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A expansão assíria: evolução, instrumentos e dialéctica entre guerra e diplomacia

5.1 A subida de Assaradão ao trono da Assíria.

É hoje evidente que Assaradão não era o filho mais velho de Senaquerib. O herdeiro presuntivo original havia sido o malogrado Aššur-nadin-šumi, colocado a

442 SAA II, 6, ls. 410-413: «If you should remove it, consign it to the fire, throuw it to the water, bury it in the earth or destroy it by any cunning device, annihilate or deface it...».

443 SAA II, 11, ls. 5’-6’.

444 SAA II, 6, ls. 405-407: «You shall guard this treaty tablet which is sealed with the seal of Aššur...». 445 A. Ramos dos Santos empreende essa tarefa, fornecendo também um quadro geral das campanhas militares encetadas por Assaradão: SANTOS, Cadmo 1 (1991), especialmente pp. 99-104.

108 reinar na Babilónia e cuja morte, às mãos dos Elamitas no ano de 694 a.C., provocou um recrudescer da violência da guerra que levou à destruição da Babilónia poucos anos depois.446 Contrariando todas as expectativas, Assaradão foi designado herdeiro,

ultrapassando eventuais direitos que os seus outros irmãos pudessem reclamar ao trono. Um documento, conhecido como “Testamento de Senaquerib”, que regista uma dádiva de Senaquerib a Assaradão, é revelador de um pormenor significativo a este respeito. Segundo o texto, o príncipe herdeiro teria recebido um novo nome: «…Esarhaddon, my son, who shall henceforth be called Aššur-etellu-mukin-apli…».447 Este nome, embora

pouco usado por Assaradão nas suas inscrições, significa “Aššur, príncipe [dos deuses] estabelece um herdeiro”.448 O nome Assaradão, Aššur-aha-iddina, “Aššur deu um irmão”, indica que não fora originalmente considerado como uma das primeiras opções na linha de sucessão ao trono. Aliás, parece mesmo ter sido o filho mais novo de Senaquerib. O próprio o afirma nas suas inscrições, relevando, como seria de esperar, o papel das divindades na sua legitimação: «Among my big brothers, I was their little brother. At the command of the gods Aššur, Sin, Šamaš, Bēl and Nabû, Ištar of Nineveh, and Ištar of Arbela, my father and begetter in the assembly of my brothers truly raised my head, saying, “This is my son and successor”. He consulted the gods Šamaš and Adad (…) and they replied with an affirmative, “He is your replacement!”»449

O seu estatuto de herdeiro, mār šarri ša bīt redûti (“filho do rei, da Casa da Sucessão”) foi reforçado por um adē, por meio do qual Senaquerib tornava explícita e vinculativa a sua escolha.450 É o primeiro juramento de lealdade a que Assaradão está ligado, tornando inequívoca a sua designação oficial como sucessor ao trono. O objectivo desse juramento exigido por Senaqueib era proteger o herdeiro e afirmar publicamente, diante dos deuses e dos homens, que a sua escolha recaíra sobre Assaradão: «You shall protect Esarhaddon, the crown prince designate, and the other princes whom Sennacherib, king of Assyria, has presented to you…».451

Todos os Assírios, de alta e de baixa condição, incluindo os seus irmãos, foram convocados por Senaquerib para jurar a sua lealdade ao rei e o seu respeito à designação do príncipe, como transparece nas inscrições de Assaradão: «He honoured their grave

446 Cf. supra, pp. 73-74. 447 SAA XII, 88.

448 Referências à documentação onde este nome surge em PORTER, Images, Power and Politics…, p. 17. 449 BORGER, R., Die Inschriften Asarhaddons, König Assyrien, Graz, 1956, Nin A e F, ep. 2, ls. 8-14 apud PORTER, Images, Power and Politics…, p.18.

450 SAA II, 3.

109 pronouncement (lit. weighty word) [dos deuses] and gathered together the people of Assyria, great and small, my brothers, seed of the house of my father, to one place, and before Assur, Sin, Shamash, Nabû and Marduk (…) he made them take solemn oath, in their name, to secure (lit. guard) my accession to power».452 Desta forma, toda a Assíria, vinculada pelos juramentos e pela ameaça das maldições condicionadas, reconhecia Assaradão como sucessor legítimo do monarca reinante.

Apesar desse juramento solene, a sua nomeação como marû reštu, “filho preeminente”, provocara uma forte contestação entre os seus irmãos mais velhos, que contariam certamente com uma base de apoio muito maior entre as elites assírias453: «They forsook the gods and turned to their deeds of violence, plotting evil. Evil words and deeds, contrary to the will (lit. heart) of god, they perpetrated against me. Unholy hostility they planned behind my back»454. As conspirações, contra ele alimentadas, chegaram mesmo a perigar a sua relação com o pai: conta que foi obrigado a refugiar-se no norte, provavelmente na região de Hanigalbat, para escapar a eventuais tentativas de homicídio.455

Enquanto permanecia assim no exílio, sucede o assassínio de Senaquerib às mãos dos seus filhos, precipitando uma guerra civil456 onde estes se confrontavam, ambicionando chegar ao poder. A população, não obstante estar ligada, por juramento, à decisão sucessória do rei malogrado, viu-se obrigada, voluntária ou coercivamente, a apoiar os rebeldes. Nessas circunstâncias adversas, Assaradão demonstrou uma grande energia, ao deslocar-se imediatamente para a Assíria sem sequer aguardar pela mobilização das suas forças.457 Conta-nos ainda que, ao longo do caminho de regresso à Assíria, expectante pelo confronto que se aproximava, inúmeros desertores se juntaram a ele, considerando-o ainda como o legítimo sucessor de Senaquerib: «Following after me like lambs, they implored my majesty’s favor. The people of Assyria, who had sworn allegiance before me by the great gods, came into my presence and kissed my feet».458 É notório neste discurso a utilização do argumento, fortalecedor da sua

452 ARAB II, 500.

453 Perguntamo-nos se o facto de Assaradão ser filho de Naqi’a/Zakutu, uma mulher de origem semita ocidental, certamente arameia, não terá pesado na aversão alimentada contra si. Naqi’a, de resto, não era a esposa principal de Senaquerib. Consultar MELVILLE, S. C., “Neo-Assyrian Royal Women and Male Identity: Status as a Social Tool” JAOS 124/1 (2004), pp. 37-57; MELVILLE, S. C., The Role of

Naqia/Zakutu in Sargonid Politics (SAAS 9), Helsinki, 1999. 454 ARAB II, 501.

455 PORTER, Images, Power and Politics..., pp. 22-23; LABAT, R., “Asarhaddon et la ville de Zaqqap” RA 53 (1959), pp. 113-118.

456 ARAB II, 502. 457 ARAB II, 503-504. 458 ARAB II, 504.

110 legitimidade, da celebração do próprio adē que Senaquerib instituíra para o associar ao trono. Apesar do recurso a este dispositivo retórico, a verdade é que a memória do juramento, ainda vigente na altura da morte de Senaquerib, poderá ter pesado sobremaneira para a sua aceitação final como rei, pois uma grande parte da população teria, certamente, temor em quebrar o juramento que haviam prestado, e de desencadear as imprecações que sobre ela impendia.

Após sair vitorioso, Assaradão apressa-se a consolidar a sua autoridade recém- adquirida, ao exigir um novo juramento de lealdade que confirmasse definitivamente o seu estatuto, vinculando a si, de uma forma ainda mais pungente, todos aqueles que pudessem ainda estar recalcitrantes.459

Além destes adē, Assaradão estará ainda envolvido, como promotor, em dois outros juramentos de lealdade, cuja intenção era garantir de forma segura a sua própria sucessão, tendo em mente, por certo, estes conturbados acontecimentos que pautaram a sua subida ao poder. O seu projecto, ao conferir a dignidade real aos seus dois filhos, muito embora a níveis diferentes – Assurbanípal e Šamaš-šumu-ukīn – era evitar uma nova guerra civil que vulnerabilizasse a realeza e o sistema imperial.

O último desses adē foi celebrado após a sua morte. A figura responsável pela tarefa de o impor aos Assírios recaiu sobre Naqi’a/Zakutu, a mãe do monarca, personalidade de invulgar influência na corte assíria. 460 Esta tomou a cargo a tarefa,

digna de uma regente, de transmitir o poder de forma ordeira, fazendo cumprir a vontade de Assaradão, que em vida já havia designado Assurbanípal como herdeiro do trono da Assíria e Šamaš-šumu-ukīn, seu outro filho, como titular do trono da Babilónia. Esta estratégia dava continuidade ao modelo de monarquia dual assiro- babilónica, inaugurado muitas décadas antes por Tiglat-Falasar III. Neste caso, dois soberanos, da mesma casa real, governavam os dois reinos, salvaguardando-se a preeminência da “coroa” assíria. Esta solução introduziu uma nova variante na política de integração da Babilónia no espaço imperial assírio, enquanto território com marcada e prestigiada identidade cultural, política e religiosa. O objectivo desta estratégia seria estimular nos Babilónios a percepção de manterem a sua autonomia e identidade461, ao

459 SAA II, 4. A sua análise mostra que foi instituído pouco antes da sua entronização, e depois de ter regressado vitorioso à Assíria, pois nele ainda é referido como “senhor” e não ainda como rei. Dessa forma, podemos mesmo considerar que este adê fez parte das cerimónias da sua acessão ao trono. 460 SAA II, 8.

461 De facto, toda a política babilónica de Assaradão visava pacificar o império através de actos e imagens que demonstrassem os benefícios do domínio assírio. Sobre esta questão, remetemos para PORTER,

111 mesmo tempo que a autoridade sobre a Babilónia permanecia em mãos assírias e sob a alçada da própria linhagem de Assaradão.462

O facto a mãe do rei (ummi šarrim) assumir a elaboração deste adē pode ser entendido como uma solução constitucional alternativa para acautelar uma situação potencialmente perigosa, como era considerada a transmissão da realeza a Assurbanípal. Observando o passado recente de usurpações (Tiglat-Falasar III, Sargão II), parricídios (Senaquerib) e coups d’état contra o herdeiro do trono (Assaradão), podemos concluir que esta tarefa fora colocada nos ombros de Zakutu, por ser uma figura poderosa e prestigiada que, na altura, seria encarada como a única que detinha legitimidade suficiente para exercer, provisoriamente, a representação política do Estado.

De facto, apesar de dirigido a toda a população assíria – «the bearded and the eunuchs, the royal entourage, with the exempts and all who enter the Palace, with Assyrians high and low (...) with the whole nation [MÍ.KUR] concerning her favourite grandson Assurbanipal...» – este tratado especifica, logo no incipit, os seus destinatários principais: Šamaš-šumu-ukīn, “irmão igual” (ahû talimu) de Assurbanípal, e todos os outros irmãos de “semente real”.463 As suas estipulações revelam a enorme preocupação dos círculos ligados ao monarca, com respeito à estabilidade do poder e a eventuais tentativas de assassínio e rebeliões contra o príncipe herdeiro. Possui particular significado o facto de esses círculos temerem que essas tentativas sediciosas proviessem do próprio seio da elite assíria:

«...and if you hear and know that there are men instigating armed rebellion or fomenting conspiracy in your midst, be they bearded or eunuchs or his brothers or of royal line or your brothers or friends or any one in the entire nation - should you hear and know this, yu shall seize and kill them and bring them to Zakutu...»464

A expansão territorial e o alargamento da rede clientelar de Estados subordinados ao rei assírio, adequadamente envoltos num discurso ideológico, e assumidos como uma missão conferida ao monarca por Aššur e os outros deuses, não eram correspondidos pela estabilização do núcleo do império, onde se situava o cerne das instituições e da realeza. Torna-se isto claro quando observamos o estado endémico das rebeliões, que rebentavam com particular acutilância nos momentos de transição de um reinado para o

462 Torna-se óbvio que outro objectivo de Assaradão era esvaziar ambições potencialmente explosivas entre os príncipes e respectivas entourages, de modo a evitar querelas e lutas pelo poder, contentando a sua prole.

463 SAA II, 8, ls. 3-8. 464 SAA II, 8, ls. 18-27.

112 seguinte; e a contestação interna pelo poder que se revelava violentamente sob a forma de usurpações e assassínios. Assaradão procurou romper com essa instabilidade. A sua política de pacificação da Babilónia, assim como a sua utilização extensiva de meios de difusão de uma mensagem política em favor da quietude entre os Estados-vassalos465, serviram esse propósito. Os tratados-adē, invulgarmente frequentes no seu reinado, demonstram também o peso que tiveram a diplomacia, a persuasão e a legitimação jurídica como instrumentos de estabilização do poder, dentro e fora do país de Aššur.