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A sociologia organicista: os seus seguidores e críticos

No documento Organicismos e Política (páginas 44-47)

RENÉ WORMS E O ORGANICISMO SOCIAL

3. A sociologia organicista: os seus seguidores e críticos

A ideia da sociedade como um “organismo” não era nova no tempo de Worms. Foi uma metáfora antropomórfica, que já encontramos na Grécia clássica, e era útil para iluminar, ainda que de maneira empírica e simplista, a estrutura e o funcionamento de certo tipo de sociedades, e que persistiu, dominante, até à emergência do individualismo moderno, passando para segundo plano com o contratualismo liberal e recobrando actualidade, com o desenvolvimento e progresso, a partir do século XIX, quer do romantismo e do nacionalismo quer das ciências do homem e da vida (como a antropologia física e a biologia filo- genética e ontogética, respectivamente). O apogeu destas ciências – promovido, sobretudo, pela teoria da evolução darwinista e pela teoria celular de Virchow – colocou-as no centro não apenas de uma nova concepção do homem, mas dos “homens em sociedade”; trouxe para o debate dos grandes problemas do século, os conceitos de indivíduo versus sociedade; debate agudizado, porque 11 Worms entende que há “analogia” entre dois órgãos de um ser vivo, se o segundo preenche o mesmo género de

funções que o primeiro, se tem o mesmo papel que ele, sem que haja entre eles semelhança de origem (idem, ibidem,

p. 156).

12 René Worms, OS, pp. 8-9. 13 Idem, ibidem.

o último quartel do século XIX foi, também, como luminosamente mostrou Husserl, um tempo de crise dos fundamentos epistemológicos dos dois grandes pilares da Ilustração (a matemática e a física) e um tempo de crise do “indiví- duo”, que passou a ter a concorrência alternativa, como motor da História, de ideias novas como as de “povo” (Michelet), “raça” (Vidal de Lapouge e Gobi- neau), “classe” (Marx) e “sociedade” (Comte, Durkheim), entre outras. Mas, ao contrário do que possa parecer, o esforço de fundamentação científica dos fenómenos sociais, ligando-os à biologia, não foi um esforço de progresso no sentido da emancipação da sociedade e dos seus membros, mas, outrossim, um esforço para os amarrar a um determinismo natural; conscientemente ou não, esse esforço foi uma mutilação do que havia de utópico nessas ideias novas, uma tentativa de – sem renunciar ao progresso – as subordinar a uma certa “ordem” natural. Não me parece, todavia, que Worms tenha tido consciência deste conservadorismo de índole sociológica. Já o mesmo não direi daquele que considera o patriarca da sociologia – Auguste Comte – que comparou os fenómenos biológicos aos fenómenos sociais (não como sendo idênticos, mas homogéneos)14 e fala-nos, várias vezes, de “organismos sociais” como sinóni-

mos de “sociedades”15. Depois de Comte foram muitos os que seguiram, em

princípio, a sua orientação epistemológica na explicação dos fenómenos sociais. Letourneau, por exemplo, assimilou as sociedades a organismos16; Gabriel

Tarde, em parte, partilhou ideias afins17; e ainda que Albert Schaeffle e Glum-

powicz tenham recusado assimilar as sociedades a organismos, admitiram que a sociedade pode ser um ser vivo, um “ser organizado”18. Mitigada é, também,

mas nem por isso deixa de ser receptiva, a atitude de Alfred Fouillée (um dos mais importantes divulgadores da “teoria organicista da sociedade”) que apesar 14 Auguste Comte, ibidem, pp. 73-74.

15 Idem, ibidem, lições 48.ª e 50.ª lição, respectivmente, pp. 209-336 e pp. 384-441.

16 Charles Letourneau era da opinião que não havia uma linha de demarcação essencial entre a humanidade e a ani-

malidade e que as faculdades que existiam naquela, já existiam, rudimentarmente, nesta (como se pode verificar nas suas obras L´intelligence de l´homme et des animaux, L´homme et les animaux, Les phases sociales, Les peuples

athées de la vallée du Nil, entre outras); mas essa assimilação ainda que afirmada no prefácio de La sociologie, d´après l´ethnographie (3ème éd., révue et corrigée, Paris, C. Reinwald & Cie, Libraires-Éditeurs, 1892) é feita, nesta obra,

fugazmente (p. IX).

17 Gabriel Tarde, “Les monades et les sciences sociales”, in Révue Internationale de Sociologie, 1ème année, 1893, n.º 2,

pp. 157-173 e n.º 3, pp. 231-246. Mas não tanto como quer fazer crer Worms, pois Tarde foi um crítico da mona- dologia essencialista e valorizou, com grande ênfase, a especificidade do mundo “supra-orgânico”.

18 René Worms, O.S., pp. 9-10; Albert Schaffle afirma que o corpo social é um “organismo espiritual e não concreto”

(in Structure et vie du corps social, 1875-1878); e quanto a L. Glumpowicz (1838-1909), o seu interesse centra-se nos “grupos sociais”, ainda que os naturalize.

de recusar a concepção organicista da sociedade tout court, aceitou-a, porém, quando compatível com o contratualismo social (denominando a sociedade “um organismo contratual”)19; e opinião não muito diferente era a de Guillaume

de Greef20. Quanto a Herbert Spencer, a sua abordagem das possíveis relações

entre organismos e sociedades era, como Worms reconheceu, mais profunda e complexa que as precedentes. Se na segunda parte dos Princípios de Socio-

logia (1876-1896) demonstrou, “magistralmente”, a analogia entre o corpo

humano e o corpo social, todavia, para salvaguardar a autonomia do ser humano (e, com ela, o seu individualismo político e económico-social) não levou às últimas consequências essa analogia, recusando admitir a subordinação do indivíduo à sociedade como a célula ao organismo21.

Mas se havia quem levantasse sérios problemas, como Spencer, a uma assimi- lação contínua das sociedades aos organismos, também havia quem não atribuísse sólidos fundamentos a esses obstáculos. O neo-lamarckiano Edmond Perrier (em algumas páginas dispersas do livro Les Colonies Animales et la formation des orga-

nismes, 1881), Alfred Espinas (no seu livro Les Sociétés Animales, 1877, e em três

artigos sobre Les études sociologiques en France publicados na Révue Philosohique, 1882) e o antropólogo e médico Arthur Bordier (em La vie des sociétés, 1877), compararam, irrestrita e cientificamente, os organismos vivos e sociais, ainda que a demonstração daquele princípio de assimilação e continuidade seja feito apenas de modo fragmentário22; também o fez – e numa perspectiva holista – Paul von

Lilienfeld em La societé humaine considerée comme organisme réel (1873), mas a assimilação que ensaiou, na opinião de Worms, assentava em “generalidades” e em argumentos “mais engenhosos que seguros”23.

Dito isto, a conclusão de Worms é que, embora haja reservas sobre a assimi- lação das sociedades a organismos, no todo ou em parte (mais quanto ao todo do que quanto a certas partes), essa assimilação tem-se feito. E se os resultados ainda não foram, cabalmente, conclusivos, essa lacuna era mais uma razão – até mesmo a razão principal – para levar adiante o seu objectivo: demonstrar que a 19 Worms refere-se à obra deste filósofo francês, La science social contemporaine (1880), 2ème édition, Paris, Librarie

Hachette et Cie,1885, que muito o impressionou, da qual se deve ler, sobretudo, pp. 74-191.

20 Veja-se, por exemplo, a Introduction à la sociologie (deuxième partie). Fonctions et organes, Paris, Félix Alcan, Éditeur,

1889.

21 Worms, OS, p.10; Herbert Spencer, Principes de Sociologie, trad. de MM. Cazelles e J.Gerschel, t. 2, 2ème, Paris,

Librarie Germer Baillière et Cie, 1879, pp. 4-198 (em especial pp. 4-22). 22 Idem, ibidem, pp. 10-11.

sociologia era, efectivamente, uma “ciência”, que podia existir como “um sistema de conhecimentos independente”, tendo a “sociedade” como seu objecto e como paradigma de inteligibilidade a biologia24.

No documento Organicismos e Política (páginas 44-47)