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3. Contexto

3.2 A sombra do passado estende-se sobre os nossos dias

Na década final do século XIX e na década inicial do século XX a multidão impôs-se como objeto de estudo. Autores como Gustave Le Bon (A psicologia das multidões, 1895) e Gabriel Tarde (L’Opinion et la foule, 1901) estudam a forma como um conjunto de pessoas pode ser levada a unir-se em torno de uma emoção, um herói ou uma ideia. A Primeira Guerra Mundial vê o aparecimento da propaganda como arma de guerra:

“A imagem de um general a presidir a uma reunião editorial na hora mais terrível de uma das maiores batalhas da história parece-se mais com uma cena do Soldado de Chocolate que com uma página da vida real. E no entanto sabemos, em primeira mão, pelo oficial que editava os comunicados de guerra franceses que essas reuniões faziam regularmente parte do esforço de guerra; que, nos piores momentos de Verdun, o general Joffre e o seu gabinete se reuniam e discutiam os substantivos, adjetivos e verbos que seriam publicados nos jornais da manhã seguinte.”32 (Lippmann, 1921:27)

E Lippmann assume:

“Sem nenhuma forma de Censura, a propaganda, no sentido estrito da palavra, é impossível. Para levar a cabo uma propaganda é preciso que haja alguma barreira entre o público e o acontecimento. O acesso ao contexto real deve ser limitado antes que alguém possa criar um pseudo-contexto que lhe pareça sensato ou desejável. Porque se quem tem acesso direto (a um acontecimento) pode interpretá-lo erradamente, ninguém pode decidir como o vão interpretar, a menos que possa decidir o que podem ver.” 33 (id. 32,33)

A institucionalização da Censura em Portugal corresponde assim a uma visão política que atribui aos media o poder de influenciar e manipular os que a eles têm acesso.

32 “The picture of a general presiding over an editorial conference at the most terrible hour of one of the great battles on history seems more like a scene from the Chocolate Soldier than a page from life. Yet we know at first hand from the officer who edited the French communiqués that these conferences were a regular part of the business of war; that in the worst moments of Verdun, General Joffre and his cabinet met and argued over the nouns, adjectives, and verbs that were to be printed in the newspaper the next morning.”

33 “Without some sort of censorship, propaganda in the strict sense of the word is impossible. In order to conduct a propaganda there must be some barrier between the public and the event. Access to the real environment must be limited, before anyone can create a pseudo-environment that he thinks wise or desirable. For while people who have direct access can misconceive what they see, no one else can decide how they shall misconceive it, unless he can decide where they shall look, and at what.”

Essa ideia, desenvolvida a partir de estudos sobre a propaganda e a sociedade de massas, da existência de uma relação direta entre a exposição às mensagens dos media e o comportamento daqueles que as recebiam ficou conhecida como “teoria hipodérmica dos efeitos”. (Wolf, 1999 [1985]: 9)

Ignoro, naturalmente, se Salazar a conhecia ou não, mas a sua visão dos media coincidia com ela, como se conclui da forma como se refere ao jornalismo, em entrevista a António Ferro, já atrás referida.

Para lá da aplicação da censura aos meios de comunicação, Salazar restringiu também a sua presença nesses meios, sendo raras as suas entrevistas ou aparições em público.

O seu sucessor, Marcelo Caetano, vai alterar essa relação com os media.

Logo em 27 de Setembro de 1968 anuncia que, “para enfrentar os ciclópicos

trabalhos” que o esperam, necessita do apoio do país, que “será solicitado através da informação tão completa e frequente quanto possível procurando-se estabelecer comunicação desejável entre o Governo e a Nação” (apud Cádima, 1996: 368)

O que não impediu que, a 14 de Outubro, o gabinete do Secretário de Estado da Presidência do Conselho emitisse as “Normas a observar pela Direção dos Serviços de

Censura”, atualizando normas datadas de 1960 e 1961. (id.:367)

Em Janeiro de 1969, Marcelo Caetano inaugura na RTP um tempo de antena a que chamou Conversas em Família. Nas palavras do Presidente do Conselho foi patente a sua confiança no poder dos media:

“(...) Nem sempre a circunstâncias proporcionam ao Chefe do Governo oportunidade para, num discurso, esclarecer o seu pensamento ou elucidar o público sobre problemas correntes ou objetivos a atingir. Mas os atuais meios de comunicação permitem conversar diretamente com as pessoas, sem formalismos, sem solenidades, sempre que seja julgado oportuno ou necessário.” 34

Falar de “conversar diretamente com as pessoas” quando o que se passava era uma comunicação assimétrica, de sentido único, não era surpreendente num sistema baseado na existência de censura, mesmo rebatizada de “exame prévio”. Mais curioso é que, aparentemente, nem a Rádio Televisão Portuguesa nem os responsáveis da propaganda oficial tenham suspeitado que a mensagem do Presidente do Conselho podia ter o efeito contrário ao

desejado – o que revelava alguma desatenção aos estudos entretanto efetuados no campo da comunicação.

Nesse final da década de sessenta do século passado, há muito que tinha sido posta em causa a “teoria hipodérmica dos efeitos”. Depois de, em 1948, Lasswell ter definido o ato comunicacional como implicando quatro interrogações, “quem? diz o quê? através de que

canal? com que efeito?”, diversos estudos sobre os efeitos tinham revelado que estes não eram,

forçosamente, únicos, dependendo de quem recebia a mensagem e em que condições a recebia. Na sequência dos estudos sobre a receção, o modo como os grupos em que se inseriam influenciava a forma como o indivíduos recebiam a informação que lhes era dada deu origem a uma nova teoria, dita “dos efeitos limitados”.

“A audiência revelava-se intratável. As pessoas decidiam por si se deviam ou não escutar. E mesmo quando escutavam, a comunicação podia não provocar qualquer efeito ou provocar efeitos opostos aos previstos. Os investigadores eram obrigados a desviar progressivamente a sua atenção da audiência a fim de compreenderem os indivíduos e o contexto que a constituíam” (Bauer, apud Wolf, 1999: 11,12).

Nesse mesmo ano de 1969 em que Marcelo Caetano começava as suas “Conversas em

Família”, Katz sublinhava o erro cometido nas primeiras investigações:

“A audiência era concebida como um conjunto de classes etárias, de sexo, de casta, etc., mas dava-se pouca atenção às relações que lhe estavam implícitas ou às ligações informais. Não porque os estudiosos de comunicações de massa ignorassem que os componentes do público tinham família e grupo de amigos, mas porque se considerava que nada disso influenciava o resultado de uma campanha propagandística, ou seja, as relações informais entre as pessoas eram tidas irrelevantes para as instituições da sociedade moderna.” (apud Wolf, 1999:10, 11).

O curioso é que, ao mesmo tempo que agia como se acreditasse que o simples facto de se dirigir à população através da televisão podia garantir a perenidade da política do Estado Novo, estabelecendo um corte com a atuação de Salazar não só pela viagem à Guiné, Angola e Moçambique, em Abril de 1969, mas também pela forma como a RTP cobre exaustivamente essa viagem, ou a que efetua ao Brasil, em Julho seguinte, Marcelo Caetano mostrava ter da sociedade de massas uma visão próxima da descrita por Ortega y Gasset: uma sociedade em que os indivíduos “se preocupam apenas com o seu bem-estar e, ao mesmo tempo, não se

“Egoísmo materialista” contra “espírito de serviço” e “sacrifício”. Na sua última “Conversa em Família”, a 28 de Março de 1974, pouco após o levantamento do Regimento de Infantaria 5, das Caldas da Rainha, o Presidente do Conselho pensava, provavelmente, na revolta militar contra a guerra colonial que se prolongava há 13 anos:

“A vida em sociedade implica numa atitude de solidariedade e de colaboração que exige dádiva de si próprio, sacrifício de interesses, espírito de serviço, integração em planos coletivos. Mas o egoísmo materialista desfaz tudo isso. Nega-se ao sacrifício, escusa-se a servir o próximo, aborrece a obediência às leis e a quem as executa, instaura a indisciplina em todos os setores, recusando-se a acatar outra norma que não seja a das conveniências pessoais de cada um.”

Nessa “Conversa em Família”, Caetano tentava, como o general Joffre em Verdun, defender com palavras a situação difícil em que o regime se encontrava. Opor a sua versão às informações que, apesar da Censura, surgiam por outras formas: as que classificou de “fantasias”, “mexericos” e “boatos”:

“Há por aí frequentes queixumes de que não temos por cá informação completa. Nada, porém, do que de verdadeiro se passa e que ao público interesse deixa de ser trazido ao conhecimento dele. Mas não é informar bem o público deitar mão a todos os mexericos, a todas as intrigas, a todas as fantasias, ouvidas nas mesas dos cafés ou a algum intrujão imaginativo, para as lançar cá para fora como grandes e sensacionais revelações.

Inventam-se tremendas oposições entre pessoas que mutuamente se respeitam e de comum acordo atuam; divisões internas onde só reina harmonia de vistas; conluios suspeitos em casos em que estão perfeitamente definidas as posições e assumidas as responsabilidades...

Não fica informado o público que escuta mentiras. O facto de o boato ser propalado por jornais ou por emissoras não lhe tira o caráter de boato.”

As palavras não puderam, no entanto, conter a realidade: menos de um mês depois, a 25 de Abril, um golpe militar executado por capitães, mas aceite pelos mais influentes generais, punha fim ao Estado Novo.