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CAPÍTULO 1: CONTEXTOS E SIGNIFICADOS DAS RELAÇÕES ENTRE

1.1 A solidão do colonato

Se o processo migratório envolve vários deslocamentos, estes, contudo, dificilmente chegam todos de uma vez, mas vão se dando aos poucos. Assim, os imigrantes japoneses não saíram de suas vidas cotidianas, desestabilizadas, mas relativamente conhecidas, e desembarcaram em um ambiente estranho no qual não conheciam nada nem ninguém.

Durante os cerca de 50 dias de viagem à bordo de um navio que separavam os emigrantes de seu destino final, laços entre conterrâneos poderiam se estabelecer e estreitar, como podemos ver na descrição que faz dessa viagem o imigrante que chegou ao país no ano de 1930 (aos 42 anos) na versão resumida e traduzida de seu diário.

Mesmo que o diário pessoal seja caracterizado por uma visão singular (a do autor) sobre uma história particular (sua vida), sendo que neste caso temos ainda o agravante das mediações impostas pelo resumo (feito pelo próprio autor do diário) e da tradução do japonês para o português (feita por um amigo da família em questão), acredito que, justaposto a outros materiais, tal versão resumida e traduzida do diário permite um olhar privilegiado para a vida do imigrante japonês no Brasil na medida em que encontrei diversas ressonâncias entre ele e a bibliografia sobre este tema (SAKURAI, 1993; MIWA, 2006; CEHIJB, 1992, para citar alguns).

Nesse sentido, o diário deste imigrante em particular, que decide vir para o Brasil acompanhado da família (esposa e quatro filhos) e de uma família de conhecidos depois de conversar com um imigrante retornado, funcionará como uma luz singular da qual me valerei para ressaltar alguns pontos significativos referentes à vida dos imigrantes japoneses no país e, mais especificamente, no estado de São Paulo, região para a qual vieram inicialmente e na qual atualmente se concentram em maior número os descendentes destes imigrantes (ISCHIDA, 2010).

No trecho em que se refere à viagem, o autor menciona, além das diversas paradas ao longo do caminho, a realização de undokais (gincana poliesportiva) à bordo, alguns dos quais congregaram inclusive os marinheiros, e a existência de uma escola básica de japonês, na qual as crianças participavam também de outras atividades, como educação física, cinema, teatro, entre outros.

De forma menos leve, a convivência também poderia encontrar estímulo nos apertados compartimentos para o sono, o qual muitas vezes não vinha em função da superlotação e do calor, conforme relata um dos romances trabalhados por Sakurai em seu

Romanceiro da Imigração Japonesa (1993). Neste livro, a autora aborda a vida dos

imigrantes japoneses no Brasil a partir de cinco romances publicados por imigrantes japoneses ou descendentes na década de 1980, os quais são tomados como ficções que servem de instrumento para os autores narrarem as experiências que consideram relevantes (SAKURAI, 1993, p. 20).

Os laços estabelecidos ou estreitados à bordo do navio podiam mesmo se manter no pequeno período que passavam os recém-chegados na Hospedaria dos Imigrantes na cidade de São Paulo à espera da realização dos contratos com as fazendas de café, período no qual tinham os primeiros contatos com a população e os modos de vida locais. A curiosidade, o estranhamento e a saudade começam a tomar esses imigrantes, misturando-se também à esperança de que a vida nas fazendas pudesse trazer a prometida abundância e a realização do sonho de rápido enriquecimento e retorno ao Japão (MIWA, 2006, p. 52-53).

Em contraposição, depois que as malas foram postas nos trens que levavam aqueles que trabalhariam nos cafezais substituindo, ao lado de outros imigrantes, a mão de obra de pessoas escravizadas, poucas oportunidades se deram ao desenvolvimento de relações extrafamiliares, inclusive entre patrícios (CARDOSO, 1995).

Digo relações extrafamiliares, porque inicialmente a migração japonesa para o Brasil tinha por exigência das terras tupiniquins a vinda de famílias com pelo menos três

pessoas maiores de doze anos e aptas ao trabalho na lavoura, exigência que fez com que muitas famílias fossem compostas às vésperas do embarque para o Brasil através de arranjos variados (SAKURAI, 1993, p. 47), como o casamento entre desconhecidos ou a adoção, sendo que este último já era corrente dentro do sistema familiar japonês (CARDOSO, 1995, p. 92).

Este, sendo no Japão um grupo corporativo ligado por relações de reciprocidade e obrigação, floresceu em solo brasileiro porque contribuía para a acumulação de dinheiro e coincidia com a atribuição de tarefas por famílias desenvolvidas nas fazendas através do esquema de colonato, no qual a cada uma delas cabia o trato de um determinado número de pés de café, pelos quais recebiam o pagamento de acordo com o que produzissem, sendo que tinham por direito valer-se de parte das terras para produção destinada ao consumo próprio (CARDOSO, 1995).

Embora o sistema familiar japonês contribuísse com as atividades desenvolvidas nas lavouras de café, não foram poucos os desajustes e os sofrimentos pelos quais passaram os imigrantes japoneses em solo brasileiro. Conforme relatou-me Aoi Kubo, sansei (terceira geração de japoneses e descendentes no Brasil) estudante de dança na cidade C que entrevistei para esta pesquisa, seu avô paterno emigrou do Japão, descontente que estava em função do avanço do capitalismo no país (ele participava de um grupo socialista) e também iludido pelas propagandas pró-imigração, que colocavam o Brasil como a terra da abundância. Ao chegar a seu destino, muitos foram os sofrimentos pelos quais o avô passou, sendo que o garoto destacou não só as más condições de trabalho na lavoura e o fato de que o avô teve de construir a própria casa, mas também a fome que passaram durante os primeiros anos na nova terra, algo que se reflete até hoje em Aoi, que disse não jogar uma migalha de pão sequer no lixo e se assusta muito com o desperdício de comida que nota entre alguns colegas.

De fato, os primeiros anos no Brasil não foram fáceis, principalmente porque a dura realidade enfrentada pelos imigrantes contrastava e muito com as imagens divulgadas nos vídeos de propaganda pró-imigração exibidos em escolas e cinemas (MIWA, 2006, p. 58). Tudo isso ameaçava os planos dos imigrantes, que sonhavam com um enriquecimento rápido e um retorno glorioso para a terra natal.

Eram, portanto, muitos os elementos para lidar, processar, assimilar: a saudade da pátria, a rotina extenuante, a solidão, as dúvidas e incertezas, a desilusão, o esmaecimento do sonho, uma doença, a fome, as cobranças dos capitães do mato que vigiavam o trabalho na lavoura, a organização da casa, a educação das crianças, a economia de dinheiro....

Não é de se surpreender que entre os pioneiros muitos fossem os atritos com a administração das fazendas, sendo que o principal motivo era a baixa produtividade dos cafeeiros, que estavam bastante velhos e contrastavam significativamente com as imagens e os dados apresentados no Japão. Tal insatisfação com as condições de trabalho, mas também de vida, nas fazendas levou muitos imigrantes a arriscar a alternativa da fuga, indo instalar-se nas cidades ou em outros cafezais, o que causou uma baixa permanência nas fazendas e impulsionou algumas mudanças no recrutamento e no tratamento dispensado aos imigrantes. Tais mudanças beneficiaram as próximas levas de trabalhadores vindos do Japão, os quais apresentaram um maior índice de fixação nas fazendas (KIYOTANI e YAMASHIRO, 1992).

As asperezas da vida de colono para estes novos imigrantes, apesar de ainda marcantemente presentes, foram também suavizadas pelo fato de que por vezes puderam contar com a ajuda de conterrâneos que já haviam conseguido organizar de forma mais adequada sua vida no novo país (MIWA, 2006, p. 55). De acordo com Sakurai (1993, p. 68) o processo de adequação dos pioneiros à nova realidade contou com a ajuda de vizinhos brasileiros ou estrangeiros de outras nacionalidades, afinal, como aponta Cardoso (1995), na fase do colonato havia uma dispersão das famílias japonesas pelas fazendas, algo que dificultava não só o relacionamento entre patrícios como também a manutenção de alguns elementos culturais.

Contudo, não eram pobres apenas os contatos entre nipônicos, mas também qualquer relação que se estabelecesse fora da família, a qual empenhava-se em sair da difícil situação que o regime de colonato lhes impunha.

Para escapar de um trabalho extenuante e de condições de vida ruins, foi necessário trabalhar ainda mais e viver de fato com o mínimo, fazendo muita economia, algo que Sakurai (1993, p. 52) atribui ao valor japonês de gambarê: “...esforço com resignação, ou seja, a força para seguir adiante mesmo diante da dificuldade”. De acordo com Yamamoto (1984, p. 37) citado por Sakurai (1993, p. 53), o gambarê ultrapassa a ideia de esforço total, inscrevendo-se na esfera de esforço sobre-humano em busca de atingir o impossível.

O tipo de esforço resignado expresso na ideia de gambarê fica claro na tradução resumida do diário que mencionei mais acima:

Assim, trabalhamos dois anos, descalços, e para sobrar algum dinheiro fazíamos o máximo de economia. O arroz colhido, que era de boa qualidade, trocávamos pelo arroz quebrado para render mais. O patrão tinha verdadeira admiração pela minha família, que trabalhava unida, com muita paz e bom entendimento. (Trecho extraído

família, apesar de morar já em uma comunidade japonesa, ainda trabalhava sob o regime de colonato, mas em uma fazenda diferente daquela à qual tinha sido originalmente designada).

A vida nas fazendas era dura. E preenchida com muito trabalho:

Este ano, para começar, peguei 4.000 pés de café para tratar pelo sistema de colonato e imediatamente começamos a capina. O mato estava alto, e eu e A [filha

mais velha]23 com 13 anos campinávamos o dia inteiro, a esposa dividia o tempo

entre serviços domésticos (lavar roupas e fazer obentô [espécie de marmita feita em

casa]) e a roça e B [primogênito, até então o único filho homem] ora olhava as

criança, ora trabalhava duro na roça. Sem descansar nos domingos e feriados, o trabalho na fazenda era pesado, pois o mato crescia muito. Na colheita, todos trabalhavam muito, desde o romper da aurora até escurecer, apostando quem colhia mais. (Trecho extraído das anotações sobre o ano de 1930, primeiro no Brasil,

passado na Fazenda Belém, em Araçatuba).

Como se vê, havia no interior das famílias uma divisão de tarefas de modo que, conforme aponta Cardoso (1995, p. 117-118), às crianças e aos idosos cabiam os trabalhos mais leves, em casa, para que os outros, inclusive a esposa, pudessem dedicar a maior parte do tempo aos trabalhos nas lavouras e para que alguns filhos pudessem também estudar, quando possível. O foco, no entanto, era o trabalho na lavoura, o qual dava lugar ao trabalho doméstico nos domingos e feriados, elemento que diferenciava os japoneses por exemplo de seus vizinhos italianos, os quais valiam-se do domingo para descansar e se divertir (SAKURAI, 1993, p. 68).

Pode-se dizer, então, que o principal fator que contribuía para a solidão característica da época do colonato era a rotina de trabalho. Contudo, a apropriação que faz Miwa (2006, p. 57-58) do trabalho de Handa (1987) permite-nos vislumbrar que, por vezes, o convívio entre conterrâneos florescia em meio a uma realidade tão árida:

Geralmente nas noites de sábado, os imigrantes reuniam-se na casa de um deles para conversarem, beberem e darem vazão aos sentimentos e reclamações reprimidos. Enlevados pelo álcool, havia aqueles que sentiam a necessidade de cantarem seus sofrimentos, canções inventadas por eles mesmos:

“Mentiu quem disse que o Brasil era bom, mentiu a companhia de emigração; no lado oposto da terra cheguei, fiado no Paraíso, para ver o Inferno. [...]

23 Os nomes dos filhos foram substituídos por letras de acordo com a sequência de seus nascimentos de modo a

Do jeito com (sic) vão as coisas, não passa de puro sonho O dia do retorno glorioso.

Já que o fim é a morte por inanição, melhor, então, é ser comido por onça, por qualquer bicho.”

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