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A filosofia espiritualista

No documento Organicismos e Política (páginas 89-92)

SEVERIANO DE REZENDE: UM PENSAMENTO ENTORNO DA HARMONIA

4. A filosofia espiritualista

O principal do pensamento metafísico e poético de Severiano de Rezende foi construído depois de 1905, quando ele deixa o sacerdócio e se afasta das preocupações com a realidade política do país. Nos últimos anos como sacerdote escreveu O meu Flos Sanctorum, publicado em Portugal, no Porto, por Lello e irmão, em 1908. No livro detalha a ética cristã explicitada na vida dos santos e a apresenta como ideal de vida.

Deixando o sacerdócio, Severiano deixa também o país indo morar na França. Em Paris trabalha como escritor e tradutor da folha Le Brésil do Journal

de Nations Americaines. Depois de uma década na capital da França, retorna a

Mariana, sua cidade natal, nos anos da Iª Grande Guerra e ali permanece entre 1915 e 1920. Com o final da Grande Guerra retorna a Paris, casa-se e vive na França até sua morte, em 1931. Portanto, José Severiano de Rezende não acom- panhou as mudanças no catolicismo brasileiro depois dos anos 30. No período que esteve fora do país, mesmo se mantendo fiel ao tradicionalismo político, escreveu uma obra poético-metafísica intitulada Mistérios que foi publicada em Lisboa, por Aillaud e Bertrand, em 1920.

Depois de apresentadas, em linhas gerais, o seu pensamento político orga- nicista, parece importante registrar que os aspectos nucleares do espiritualismo que Severiano concebeu não estavam desvinculados do seu projeto político monárquico constantiniano. Aliás, como resume Abbagnano no seu Dicionário

de Filosofia, o espiritualismo se caracteriza pela (1982): “defesa da tradição e das

instituições em que se encarna a tradição” (p. 338) e completa adiante: “A defesa das boas causas de que falava Cousin, se traduz no mais das vezes, no âmbito dessa corrente, pelo conservadorismo político” (ibid.).

Quanto à vida íntima como dito em A vida é um mistério preconiza o aperfeiçoamento interior que se vale do conhecimento científico como reali- dade preparatória. Como explica Nicola Abbagnano, Henri Bergson tratou, de modo semelhante a Severiano, “a ciência como conhecimento preparatório” (p. 338). Se as paixões desorganizam a alma e promovem contradições, ele entende que o espírito descobre uma unidade interior, ou (1999): “no interior do homem há uma harmonia que suplanta as contradições presentes nos desejos” (p. 147).8 Essa formulação tão próxima de Bergson possivelmente tinha raízes

8 Michelle Federico Sciacca escreve em sua História da Filosofia que a noção de espírito de Bergson supera as contra-

(1986) “no espiritualismo de Storchenau” (p. 49) presente, segundo José Carlos Rodrigues, no Seminário de Mariana. Contudo o pensamento de Severiano se parece mais com a genial reformulação do espiritualismo feita por Bergson. E são muitas as características que aproximam as teses de Severiano das daquele f ilósofo (1999):

O próprio objetivo de Severiano é muito parecido com o de Bergson, isto é, considerar a evolução do universo não como coisa mecânica, mas como manifestação de uma força vital profunda. Adicionalmente existe em ambos o projeto de tratar a vida não como coisa mecânica. mas como manifestação de uma força vital profunda.9 A proximidade não para

aí (p. 149).

Os aspectos fundamentais do espiritualismo de Severiano podem ser resu- midos nos seguintes pontos: 1. A vida é um mistério, ela não se revela perfeita- mente pelos mecanismos da razão. Ainda que a ciência ensine o funcionamento do mundo, o divino permanece oculto e é inatingível pela análise científica. A ciência apenas prepara o verdadeiro conhecimento. O conhecimento verda- deiro, o reconhece a própria ciência, ele diz em O meu Flos Sanctorum abre-se a Deus (1970): “por longo tempo O pressentiste e simbolizaste, farejaste o divino e perscrutaste o celeste, ciência do Egito e da Babilônia, ciência da Índia (…), ciência antiga, ciência perdida, ciência morta, ciência única” (p. 169) ; 2. Ainda que seja incapaz de revelar perfeitamente o que é o mundo criado por Deus, não há nessa afirmação irracionalismo,10 a razão nele intui o tempo como objeto

imediato, ela concebe o universo como um conjunto de movimentos harmoniosos que podem ser encontrados nas estrelas distantes e na natureza próxima. Essa é a forma como Bergson trata o conhecimento, conforme sintetiza Abbagnano (1982): “o inventário na consciência e, portanto, no mundo da natureza e da história, de dados capazes de remontarem a Deus ou a um princípio divino que em alguma

através do tempo, duração psicológica ou real. Se nós conseguimos ir além do eu superficial, fragmentário e dividido em tantos atos psíquicos, além do congelamento dos estratos exteriores da consciência, captamos uma continuidade e uma sucessão de movimentos e de estados solidamente organizados (…) descobrindo nosso eu profundo, isto é, a nossa vida unitária” (p. 187).

9 Sobre a visão do universo de Bergson, Michelle Sciacca explica o que ela significa, a superação do biologismo e o

evolucionismo materialista, ou (1968): “a libertação do biologismo, do evolucionismo, do peso do seu cientificismo intelectualista e imergi-lo na corrente viva e esguichante da vida e, por outro lado, dar à própria vida não um puro significado biológico materialista, mas um sentido espiritualista” (p. 185).

10 Sobre essa interpretação crítica do poder da razão Sciacca comenta o pensamento de Bergson, evidenciando a proxi-

midade com as teses de Severiano (1968): “Intuicionismo o seu, mas não irracionalismo: a intuição não exclui uma racionalidade concreta” (p. 186).

especificação se ajuste à tradição teológica do cristianismo” (p. 338). Ainda mais clara fica a questão na síntese que Delfim Santos fez da intuição para Bergson. Ele diz (1982): “a intuição, não importa se o termo foi bem ou mal escolhido, é apenas o método que se figurou ser o único capaz de alcançar imediatamente a realidade que sua filosofia pretende alcançar: a duração” (p. 200); 3. Quanto à busca da força da razão ela deve vir junto com o aprimoramento ético, diz Severiano em Mistérios (1971): “é preciso colocar juntas a justiça e a força para que quem seja justo seja forte e quem é forte seja justo” (p. 207); 4. A morte é parte do mistério que envolve a vida, e a mostra como calor e movimento harmonioso. Isso significa colocar a ética na raiz das relações humanas como ele o diz em O meu Flos Sanctorum (1970): “Assim no dia a dia vivemos entre o mal que bem queremos evitar e o bem que mal podemos querer praticar” (p. 16); 5. As relações entre homens e mulheres estimuladas pela paixão revelam o mistério do amor, ele o diz em Mistérios (1971): “rompe a aurora…penso nela. A imagem dela pousa junto a mim e meu verso nosso amor sublima” (p. 163). O amor humano que surge da paixão é amostra de como deve ser nosso rela- cionamento com o Deus Trino, e a nossa alma somente se descobre plenamente nesse transcendente ou, como ele diz: “a alma não conhece seu terreal, sem alar para além num transcendente pulo, no afã de reassumir a prima identidade” (id., p. 192).11 Ele diz essa mesma coisa ainda mais claramente num outro tre-

cho do livro: “em que o enfermo passo pode avançar para o futuro descobrindo os encantos da vida, na veraz radiação triádica da essência” (id., p. 125); 6. Se o amor por uma mulher é entrada num amor maior com Deus, os objetos da consciência remontam a Deus.12 Isso permite uma compreensão religiosa da vida

como ele diz em O meu Flos Sanctorum (1970): “Quando a noitinha tudo se recolhe e a natureza adormece (…), o crente (…) dobra os joelhos para adorar o mistério da encarnação” (p. 46); 7. O compromisso de amor que marca a vida nas experiências de amor se estrutura no projeto ético cristão, o que coloca o compromisso ético com Deus como o objetivo principal da vida. Severiano o diz textualmente: “um dia tive sede e fome de justiça, quis que a minha alma 11 Michelle Sciacca apresenta o papel do amor para Bergson como aquela força que está acima das manifestações

religiosas (1968): “É evidente que, para a religião dinâmica ou mística, o conteúdo das religiões positivas, é algo de acidental, que deve ser ultrapassado e, por assim dizer, dissolvido no amor” (p. 189).

12 Sobre Deus no espiritualismo de Bergon, diz Michelle Sciacca (1968): “ao impulso primitivo Bergson, dá, por vezes,

o nome de Deus no centro do qual surgem mundos infinitos, como as cintilações de um imenso fogo, porque não considera este centro como uma coisa, mas como uma continuidade de repuxo. Deus, assim definido, não tem nada de finito, é vida incessante, ação, liberdade” (p. 188).

fosse um translúcido espelho e tendo artefatadado uma cota inteiriça (…) fiz-me apóstolo, fiz-me herói, fiz-me argonauta, sondei naus, resolvi brenhas, gualguei penedos” (id., p. 177).13

No documento Organicismos e Política (páginas 89-92)