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3. Contexto

3.3 As dores de crescimento do jornalismo português

Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.

Karl Marx O 18 de Brumário de Luís Bonaparte (1851-2) 35

Este contexto de 48 anos de Censura e de um atraso de quase quatro décadas no debate profissional sobre o jornalismo em Portugal – os que separam o Relatório Hutchins,

Uma Imprensa Livre e Responsável (10 de Dezembro de 1946), do 2º Congresso dos Jornalistas Portugueses, dedicado à Deontologia (12 a 15 de Novembro de 1986) – marcou, naturalmente, o jornalismo português.

As redações não podiam deixar de refletir as divisões que surgiam na sociedade portuguesa, na sua passagem do regime de partido único para o pluripartidarismo e de um “presidencialismo de primeiro-ministro” (expressão usada pelo próprio Marcelo Caetano para definir o regime salazarista) para um semi-presidencial. Os partidos viam os jornalistas que lhes eram afetos como piões na luta pelo poder e os próprios jornalistas tinham dificuldade em traçar a linha entre a profissão e a militância.

A verdade é que, quando se deu o 25 de Abril, havia já, em diversas redações do país, jornalistas vindos das fileiras da oposição ao regime deposto, nomeadamente do movimento estudantil (Correia & Baptista, 2007:70) que, ao longo da década de sessenta e início da de setenta, por diversas vezes se levantou contra aquele, em defesa das liberdades cívicas.

É difícil contabilizar o número desses jornalistas antifascistas, já que não apenas alguns, mais cuidadosos, escondiam as suas posições, como nessa altura só os jornalistas da Imprensa Diária tinham carteira profissional e estavam registados no Sindicato. Mas, quase inexistentes nos jornais alinhados com o regime, na Emissora Nacional ou na RTP, eram já em número significativo nas redações dos vespertinos – República, Diário de Lisboa, A Capital – de algumas revistas – Vida Mundial, Século Ilustrado, Flama – e em jornais regionais ou locais como o Notícias da Amadora, o Jornal do Fundão ou o Comércio do Funchal.

Alguns, embora em pequeno número, tinham mesmo passado pelas prisões do regime, integrados em movimentos e partidos por este considerados ilegais. Mais importante que o

número era, no entanto, a solidariedade gerada em torno destes e que, provinha, por vezes, mesmo de diretores e administradores dos órgãos de informação. Lembro-me da resposta de um dos administradores da Renascença Gráfica, Lopes do Souto, quando, recém-saída de Caxias, lhe telefonei a pedir emprego: “Saiu da cadeia, não foi? Pois venha para cá, que eles

prenderam há pouco um dos nossos jornalistas.”

Esse grupo de jornalistas que, até ao 25 de Abril, mau grado as divisões ideológicas, se mantinha unido frente ao inimigo comum, parece passível de integrar no que Thomas Brante (in Burrage, Torstendahl, 1990: 83) define como “profissões políticas”, aquelas em que a competência é dada, não por um grau académico, mas pelo conhecimento de algo a que chama “tecnologia política”, uma competência que transcende as divisões entre departamentos e mesmo entre partidos.

Licenciados ou com formações académicas interrompidas (à época, uma habilitação elevada no conjunto nacional36), com uma experiência política granjeada nas Associações de Estudantes e nos meios da Oposição Democrática ou Comunista, esses jovens jornalistas tinham aprendido a fazer análise de situações e a pensar e agir com autonomia crítica. Preparados, portanto, para enfrentar todas as tentativas de limitação dessa autonomia, vão, após o 25 de Abril, dividir-se pelas diversas forças políticas e protagonizar várias das lutas travadas nos órgãos de informação, nos anos de brasa de 1974 e 1975.

Alguns exemplos retirados das entrevistas recolhidas no livro Ser Jornalista em

Portugal - perfis sociológicos permitem recordar o que foram esses tempos em que a

informação estava muitas vezes ligada à militância partidária. O episódio mais curioso é, talvez, o narrado por Joaquim Furtado:

“Em 75, o Rádio Clube era muito conotado com o PCP – embora, na verdade, dos 15 jornalistas só três fossem do, ou próximos do, PCP. O grupo que não pertencia àquele partido considerou dever chamar a atenção dos ouvintes para a parcialidade de certos noticiários – o que fez através de um texto escrito por Adelino Gomes. Logo os jornalistas ligados ao PCP pediram tempo de antena para responder. E, durante um dia, os ouvintes do Rádio Clube tiveram dois grupos de jornalistas a explicar as suas posições. Isto dá um pouco a ideia do clima que se vivia.” (in Andringa, 2011d:409)

36 Bastará referir que, em 1971, havia 25.726 inscritos no 3º ciclo liceal e ensino técnico profissional, e o número de alunos inscritos no ensino superior público e privado era de 49.461. (Barreto, 2000)

Outros confrontos eram menos pacíficos. Carlos Pinto Coelho viu-se forçado a despedir-se do Diário de Notícias para evitar o saneamento por razões ideológicas:

“Ainda hoje me confrange a memória daqueles tumultuosos dias de Abril de 1975 no Diário de Notícias, regidos pelo jornalista Luís de Barros (diretor) e por José Saramago (diretor-adjunto) e que resultaram no “saneamento” de uma vintena de jornalistas. Nas vésperas dessas inquisitórias expulsões fui chamado ao gabinete de Barros (...) e ali solenemente convidado a escrever uma carta a despedir-me da empresa. Que era melhor assim… livrava-me do carimbo de “saneado”… veja lá as consequências disso em pleno processo revolucionário… E estendia-me uma folha de papel com um texto já redigido, à espera de assinatura. Deus ou o Diabo pegou na minha mão direita e assinei aquilo.” (in Rodrigues, 2011a: 242)

No 1º Congresso dos Jornalistas Portugueses (Janeiro de 1982), José Manuel Barata- Feyo e Miguel Sousa Tavares, em comunicação intitulada “Mea culpa”, acusaram os jornalistas militantes de cumplicidade no controlo dos meios de comunicação pelos partidos:

“A verdade – dura verdade – é que para controlar a informação como o faz, o poder – fosse ele gonçalvista, socialista ou aliancista – nunca precisou de recorrer aos métodos primitivos dos coronéis sul-americanos ou de colocar um comissário político de vigia aos telexes. Bastou-lhe a instrumentalização e a partidarização das redações, feitas – repetimos – com a cumplicidade dos jornalistas.”

Na referida comunicação, Barata-Feyo e Sousa Tavares opunham “o jornalismo

independente e o jornalismo reduzido ao “engagement” político”, defendendo “a incompatibilidade entre o jornalista e o propagandista.” (1982: págs. 153 -158)

Mas há quem defenda que, onde aqueles dois jornalistas viam cumplicidade na instrumentalização de redações e confusão entre jornalismo e propaganda, havia apenas militância cívica. É o que explica João Paulo Guerra sobre o tempo em que trabalhou no jornal Diário, afeto ao Partido Comunista Português, de que era militante:

“O Diário era feito pelos jornalistas de O Diário, que eram militantes ou simpatizantes do PCP. O Diário tinha muito bons jornalistas, alguns dos quais estão ainda hoje nos principais e mais diversos meios de comunicação e até em lugares de destaque. A direção e as chefias não iam à direção do PCP para porem o visto. Enquanto trabalhei lá, nunca ninguém me disse o que é que eu podia escrever nem nunca ninguém me disse o que é que eu não devia escrever ali. Mas acho

que isso se tornava relativamente fácil pelo facto de que ali eu podia escrever aquilo que de facto tinha vontade de dizer.” (in Gomes, 2011a: p.385)

Um dos mais respeitados jornalistas portugueses37, Mário Mesquita, recordaria, aliás, que “em todos os países que conheceram processos de transição da ditadura para a

democracia a atitude dos jornalistas (...) começou por ser parcial, militante, defensora, pelo menos, da causa da democratização.” (2002)

O próprio Mesquita só em 1978, quatro anos depois do 25 de Abril e três meses após ter sido nomeado diretor do estatizado Diário de Notícias, considerou necessário afastar-se da vida partidária:

“Em 1978, após três meses de exercício, verifiquei, na prática, a impossibilidade de

ser, em simultâneo, diretor de jornal (para mais de "serviço público"), dirigente partidário e deputado à Assembleia da República.” - escreveu, no artigo acima citado, inserido no jornal

Público de 10 de Fevereiro de 2002.

Vindos de um regime de Censura, em que dificilmente podiam assumir a responsabilidade final dos seus atos de comunicação, fortemente influenciados pelas condições de controlo em que até aí tinham trabalhado, os jornalistas portugueses chegam com dezenas de anos de atraso às discussões já comuns nas democracias ocidentais sobre o papel dos meios de comunicação de massa e dos seus profissionais.

Mário Mesquita distingue três fases nos primeiros vinte anos de jornalismo pós-25 de Abril: a primeira, de 1974 a 1976, teria como palavras-chave "militantes e ideologias"; a segunda, entre 1976 e 1985, "porta-vozes e instituições" e a terceira, entre 1985 e 1995, "profissionais e mercado".

“No período de consolidação das instituições democráticas começam a separar-se os campos e o profissionalismo emerge à tona de água. Nessa fase, muitos jornalistas-partidários (ou "revolucionários") transformam-se em jornalistas-profissionais. (...) O profissionalismo jornalístico, enquanto "ideologia corporativa" dominante, impõe-se após a adesão de Portugal à Comunidade Europeia e, sobretudo, no período dos governos de Cavaco Silva, após o movimento das rádios livres, as reprivatizações de jornais e a abertura da televisão a operadores privados. O

37 Recebeu, em 1987, o prémio Artur Portela, atribuído pela Casa da Imprensa, pela sua carreira profissional e, em 1998, o Prémio Gazeta de Mérito, concedido pelo Clube dos Jornalistas, pelo seu trabalho como Provedor dos Leitores do Diário de Notícias.

acento tónico na ideia da "profissão" ajusta-se a uma maior autonomia (em face do poder político) do "campo mediático". (Mesquita, 2002)

Segundo Jacinto Godinho, um dos primeiros jornalistas portugueses doutorados em Ciências da Comunicação, a Universidade foi, em grande parte, impulsionadora dessa autonomia:

“Estávamos (os estudantes de jornalismo) cheios de prevenção contra o poder político, a história da governamentalização era muito discutida na altura, foi um dos grandes temas de debate nos anos 80, na cena pública portuguesa. A Faculdade deu-nos toda a informação para isso.” (in Andringa, 2011 b: 321)