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CAPÍTULO 3: NUANCES "JAPONESAS"

3.1 Os cenários

3.1.1 Um colégio dito oriental

O primeiro espaço sobre o qual falarei é o colégio particular conhecido como oriental na cidade A de cuja existência vim a saber em uma breve conversa com um amigo: segundo ele, próximo da casa de seus pais (que moram na cidade A) há um colégio oriental. Embora naquele momento eu não soubesse o que isso significava, hoje posso dizer que parte dos motivos deste colégio ser conhecido como tal é que a sua história foi marcada pela presença japonesa na cidade A e isso porque o colégio surgiu a partir dos desenvolvimentos de uma escola de corte e costura criada na década de 1930 por um casal de imigrantes japoneses com vistas a educar profissionalmente as moças nikkei.

A princípio, a instituição configurou-se como um pequeno internato no qual às aulas de corte e costura somavam-se as de língua japonesa; posteriormente vieram as de língua portuguesa, o magistério, entre outras (Cf. HARADA, 2013). Mais tarde, contudo, a instituição transformou-se em fundação educacional, uma entidade de direito privado dirigida por voluntários, a qual mantém o colégio em questão. Este comporta desde a educação infantil até o ensino médio e conta com um corpo discente majoritariamente composto por nipodescendentes, aspecto que parece ser, ao lado da relação do colégio com a referida fundação educacional, a evidência mais clara de um vínculo entre ele e a presença japonesa na cidade.

Isso porque, ao contrário do que se possa imaginar, nada na estrutura do prédio de quatro andares que a escola ocupa em um bairro de classe média alta na zona sul da cidade A revela esse vínculo – a exceção talvez seja um pequeno jardim japonês na entrada – sendo que este colégio, como tantas outras instituições educacionais privadas, dispõe de biblioteca, sala

de informática, quadras poliesportivas, playground, pátio, cantina, refeitório e laboratório de ciências. Uma particularidade é a possibilidade do período integral.

Nessa distribuição espacial, as salas ocupadas pelo ensino médio, ciclo com o qual trabalhei, ficam no último andar (o terceiro colegial fica em um anexo a esse andar, um pouco afastado das demais classes), o qual é compartilhado com o nono ano do ensino fundamental. Pelo que pude notar, as interações entre ensino médio e nono ano são praticamente nulas, sendo que os alunos do ensino fundamental costumam descer até o térreo, onde há a cantina, o pátio e as quadras, durante os intervalos, enquanto que os do ensino médio permanecem em sala ou se encontram com algumas pessoas de outras turmas no corredor. Em geral esses encontros são entre os alunos do primeiro e do segundo ano, cujas salas estão lado a lado99.

Voltando ao adjetivo “oriental” atribuído a essa escola, cabe dizer que nem mesmo o site do referido colégio enfatiza o vínculo que ele possui com a presença japonesa na cidade A, já que quando menciona a história da instituição pontua que quando de seu surgimento a escola de corte e costura dedicava-se à formação de jovens brasileiros, embora note que um de seus pilares era a educação feminina seguindo a ética japonesa.

Da mesma forma, em meu primeiro contato com o colégio, em uma reunião com três de suas professoras (uma nipodescendente e as outras não), pude saber o que, na visão dessas três profissionais singulariza o colégio enquanto oriental; apesar de elas terem respondido à minha pergunta sobre esse assunto ressaltando os aspectos tidos como positivos (alunos bons em matemática, quietos, obedientes), enfatizaram que eles não são fechados em si, uma vez que, desde a fundação, a escola pretende preparar os alunos para a sociedade brasileira. A isso uma das professoras não descendentes adicionou que existem outros colégios orientais na cidade A e que assustou-se muito quando visitou um deles em função da rigidez em relação à disciplina; segundo ela, os estudantes andavam até mesmo com a cabeça baixa.

Pelos vídeos institucionais disponíveis online no canal da escola no site Youtube é possível ver como, com o tempo, a “influência japonesa” do colégio em que fiz pesquisa foi se deslocando, sendo que atualmente me parece que ela se encontra mais concentrada nas oficinas extracurriculares, como as de língua japonesa, soroban (ábaco oriental) e ikebana (técnica de arranjo floral). Cumpre notar, contudo, que no colégio há outras oficinas que, a princípio, não se relacionam com a esfera japonesa, como a de teatro. Porém, pelo que pude

levantar junto aos estudantes do ensino médio, nenhum deles frequenta esse tipo de atividade atualmente, embora alguns já tenham cursado língua japonesa ou praticado algum esporte, como handebol ou vôlei, como atividade extracurricular na escola.

Quanto à dimensão da proposta pedagógica, o colégio ressalta em seu site a formação integral do aluno, o que, segundo Harada (2013), reflete a incorporação de aspectos positivos da educação japonesa, como a questão da autonomia com responsabilidade, algo que foi apontado também pela estudante Débora Takara e por Bárbara Matsui, doutoranda na cidade C que não conhece o colégio em questão, mas igualmente relacionou esse tipo de educação que envolve autonomia e responsabilidade (e que no caso dela foi recebida em casa) com certa influência japonesa.

Contrariamente, as entrevistas com oito dos 46 estudantes do ensino médio (27 do sexo masculino e 19 do sexo feminino)100 realizadas depois de cerca de um mês na escola revelaram que, para aqueles que não frequentam o colégio, é corrente a ideia de que, por ser conhecido como oriental, algumas das características associadas a essas pessoas devem estar presentes. Assim, Watanabe, que ingressou na escola no sexto ou sétimo ano do ensino fundamental, chegou a ela informado pelos comentários de terceiros de que, como era uma escola oriental, era bastante rigorosa com os estudos e os próprios estudantes eram muito dedicados a eles. Lá chegando, descobriu que as coisas não eram necessariamente assim e o mais comum foi que eu ouvisse dos estudantes em geral, tanto nas entrevistas quanto em momentos mais informais da pesquisa de campo, que a escola e seus alunos são “normais”, isto é, não diferem de outras escolas e alunos.

Camila Lobo, não descendente do terceiro colegial, resume a questão: (nesta escola) tem “japonês” (mestiço e não mestiço) quietinho e certinho, tem “japonês” (mestiço e não mestiço) festeiro, tem aqueles que estão bastante preocupados com os estudos e outros que só estudam na véspera das provas. Tem também aqueles que, como ela, não são nipodescendentes, mas se veem como semelhantes a eles: tendo frequentado este colégio desde pequena, Camila afirma ser mais comportada que os seus amigos que não tem nada a ver com “japoneses”.

100 Os estudantes entrevistados estão distribuídos da seguinte maneira: quatro são do sexo feminino, quatro do

masculino; três eram estudantes do primeiro colegial, dois do segundo e três do terceiro; quatro não são descendentes de japoneses e quatro o são (todos aqui são mestiços, mas no colégio existem aqueles que não o são); três haviam ingressado naquele ano no colégio e cinco já eram alunos da instituição há mais de um ano. A seleção dos entrevistados partiu inicialmente do interesse dos estudantes em conversarem comigo e, quando não houve manifestação de interesse, prezei pela pluralidade de experiências.

No colégio, nas classes do ensino médio, “japoneses”, “mestiços” e “brasileiros” de todos os “tipos” são encontrados, sendo que pelo que pude perceber os grupos tendem a se formar em torno das polaridades quietinhos X falantes, dedicados aos estudos X displicentes, certinhos X festeiros, as quais, claro, se cruzam com outros fatores, e não da polaridade nipodescendentes X não descendentes, como supõem as inúmeras pessoas que perguntam à Camila se ela não se sente estranha e deslocada em uma escola com tantos “japoneses”.

Apesar de não se sentir assim, Camila contou-me que conhece alguns não descendentes que o sentem e outros que de fato enfrentaram obstáculos para se inserir nas dinâmicas relacionais deste colégio.

Da parte dos profissionais da escola, pude saber por meio de conversas informais com duas professoras que essa dificuldade de inserção de não descendentes no colégio era mais frequente em tempos passados, embora ainda ocorra. Por mais que eu considere essa questão relevante, não pude aprofundar a pesquisa nessa direção e por isso opto apenas por pontuá-la.

Como as pessoas, as classes também tinham perfis bastante díspares: o terceiro colegial é composto por cerca de 14 alunos divididos em pequenos grupos que parecem manter poucas relações entre si, enquanto que no segundo ano, as relações eram mais fluídas, sendo difícil delinear grupos de amigos bem delimitados: todos parecem interagir entre si. Por esse motivo, o segundo ano é bastante admirado pelos alunos do primeiro, uma sala visivelmente dividida em dois: o pessoal que senta próximo às janelas e é mais falante e o pessoal que senta próximo à porta e participa menos ativamente das aulas; são estes que exemplificam a diferença que Débora Takara postulou no capítulo anterior entre “japoneses, japoneses” e mestiços: os primeiros, ao contrário dos últimos, não costumam sair da sala durante o intervalo. É preciso notar, porém, que no grupo da porta figuram também não descendentes, os quais são igualmente “quietinhos”.

No primeiro colegial, dentro dessa divisão maior há, claro, divisões internas, sendo que o grupo da janela é de fato composto apenas por 6 pessoas (três mestiças, Lorena, uma “japonesa pura” que pela forma como se comporta se passa por mestiça, um garoto nipodescendente e outro não descendente), em uma sala de cerca de 16 estudantes. Assim, apesar da divisão da sala, há relações entre pessoas de grupos diferentes. Débora Takara, por exemplo, estava no momento da pesquisa alocada no grupo dos quietinhos, mas transitava entre ambos. Além disso, é preciso dizer que as pessoas que compõe o grupo mais falante por

vezes tomam a iniciativa de interagir com os mais “quietinhos”; no entanto, a maior parte dessas interações tem um tom jocoso.

Se me alongo na descrição do primeiro colegial não é porque passei mais tempo nesta sala do que nas outras, mas porque uma série de fatores, dentre eles destaco o interesse dos próprios alunos, motivou uma inserção bastante diferenciada da pesquisadora nessas classes; assim, se muitos dos alunos do primeiro colegial buscaram participar ativamente de minha pesquisa, o mesmo movimento não se verificou nas outras duas turmas que acompanhei. Por esse motivo minhas observações em relação a este colégio estão largamente influenciadas por esta turma e, particularmente, por Débora Takara, garota que logo nos primeiros dias em que eu estava na escola fez questão de me inserir na dinâmica do lugar.

Se, em geral, os estudantes foram receptivos à minha pesquisa, realizar observação participante em um contexto escolar não foi necessariamente fácil: a posição que eu assumi, sem saber previamente da dinâmica de cada classe, no “mapa de sala” influenciou e muito o modo pelo qual pude ter acesso aos estudantes, visto que, no primeiro colegial, sentar-me perto da janela permitiu acesso privilegiado às interações do grupo mais falante da sala, mas afastou-me também dos mais quietinhos, que sentavam-se no lado oposto. No terceiro colegial isso foi ainda mais problemático, porque não havia uma carteira disponível em meio aos estudantes e, portanto, sentei-me em uma que ficava deslocada do corpo da sala, fator que, acredito, ampliou a percepção dos alunos de que estavam sendo observados.

Como agravante colocava-se ainda a posição ambígua que eu ocupava no esquema de entendimento deste colégio e isso não só no entender dos alunos do terceiro ano, mas também no de todas as pessoas da escola (o que inclui professores e funcionários). Explico: sendo uma figura marginal, sem um lugar definido na estrutura escolar, eu oscilava frequentemente entre as posições de aluna, professora e estagiária, o que se por um lado me deu acesso e abertura em relação a ambientes e pessoas diversos – transitei entre a sala dos professores e a ida a restaurantes com os alunos -, por outro gerava uma posição complicada de administrar no curso da realização da pesquisa, pois eu era frequentemente acionada por ambos os lados, sendo que tive de educadamente recusar uma maior interação com os professores de modo a privilegiar o convívio com os alunos (meu foco de análise) enquanto que aos olhos destes, eu por vezes figurava como alguém a quem eles deviam certo respeito por estar próxima do polo dos professores101.

101 Além de ser mais velha, universitária e de ter livre trânsito com os professores, alguns dos quais me incluíam

Assim, por mais que alguns alunos interagissem livremente comigo, fazendo inclusive piadas sobre a minha pessoa ou comentando comigo sobre professores chatos, bebidas e cola nas provas, por outro, alguns se sentiam constrangidos quando, em meio a aula, eu olhava para aqueles que conversavam baixinho. Por mais que eu fizesse esse movimento na tentativa de ter acesso a esse tipo de interação, aos olhos dos alunos que conversavam, isso possivelmente era visto como uma espécie de repreensão, o que fazia com que imediatamente interrompessem a comunicação.

Outra problemática que enfrentei neste ambiente de pesquisa foi a tensão entre favorecer minha interação com os alunos e não atrapalhar as aulas, algo particularmente difícil quando um tema de meu interesse surgia em uma conversa paralela logo ao meu lado, ou também quando era incluída neste tipo de comunicação.

Ainda sobre a posição marginal que ocupei, cabe indicar que se Débora Takara mobilizou-se para incluir-me na dinâmica da escola, isso não se deve somente ao fato de ser uma pessoa bacana, mas possivelmente ao fato de ter se identificado comigo justamente nesta que era a minha característica mais evidente (a marginalidade), afinal, Débora havia ingressado naquele ano na escola e ainda lutava para encontrar o seu lugar na nova sala.

Igualmente, acredito que outras pessoas se aproximaram de mim por esse e outros vieses, muitos dos quais escapam à minha compreensão. Servem, contudo, para alertar a nós, antropólogos, de que se agimos em campo mobilizados por um interesse – a nossa pesquisa -, o qual se cruza com mil outros aspectos, nossos interlocutores também o fazem.

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