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2. Enquadramento Conceptual

2.2 Responsabilidade Social

“Para o jornalista, liberdade e responsabilidade são indivisíveis.

A liberdade sem responsabilidade convoca distorção e outros abusos. Mas na ausência de liberdade não pode haver exercício da responsabilidade.”

(Relatório MacBride, 1980).

Foi nos Estados Unidos que, em plena Segunda Guerra Mundial, a Comissão Sobre Liberdade de Imprensa – criada em 1942 por Henry Luce, um dos fundadores da revista Time – veio chamar a atenção para a necessidade de que a Imprensa, se deve ser livre, tem de ser também responsável.

A Comissão – também conhecida pelo nome do seu presidente, Robert M. Hutchins, reitor da Universidade de Chicago – publicaria em 1947 o resultado do seu trabalho, sob o título A Free and Responsible Press.

A importância que atribuía à Imprensa estava bem patente na epígrafe escolhida, retirada de uma carta do segundo presidente dos Estados Unidos da América, John Adams, para o senador James Lloyd:

“Para que um dia seja melhor a condição humana, filósofos, teólogos, legisladores,

políticos e moralistas hão-de verificar que o problema mais difícil, perigoso e importante que têm para resolver é a regulação da Imprensa. A humanidade já não pode ser governada sem a Imprensa – nem, atualmente, com ela.”17 (Adams:1815 in Adams:1856)

Criada no âmbito da crítica a uma comunicação social “cujo comportamento era

considerado subserviente às grandes empresas e aos anunciantes, resistente à mudança social, superficial e sensacionalista, contrária à moral pública e desrespeitador da intimidade da vida privada” a doutrina da responsabilidade social do jornalista defendia que

este devia “fornecer a informação necessária ao debate político, esclarecer o povo acerca

das suas opções políticas [e] reivindicava a necessidade de um jornalismo explicativo, de forma a contextualizar os factos, bem como a transformação dos jornais em espaços de debate e crítica, abertos ao pluralismo de opiniões” (Mesquita, 2003:270, 271).

17 “If there is ever to be an amelioration of the condition of mankind, philosophers, theologians, legislators, politicians and moralists will find that the regulation of the press is the most difficult, dangerous and important problem they have to resolve. Mankind cannot now be governed without it, nor at present with it.”

Considerando a liberdade de Imprensa condição sinae qua non da liberdade politica, a Comissão Hutchins lembra que todos os direitos impõem deveres e que, ao menos do ponto de vista da moral, a liberdade de expressão não inclui o direito à mentira, ao fomento do ódio e da suspeita. Admite, no entanto, o direito ao erro – mas não ao erro deliberado ou irresponsável. A sociedade necessita da Imprensa que lhe forneça um relato verdadeiro, completo e inteligente dos acontecimentos do dia, devidamente contextualizados; um fórum de troca de críticas e comentários; um retrato dos diversos grupos sociais, das suas opiniões e atitudes; que lhe apresente e clarifique os objetivos e valores da sociedade e lhe dê total acesso ao conhecimento.

Para que a Imprensa cumpra essa sua missão, alertava a Comissão, terá que ter em conta que “o relato de um facto isolado, mesmo se verdadeiro em si, pode ser enganador e, de

facto, falso”. E concluía que “não basta reportar os factos com verdade, é preciso contar a verdade sobre os factos.”

Dada a importância da Imprensa para o conjunto da sociedade, os membros da Comissão defendiam a sua regulação, a bem do interesse público:

“A necessidade do consumidor de ter um alimento mental adequado18 e não contaminado é tal que ele tem o dever de o conseguir e, por esse dever, o seu interesse adquire a estatura de direito. Torna-se legítimo falar do direito moral dos homens às notícias que pode usar. E como o consumidor já não é livre de não consumir, mas só pode receber aquilo de que necessita através dos órgãos de informação existentes, proteger apenas os proprietários desses órgãos já não basta para proteger automaticamente o consumidor e a comunidade. Deve ser repensada a política de laissez faire neste campo.”

Embora tratasse sobretudo da responsabilidade social dos órgãos de informação, a Comissão não ignorou a responsabilidade individual do jornalista e recordou que, sendo o repórter o primeiro elo na cadeia de responsabilidades, tal exige que seja cuidadoso e competente, prefira a sua própria observação ao conhecimento por ouvir dizer e que saiba identificar as fontes mais fiáveis, quais as perguntas a fazer, o que observar, que dados reportar. E sublinhou que o jornalista deve, na medida do possível, separar os factos da

18 Recordem-se, como curiosidade, as palavras de Oliveira Salazar, em 1938, já anteriormente referidas: “O jornal é o alimento espiritual do povo, e deve ser fiscalizado como todos os alimentos.”

opinião que tenha sobre os factos – embora sem ignorar que “não há facto sem contexto nem

relato factual que não seja colorido pelas opiniões do repórter”.

A noção de responsabilidade social dos jornalistas não é pacífica. “O discurso

tradicional sobre a função social do jornalista já não agrada às jovens gerações”, considera

Michel Mathien (apud Mesquita, 2003:269). E não apenas às mais jovens, acrescenta Mesquita: “Muitos jornalistas, cansados da carga ideológica dos anos 70 e 80, concluíram

que mais valia assumir realisticamente o contrato com a empresa mediática e esquecer as longínquas obrigações perante a sociedade” (id.).

Em Portugal, a institucionalização da Censura pela Constituição de 1933 manteve por muito tempo os jornalistas afastados desses debates. Preocupados em fazer escapar o que escreviam ao lápis azul dos censores, os jornalistas portugueses não tinham condições para discutir livremente a ética da sua atividade.

Bastará ler o livro de Fernando Correia e Carla Baptista, Memórias Vivas do

Jornalismo (2010) para verificar que o termo “deontologia” não fazia parte do vocabulário dos jornalistas:

“Os termos ética e deontologia não se usavam?”, perguntam os autores a Acácio Barradas, que responde: “Não, só ouvi falar disso mais tarde. (...) O clique que operou em

mim essa transformação radical só se verificou de facto em Maio de 68, quando em Lisboa deparei com esta frase na porta de um casal de jornalistas meus amigos: ‘Nunca escrevas nada que não possas assinar.’ Esta frase fez mais por mim do que mil sermões.” (Correia e

Baptista, 2010: 48.)

No entanto, e embora as condições de exercício da profissão em tempo de ditadura não permitissem aos jornalistas portugueses guiarem-se pelo seu próprio Código Deontológico, em 1973 foi preparado um Anteprojeto, em cujo Preâmbulo era visível a noção dessa responsabilidade social: “O direito à informação materializa-se através de jornalistas

que assumam as consequências dos seus atos e omissões, segundo normas de idoneidade profissional que apliquem a cada caso de acordo com o que a sua consciência lhes ditar. Decorre daqui que a deontologia profissional pressupõe a responsabilidade do jornalista, a qual só existe quando e onde existir liberdade” (Pina, 1997: 43).

Só na sequência da liberdade reconquistada a 25 de Abril de 1974 surge, dois anos depois, o primeiro Código Deontológico dos Jornalistas Portugueses. Nele se proclama que o jornalista deve esforçar-se “por contribuir para a formação da consciência cívica e da

personalidade moral dos seus concidadãos, bem como para o desenvolvimento da cultura e da capacidade crítica do povo português, e não fomentar de qualquer modo maus instintos ou sentimentos mórbidos, tratando os assuntos escabrosos com respeito pela consciência moral da coletividade”. (Pina, 1997:138)

Em 1983, opondo-se às ideias ultra-liberais, segundo as quais o jornalista seria simplesmente responsável perante os proprietários do órgão de informação em que trabalha, um grupo de organizações profissionais de jornalistas, reunido em Paris sob os auspícios da UNESCO, defende, num texto que se pretendia plataforma comum e fonte de inspiração para os diferentes Códigos de Ética19, que “a informação no jornalismo é considerada um bem público e não uma mercadoria, o que significa que o jornalista partilha a responsabilidade pela informação transmitida e deve por isso prestar contas não só aos que controlam o meio em que trabalha mas perante o grande público, incluindo os diversos interesses sociais. A responsabilidade social do jornalista exige que ele ou ela atuem, em todas as circunstâncias, de acordo com a sua própria consciência ética” (Nordenstreng e Topuz, 1989:310)

O atual Código Deontológico dos jornalistas portugueses20 apela também para a consciência dos profissionais. O Artigo 5º estipula que “O jornalista deve assumir a

responsabilidade por todos os seus trabalhos e atos profissionais” e “recusar atos que violentem a sua consciência.”

Essa referência à “recusa de atos que violentem a sua consciência” lembra que, ainda que se não deva omitir a responsabilidade social dos proprietários dos órgãos de informação, os jornalistas, mesmo assalariados, mantêm uma margem de decisão suficientemente ampla para que possamos falar da sua “responsabilidade social”, do seu compromisso com o público.

Para Mesquita, essa “responsabilidade social” incide, antes de mais, “sobre a

construção da agenda noticiosa, os métodos usados no inquérito jornalístico e as formas de expressão a que recorre na comunicação”, não podendo o jornalista ser desvinculado “da

19 International Principles of Professional Ethics in Journalism 20 Acessível em http://www.omirante.pt/jornal/codigo.asp

obrigação de calcular os possíveis efeitos sociais de certos ‘atos de palavra’, nem de ponderar os processos utilizados na condução dos inquéritos ou a linguagem usada no relato ou no comentário jornalístico” (Mesquita, 2003: 274).

Recorro a três casos para mostrar como pode por vezes ser complexo calcular os possíveis efeitos e escolher o melhor método de relatar casos problemáticos:

1985. Num campo de prisioneiros iranianos no Iraque, o diretor aponta-me um jovem preso: “Vê? Tem 14 anos. É uma das crianças que Khomeini mobiliza para lutarem contra

nós.” Pergunto ao jovem se não se importa que o entreviste. Diz-me que não, mas escolhe

comigo o lugar da entrevista: longe dos militares iraquianos e tendo por fundo arame farpado. Estende-me a sua identificação. A data de nascimento parece confirmar a sua pouca idade, mas ele insta-me a uma maior atenção: “Olha melhor! Não vês que foi alterado? Eles querem

provar que o Irão envia crianças para a guerra. Mas eu tenho 17 anos!” Conta-me então que

se ofereceu como voluntário, quando o Exército foi à sua escola recrutar jovens para a guerra. E que, chegado à frente de combate, teve medo e fugiu, voltando para casa dos pais. Preso como desertor, foi reenviado para a frente. Disse-me: “Sou contra Khomeini, quando sair hei-

de combatê-lo. Mas o que os iraquianos dizem sobre as crianças é falso. Diz isso no teu país!”

Que fazer com esta entrevista? Exibida na RTP, seria naturalmente vista pelos diplomatas iraquianos em Lisboa, e poder-lhe-ia acarretar graves perigos, quiçá a morte. Não a passar seria de algum modo traí-lo, já que tinha sido evidente o seu desejo de denunciar a propaganda iraquiana, sem ignorar os perigos que corria. A forma como conduzira a entrevista mostrava bem que estava plenamente consciente do que fazia. Hesitei muito. Acabei por achar que ele desejava e merecia que eu a exibisse. Ainda hoje não sei se e como terá pago a sua coragem.

Joaquim Furtado contou-me dilemas muito semelhantes:

“Eu fui (à Guiné-Bissau) fazer uma reportagem no âmbito de uma série que pretendia mostrar as ex-colónias 10 anos depois das independências. Tinha havido o golpe de Estado e havia vários militares presos, acusados de participação no golpe. Pedi autorização para ir à prisão filmar. Pensei muito no que fazer. Mas dar a informação de que estavam presos, era, em si mesmo, importante. Era também uma forma de verificar se estavam vivos – e, coisa em que acho que um

jornalista tem de pensar, filmá-los era vincular o poder a mantê-los vivos: não podiam desaparecer (e havia rumores de desaparecimentos). Resolvi que sim, devia filmar. Mas não estava tudo resolvido. Era preciso decidir como filmar. Não me autorizaram a ir às celas, traziam-nos a um pátio. Aceitei, porque isso me permitia conseguir o que achava essencial. E depois a questão era: pergunto-lhes alguma coisa? O quê? Foi uma reflexão constante. Se lhes perguntasse se eram bem tratados e dissessem que não, podiam sofrer as consequências. Então decidi algo que continuo a achar que foi a opção aceitável: não perguntei nada individualmente. Atirei a pergunta para o ar: ‘Estão a ser bem tratados?’ Se algum quisesse podia responder. Uma vez que eram oficiais, algum deles até poderia querer fazer alguma declaração sobre as acusações que lhe faziam e aquela seria uma oportunidade. Quem respondesse estava em condições de medir as consequências disso.

Foi o que fiz e não fiz mais perguntas. Tinha a noção de que alguém que está preso nunca é livre de responder e nunca podemos saber se a resposta que dá é verdadeira ou falsa, se mente para se defender ou se diz a verdade e paga as consequências. Enquanto eu venho embora, faço o filme e até ganho um prémio, que foi o que aconteceu. Não sei se hoje faria exatamente assim. Nessa altura essas coisas ainda não tinham tido grande discussão – mas, na medida dos recursos que tinha, equacionei os problemas e as opções.” (in Andringa, 2011d: 421)

Em outro caso relatado por Furtado, a veemência da pessoa que entrevistava fê-lo pensar que talvez esta não tivesse “a noção exata do alcance das suas declarações na

televisão e das possíveis consequências”, pelo que optou por moderá-la: “Podia ter aproveitado, pensar ‘isto é ótimo, quero lá saber o que é que acontece depois’, mas não fui capaz. Acho que o jornalista tem de pôr essa questão e ver onde é que está a fronteira entre aquilo que apenas serve para o valorizar enquanto jornalista, à reportagem que está a fazer, e aquilo que na verdade é mesmo necessário, mesmo que outra pessoa corra riscos.” (id.)

Em qualquer destes casos, a opção que tomássemos podia pôr em risco a vida de outra pessoa. E isso era algo que tínhamos de ter em conta, ainda que, como sugere Furtado, à custa de menor brilho da reportagem que preparávamos.

E, embora Monique Hirschhorn escreva que “em Sociologia, o termo responsabilidade

não é um conceito” (in Akoun et Ansart, 1999: 453), uso-o aqui no significado corrente de

“admissão das consequências dos seus atos”, considerando, de acordo com o 4º Encontro Consultivo das Organizações Internacionais de Jornalistas (Paris, 20 de Novembro de 1983),

que há uma “responsabilidade social do jornalista” e que ela nos obriga a avaliar o que fazemos, não apenas do ponto de vista do rigor e da exatidão, mas também do ponto de vista das fontes, dos recetores e dos efeitos que pode produzir.

É certo que, no ritmo cada vez mais frenético em que se trabalha nas redações, pouco tempo nos sobra para a inquietação. Daí que os jornalistas argumentem com a objetividade – “exigência de fidelidade, exatidão e rigor no relato da opiniões e dos factos, reivindicada

pelo discurso jornalístico” (Rodrigues, 2000: 91) – “quase do mesmo modo que um camponês mediterrânico põe um colar de alhos à volta do pescoço para afastar os espíritos malignos”

(Tuchman, 1972, in Traquina, 1993: 75)

Para o fazer, usam rotineiramente alguns procedimentos defensivos, de que Tuchman salienta quatro:

a) A apresentação de possibilidades conflituais. b) A apresentação de provas auxiliares.

c) O uso judicioso das aspas.

d) A estruturação da informação numa sequência apropriada.

A verdade é que os riscos de informar não são negligenciáveis – mesmo sem falar dos jornalistas que morrem em cada ano para o fazer. Os casos que contei mostram, penso, que o jornalista atua muitas vezes “em condições tais que põem à prova a segurança interior como,

porventura, nenhuma outra situação”, porque “não é nada fácil ter de pronunciar-se prontamente, e ao mesmo tempo de forma convincente, sobre todo e qualquer tema que o ‘mercado’ reclame, sobre todos os problemas imagináveis da vida” (Weber, 2000 [1919]: 51-

52).

Com ou sem o cumprimento de rotinas defensivas, nenhum trabalho jornalístico está totalmente livre da subjetividade de quem o produz. Mas, cumprindo essas rotinas, o jornalista pode rejeitar responsabilidade nas consequências do que noticia: “O relato objetivo

apenas requer que os jornalistas sejam responsabilizados pelo modo como fizeram o relato, não por aquilo que relataram”21 (Glasser, 1984).

21 “Objectivity requires only that reporters be accountable for HOW they report, not what they report.”

No “empreendimento político contínuo” que é o jornalismo (Weber, 2000: 55), a fé nas rotinas profissionais é uma tentativa de antecipação das consequências sociais do seu trabalho.