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CAPÍTULO 3: NUANCES "JAPONESAS"

3.1 Os cenários

3.1.2 Baladas orientais

Da mesma forma que o colégio que descrevi na seção anterior, muitas baladas orientais podem surpreender o visitante desavisado. E isso porque, ali também, não vemos qualquer referência ao Oriente. Na verdade, tudo se parece com uma balada comum: música eletrônica da moda com letras em inglês, vodka e cerveja sendo consumidas, rodinhas de jovens entre 14 e 23 anos dançando nas pistas, outras rodas de pessoas conversando; as garotas trajam vestidos curtos e que valorizam as forma do corpo e os garotos, camisa polo e sapatênis.

funcionários: eu podia utilizar os elevadores para me locomover entre os andares da escola, enquanto os alunos só podiam recorrer às escadas.

Nem mesmo o local onde se realizam as festas dá indícios de que se trata de uma balada oriental, afinal, como esse tipo de festa acontece apenas a cada um ou dois meses, não há endereço fixo, sendo que cada festa102 loca um determinado prédio, o qual não é decorado com temas orientais. O diferencial fica, portanto, à cargo do público, composto majoritariamente por “japoneses” (lembrando que, da forma como é usado no Brasil, o termo pode incluir pessoas de outras ascendências que tenham uma fisionomia semelhante) 103.

Conhecido também como “balada japa”, esse tipo de festa surgiu em fins da década de 1980, quando bailes destinados à Colônia japonesa eram realizados no Ipê Clube, em São Paulo104. Cabe ressaltar, contudo, que a existência de bailes promovidos pela Colônia e destinados principalmente aos jovens nikkei já figuram no trabalho de mestrado de Ruth Cardoso (1959), realizado nos anos 1950. Se anteriormente esses bailes eram promovidos pelas próprias associações nipo-brasileiras, atualmente as baladas orientais são, até onde pude saber, independentes dos espaços associativos, sendo que algumas delas são promovidas por empresas que também organizam arubaitos (trabalhos temporários no Japão)105.

A essa mudança, podemos adicionar uma outra: de acordo com Alex Ogushi em matéria para o site Nippo Jovem, a organização desse tipo de festa perdeu seu caráter colaborativo106, adquirindo um aspecto semelhante ao das baladas regulares, com as quais passa, então, a competir por público.

Apesar disso, Fernando Vascaíno, produtor da Apple Music, famosa balada oriental, afirma em entrevista a Ogushi acreditar na existência de pessoas que realmente

102 Existem várias festas que estão englobadas sob o termo “balada oriental”, as quais, segundo um dos garotos

que me abordou em um desses eventos, são informalmente diferenciadas por faixa etária. Assim, existem baladas orientais que reúnem uma maioria de jovens de 14 a 17 anos, enquanto outras congregam pessoas na faixa dos 20 aos 30 anos.

103 Tudo isso foi também notado por Ischida (2010) para outra balada oriental.

104 Conforme matéria realizada por Alex Ogushi para o site Nippo Jovem no ano de 2009, disponível no seguinte

endereço: <http://www.nippojovem.com.br/especial/especial_20090219.php>. Acessado em 11 de novembro de 2015.

105 Sinônimo de “bico”, o arubaito é uma espécie de intercâmbio destinado a jovens nikkeis até a terceira

geração. Costuma ser mais frequente entre universitários, que utilizam as férias escolares para irem à trabalho ao Japão, aproveitando as folgas para conhecer o país. Dentre meus interlocutores, apenas Karina Yamada, estudante de engenharia de alimentos na cidade C, mencionou ter feito arubaito, embora entre seus colegas de faculdade, o trabalho temporário no Japão seja comum. Cabe ressaltar que, segundo Fugii (2008, p. 20-21), o

arubaito surge para suprir uma queda da presença brasileira nas fábricas japonesas devido a um esfriamento do

movimento dekassegui nos anos 1990. Ainda segundo o autor, se inicialmente o arubaito se restringia aos períodos das férias escolares no Brasil, tendo despertado o interesse dos empresários japoneses, esse tipo de trabalho temporário passou a ser oferecido igualmente em outros períodos do ano.

106 De acordo com a matéria de Ogushi, antigamente a organização dos bailes era feita por pessoas com

apreciam este tipo de evento, dentre as quais poderíamos incluir Ricardo Ueno107, yonsei (quarta geração) estudante de engenharia elétrica na cidade A sobre o qual falei no capítulo anterior.

Como já sabemos, Ricardo costumava frequentar esse tipo de balada com certa regularidade porque, sendo nipodescendente, sente que as baladas comuns, povoadas por pessoas que atendem ao estereótipo de beleza representado pelo branco europeu, não lhe são o ambiente mais propício, especialmente quando o assunto é paquera. Mas não só: assim como Ricardo, outros frequentadores desse tipo de espaço falaram-me, nas duas edições de uma balada oriental a que fui na cidade A, que gostam deste tipo de festa porque ali sentem-se em casa108.

Tal sentimento parece reverberar de certa forma a caracterização que faz Isaacs (1975 apud POUTIGNAT e STREIFF-FENART, 1998, p. 90) do grupo étnico como um refúgio, um espaço “de onde não podemos ser rejeitados e onde jamais estamos sós” (POUTIGNAT e STREIFF-FENART, 1998, p. 90).

Embora saibamos que isso nem sempre se concretiza – há sim cisões, rejeições, diferenciações, solidões no interior deste que costuma ser pensado como um grupo (qual seja, os nipo-brasileiros)109 -, a ideia de grupo étnico como refúgio parece informar a percepção dos frequentadores desses espaços, visto que lá, mesmo que haja a possibilidade da rejeição e da solidão, pelo menos não são o diferente, “o japonês”, como já aludi no capítulo anterior através das falas de Ricardo. Ainda segundo ele, quando se está com a maioria sente-se mais poderoso, mais à vontade; sente-se que se está no lugar certo.

Tudo isso, claro, se reflete na dinâmica da paquera: em uma conversa informal, Ricardo Ueno disse que nas baladas orientais os garotos nipodescendentes sentem-se mais seguros para azarar as meninas porque, fora dali, sabem que não são o padrão de beleza e se sentem incomodados quando, por exemplo, em uma festa da faculdade uma menina comenta “olha os ‘japas’ andando juntos!”110, enquanto que na balada oriental supõe-se que as meninas

107 Ricardo foi um dos únicos entrevistados que mencionou as baladas orientais; além dele, apenas Karina

Yamada mencionou-as: foi a três delas, mas não gostou muito: achou tudo muito diferente das festas da faculdade, onde, segundo a garota, aqueles que a abordam nem sempre estão flertando com ela.

108 Outros motivos foram apontados também, mas em menor frequência, como o fato das baladas orientais

tocarem músicas legais e também por serem tidas como mais tranquilas que outras baladas.

109 Exemplo disso pode ser visto em outros capítulos desta dissertação, especialmente no primeiro.

110 Ao longo de nossa entrevista e também de conversas informais, Ricardo se diferenciou em diversos

momentos dos “japoneses” que só andam entre eles, chegando mesmo a afirmar que se na faculdade seu grupo de amigos é composto por uma maioria de nipodescendentes, isso é um acaso, afinal, seus amigos já se conheciam da época do cursinho e Ricardo, tendo vindo de uma escola em que ele era o único nipodescendente da classe, apenas foi agregado ao grupo.

estão lá porque gostam de “japoneses”. “Menos você”, diz, completando que agora vai ter que considerar a possibilidade da menina estar fazendo pesquisa.

A ideia de que as garotas que estão em uma balada oriental, especialmente se não são reconhecidas como nipodescendentes, tem atração por “japoneses” é partilhada por outros frequentadores desses espaços, visto que muitos dos garotos que me abordaram perguntaram- me se gosto de “japoneses”.

Frente a isso, é preciso dizer que minha breve incursão nesse tipo de espaço em que o flerte é parte central da socialidade foi muito mais marcada pela interação com garotos do que com garotas: como sou mulher e estava inserida em um ambiente em que, conforme pude perceber, a homossexualidade tem um espaço mais restrito que em outros espaços de lazer, sendo que não raro presenciei comentários homofóbicos111, eu era abordada com certa frequência por garotos, o que não acontecia em relação às garotas.

Aliás, não me lembro de nenhuma ocasião em que alguma garota dirigiu-se a mim, com exceção talvez de alguma conversa de banheiro: de fato, para além do não lugar da homossexualidade nesses espaços, pude perceber que as interações que não tinham caráter de flerte se davam majoritariamente entre pessoas que já se conheciam. Assim, as poucas garotas com as quais tentei conversar para ter acesso às suas percepções sobre as baladas orientais, não se interessaram pela conversa, afinal aos elementos já mencionados, soma-se o fato de que estávamos em um ambiente em que contribuir com uma pesquisa sobre relações entre nipodescendentes é menos propício e interessante do que beber, dançar e paquerar.

Quanto aos garotos, embora o fato de eu estar ali fazendo pesquisa fosse uma balde de água fria em suas intenções iniciais, poucos se mostraram verdadeiramente incomodados com o fato, seja porque desconfiavam da seriedade de minha afirmação, seja porque a seus olhos isso não atrapalhava a concretização de seus planos, seja ainda porque haviam ali outras garotas, inclusive não descendentes, com as quais flertar.

De fato, se a maioria do público era composta por pessoas que, por terem traços orientais, supõe-se que sejam “japonesas”, haviam pessoas que, como eu, não os tem. Contudo, pelo que pude notar, a maioria delas estava, ao contrário de mim, acompanhada por pelo menos um “japonês”.

Devo pontuar, porém, que há dentre as baladas orientais, aquelas que apresentam um diferencial significativo em relação às baladas comuns (e também a outras baladas

orientais): as músicas que embalam os presentes são as produzidas atualmente em países como o Japão, a Coréia do Sul e a China, os famosos J-pop, K-pop e C-pop112, os quais, no Brasil, andam lado a lado com outras manifestações da cultura contemporânea particularmente do Japão, como os animes (desenhos animados) e os mangas (histórias em quadrinhos), que compõem o universo otaku (fã; no Brasil é usado para designar os fãs da cultura pop oriental)113, o qual, por sua vez, costuma andar junto com o universo nerd dos

videogames e das séries e dos filmes que envolvem, por exemplo, zumbis e/ou ficção científica114.

Curiosamente, conforme notei em uma festa deste tipo a que fui (também realizada na cidade A), a diferença do estilo de música desta para a outra balada oriental que conheci e que vim descrevendo até então veio acompanhada de outras diferenças.

Congregando um público bastante mais jovem, com idades entre 14 e 18 anos, a festa em questão, além de ter os sucessos do C-pop, K-pop e J-pop a embalar os presentes, tinha como temática a sexta-feira treze, data escolhida para a realização da festa. Assim, alguns de seus frequentadores estavam maquiados como zumbis, ou portavam outros tipos de fantasias, sendo que a maioria envolvia cicatrizes e sangue muito bem imitados com o uso de maquiagem. Tantos outros vestiam-se com roupas comuns, as quais diferiam das vestimentas que encontrei na outra balada oriental a que fui por serem mais informais.

Além disso, o clima da balada também era mais informal, se aproximando àquela atmosfera que costuma reinar quando amigos e conhecidos se reúnem. Parte disso era que a cada nova música havia uma comoção por parte dos presentes que punham-se a cantá-la em coro, inclusive nas partes em que a letra da música passava do inglês para o japonês, chinês ou coreano. Além disso, as músicas mobilizavam também as danças: em determinados momentos parte dos presentes assumiam o centro da pista afastando os demais e executavam coreografias perfeitamente sincronizadas. Entre os que dançavam, estavam homens e mulheres, de traços orientais ou não.

Nesse caso, os presentes estavam tão envolvidos pelas músicas que pouca atenção foi dada à minha presença, mais um contraste em relação à outra balada oriental. Se nesta

112 Fernanda, nikkei aluna do colégio tido como oriental no qual fiz pesquisa, é uma grande fã desse tipo de

música e, em uma conversa informal, apontou-me que já ouviu dizer que a música pop da China pode ser também chamada de M-pop. Em uma breve pesquisa na internet, encontrei C-pop para a música produzida na China e M-pop para a realizada na Malásia.

113 Winterstein (2011) traz uma discussão mais ampla sobre o universo otaku.

114 Durante meu estágio de pesquisa no exterior (através da BEPE-FAPESP) realizado na cidade de Paris, pude

notar que a associação entre esses dois universos, bem como a difusão dos produtos midiáticos da cultura japonesa, não estão restritos ao Brasil.

última minha condição de outsider ficava clara porque, ao contrário da maioria, não tenho traços orientais nem sequer estava acompanhada de alguém que os tenha, minha não familiaridade com o universo que figurava na festa embalada pelas músicas pop orientais também deixavam clara essa minha posição.

Mesmo assim, pude conversar rapidamente com um dos DJ’s, um dos poucos dentre os presentes que tem traços orientais, e saber por meio dele que antigamente essa festa tocava igualmente músicas não orientais, mas que acabaram optando por permanecer apenas com as melodias vindas do Japão, da Coréia do Sul e da China para atender à uma demanda do público.

Para finalizar, aponto apenas que Ricardo Ueno afirmou veementemente não frequentar as baladas orientais que mobilizam esse tipo de música, das quais não gosta, o que nos sugere que algo que intuí durante a festa com as músicas pop orientais - que dificilmente são as mesmas pessoas que frequentam esses dois espaços bastante díspares – pode se confirmar. Para poder melhor trabalhar essa questão seria, contudo, necessária uma pesquisa mais sistemática sobre isso, o que foge ao escopo deste trabalho.

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