposta ao problema conjuntural da época. Para o jurista,

[…] o reino não veio ao Rei por eleição e vontade dos povos, mas por conquista e sucessão, não falta quem diga, que neste caso o povo só pode mudar e alterar aquelas leis, de que constar ser autor no princípio da constituição; o que em Portugal somente se pode verificar a respeito das leis da sucessão do reino, mas de nenhum modo a respeito da soberania, poder e independência do rei, sobre o que nunca se fizeram, nem aparecem leis, ou constituições feitas pela nação.242

Para Melo Freire, o poder real fundamenta-se na vontade absoluta do soberano, legitimado pela transmissão divina, e por isso o monarca governa o reino como uma conquista pessoal. Esta mesma doutrina é retomada em 1794 por Francisco Coelho de Sousa e Sampaio nas Preleções de Direito Pátrio. Para o jurista, os imperantes recebem o poder imediatamente de Deus, com o ofício de regular as ações dos súditos em benefício deles mesmos e do Estado. Assim escreve:

Sei, que esta doutrina do poder imediato será desagradável aqueles sectários do espírito dominante da mal entendida liberdade, e dos imaginários defensores dos Direitos do Homem: sei, que pela mera enunciação destas preleções; que eu serei reputado um fanático político, e falto de senso literário: mas eu, longe de pensar que esta doutrina infringe a liberdade, e os direitos do homem, estou altamente persuadido, que ela, assim como a do poder mediato liga igualmente os imperantes e os súditos.243

A soberania, para Sampaio, tem origem divina. Entretanto, como o seu antecessor Melo Freire, não descarta a importância das leis fundamentais do império português. Para ambos, as leis fundamentais têm por objeto apenas a forma do Império e as regras de sucessão, por isso não regulam sobre o poder, a independência e a soberania dos príncipes. A constituição do império português “é a monarquia plena, pura, simples e

242

Pascoal de Melo Freire, Resposta a primeira censura sobre o Plano do Novo Código, 1789, p. 64.

243

Francisco Coelho de Sousa e Sampaio, Preleções de Direito Pátrio, público e particular, 1794, Prólogo, p. VII.

independente, sucessivo-hereditária”.244 Reverberando as ideias expressas na Dedução Cronológica e Analítica, Sampaio defende que os reis de Portugal sucedem no Império por direito de sucessão hereditária legítima, estabelecido nas leis fundamentais do reino, e por esta razão “independem de nova eleição do povo, e de nomeação de seu augusto antecessor”.245

Neste sentindo, as Cortes dependem sempre do arbítrio dos príncipes e possuem apenas autoridade consultiva.

O discurso da soberania por direito de conquista é fundamental para entendermos a distinção entre a legitimidade divina da soberania e a legalidade da monarquia pura portuguesa. Entretanto, o discurso produzido pelas obras oficiais do governo e a legislação régia em meados do século XVIII é um pouco diferente. Vejamos.