• Nenhum resultado encontrado

A expansão assíria: evolução, instrumentos e dialéctica entre guerra e diplomacia

1. Antecedentes do império.

1.4 Apropriação simbólica e performativa do espaço.

Importa relevar que este modo de apropriação simbólica do território240 não era novo para os Assírios, nem deles exclusivo. Há, aliás, uma continuidade notável nesta prática ao longo de toda a Antiguidade, que nos deixou inúmeros exemplos. Um deles é o de Tutmósis III (1484-1450 a.C.), rei egípcio, que, numa das suas numerosas campanhas para assegurar o controlo da Síria-Palestina, contra mitânios e hititas, logra alcançar o Eufrates. Após vencer duas batalhas, em Carquemiš e Alepo, manda erigir uma estela nas margens desse rio, lado a lado com a de Tutmósis I, um dos seus

238 ARAB I, 496-502.

239 KUHRT, op. cit., p. 484.

240 Sobre este assunto, consultar LIVERANI, Prestige and Interest..., pp. 33-65. Um trabalho fundamental acerca das estelas e da sua função de apropriação performativa do território é o de SHAFER, A., “Assyrian Royal Monuments on the Periphery: Ritual and the Making of the Imperial Space” in Ancient

Near Eastern Art in Context. Studies in Honor of Irene J. Winter by Her Students (ed. J. Cheng e M. H. Feldman), Leiden/Boston, 2007, pp. 133-159.

63 antecessores: «He set up a stela east of this water, he set up another beside the stela of his father, the King of Upper and Lower Egypt, Tuthmosis (I)»241.

Importa referir o caso interessante do rio Nahr el-Kelb, perto da actual Beirute: diversos soberanos, Assírios, Babilónios e Egípcios, mandaram esculpir relevos e inscrições em rochas junto ao curso do rio, denotando a importante situação geográfica e estratégica do local. A amplitude cronológica destas numerosas imagens esculpidas é muito larga: existe, por exemplo, uma imagem de Assaradão ao lado de um relevo com inscrições de Ramsés II, anteriores em 600 anos242.

A intenção de erigir estes monumentos é óbvia: não podendo o rei sustentar, com a sua mera presença física, a estabilidade das fronteiras e a posse do território, aqueles serviam como seus substitutos, representando-o e projectando o seu poder nesses confins do mundo. O pensamento que subjaz a esta prática é semelhante àquele que preside ao erigir dos kudurrus, cuja principal função era delimitar, desta feita, não o mundo conhecido e controlado pelo soberano, numa dimensão propriamente política, religiosa e cósmica, mas uma propriedade ou privilégio particular, tornando permanente a sua posse e hereditária a sua transmissão.243 Tendo em conta a natureza mágica e performativa da escrita e da imagem no Próximo Oriente Antigo, podemos afirmar que a intenção de mandar erigir estes monumentos em determinados locais era fabricar um facto, um dado real, ainda que este pudesse não corresponder a uma realidade concreta. Mas o conhecimento de que o rei e as suas tropas alcançaram e exerceram o seu poder, ainda que de forma esporádica, em lugares longínquos, bastava para que esse poder fosse assumido como real.244 Conhecer o território dominado era essencial para que ele assim se mantivesse, ainda que, na prática, não houvesse nele uma presença permanente. As estelas ou relevos esculpidos na rocha serviam a função de conferir existência a esses locais, porque a partir daí se tornavam conhecidos e controlados, por via da sua natureza performativa e, ousamos dizer, cosmogénica, ligando esses locais periféricos aos centros culturais e políticos do espaço imperial assírio. A sua edificação estava, por essa mesma razão, propriamente envolta em rituais indispensáveis ao consumar dessa apropriação territorial.245

241 BREASTED, J. H., Ancient Records of Egypt, vol. I, Chicago, 1906, 478. Sobre Tutmósis III e as suas campanhas, consultar WHITE, J. E. M., Ancient Egypt. Its Culture and History, Londres, 1970, pp. 166- 168.

242 Uma fotografia dos dois relevos, lado a lado, em BREASTED, J. H., “A Sketch of Egyptian History from the Fall of the Native Kings to the Persian Conquest” BW 9/6(1897), pp. 425.

243 Ver supra Parte I, pp. 47-48.

244 É como diz Liverani: «knowledge is more important than action», Prestige and Interest..., p. 47. 245 Sobre os rituais efectuados a propósito da inauguração ou visita a esses monumentos pelo rei ou pelos exércitos assírios em trânsito, consultar SHAFER, art. cit., pp. 141-147. Importa dizer que também no

64 Não desprezível é também a função propagandística destes monumentos, na medida em que serviam de veículo para a difusão de mensagens políticas, com vista a persuadir e influenciar comportamentos. Os locais estratégicos onde geralmente se situavam podiam, em alguns casos, ser de difícil observação, devido à sua localização em zonas pouco acessíveis, que acentuava a sua intenção de comunicar com as divindades ou de intervir no plano imanente246; ou, pelo contrário, ser bastante percorridos, destinando-se a ser visíveis às pessoas que, ao observá-los, constatariam no local o alcance do poder do rei que os mandou fabricar.

A respeito disto, bastar-nos-á referir os exemplos, estudados por B. N. Porter247, das três estelas de Assaradão em Sam’al e Til Barsip, duas cidades situadas no Norte da Síria, erigidas no apogeu da expansão assíria, após a conquista do Egipto. A sua localização – junto das portas de entrada no perímetro urbano ou junto ao palácio onde residia o governador – revela o carácter público da sua informação escrita e visual, que se dirigia a todas as pessoas que por elas passassem. Mostram o rei assírio, juntamente com os seus herdeiros, Assurbanípal e Samaš-šumu-ukīn, defronte de soberanos derrotados e feitos prisioneiros: Abdi-Milkuti, rebelde fenício, e Taharqa, rei núbio do Egipto. A mensagem das estelas é evidente, apesar das diferenças no tom e na especificidade das mensagens de cada uma das cidades, relacionada com as situações políticas que as envolviam e os seus estatutos no interior do império248: procuravam

fixar a consciência da dominação assíria e advertir todos os que intentassem revoltar-se contra ela. No caso de Taharqa, podemos imaginar a intenção de salientar o aviso de

interior dos próprios palácios se encontrava uma forma de domínio simbólico da geografia e do espaço heterogéneo do império, por meio da imagem e da escrita: um exemplo disto mesmo é o conjunto de esculturas de bronze dos portões de um palácio de Salmanasar III, cuja narrativa visual, acompanhada por legendas, se encontra aparentemente organizada segundo critérios geográficos. Sobre este assunto, cf. MARCUS, M. I., “Geography as Visual Ideology: Landscape, Knowledge and Power in Neo-Assyrian Art” in Neo-Assyrian Geography (ed. M. Liverani), Roma, 1995, pp. 193-208. As reproduções desses relevos em KING, L. W., Bronze Reliefs from the Gates of Shalmanezer, King of Assyria BC 860-825, Londres, 1915.

246 Cf. SHAFER, art. cit., p. 141.

247 PORTER, B. N., “Assyrian Propaganda for the West. Esarhaddon’s Steles for Til Barsip and Sam’al” in Essays on Syria in the Iron Age (ed. G. Bunnens), Leiden, 2000, pp.143-176.

248 Idem. Porter desconstrói a mensagem política das estelas de cada uma das cidades a partir de uma análise cuidada da sua iconografia. Bastará dizer aqui que Sam’al, conservando ainda uma forte identidade própria, era, ao tempo de Assaradão, objecto de uma vigilância mais apertada. Sobre a integração de Sam’al no espaço imperial assírio, um artigo importante é o de HAMILTON, M. W., “The Past as Destiny: Historical Visions in Sam’al and Judah under Assyrian Hegemony” HThR 91/3 (1998), pp. 215-250. A cidade, com efeito, manteve a sua dinastia, embora submetida e fiel à Assíria, durante os reinados de soberanos como Kilamuwa, Panammû I ou Bar-rakib, sendo transformada em província ainda no reinado de Assaradão, possivelmente devido a uma revolta. Til Barsip, pelo contrário, manteve-se pacificada e bastante assirianizada, mantendo-se leal à Assíria desde a sua conquista por Salmanasar III em 856 a.C., desde logo tornada província. A mensagem veiculada pelas estelas, ou seja, a dominação assíria sobre as cidades e os seus territórios era objecto, contudo, de algumas variações, adaptada à situação e estatuto de cada uma delas.

65 que nenhuma ajuda poderia chegar do Egipto, desde que este fora conquistado por Assaradão.249

Não obstante o seu sucesso no Norte da Síria, Fenícia e nas fronteiras com a Anatólia, o sucessor de Aššurnasirpal , Salmanasar III (858-824 a.C.), teve de enfrentar, logo nos primeiros anos do seu reinado, uma coligação de Estados sírios, que incluíam Bit Adini, Carquemiš, Sam’al, Que e Hilakku. Os seus interesses pareciam chocar directamente com o expansionismo assírio até ao Mediterrâneo. Para que este fosse alcançado, era preciso seguir uma rota que passava exactamente por essas regiões. Era imperioso conservar o acesso ao Mediterrâneo e aos produtos prodigalizados pelo comércio da costa do Levante. Para isso, Salmanasar devia esforçar-se por manter submetida toda essa região, percorrida pelo curso setentrional do Eufrates até ao rio Orontes, que dava acesso à costa levantina.250 Essa opção de dar uma espécie de “salto em frente”, assumindo para a Assíria um papel unipolar no quadro político do Oriente Antigo, torna-se definitiva, sendo quebrada apenas nas últimas décadas de existência da Assíria. Muitos Estados da Fenícia e da Palestina – incluindo Israel – apressam-se a pagar tributo e a enviar presentes ao rei assírio, como sinal inequívoco de submissão251, após Salmanasar travar uma batalha de resultado duvidoso em Qarqar (853 a.C.).

A iniciativa militar assíria assemelhava-se, até ao período sargónida, a uma espécie de “fossado” anual, para fora do bloco provincial assírio, com o intuito de obter saque e tributo de pequenos Estados, e sobre eles exercer controlo indirecto. Todavia, é visível a paulatina tendência em tornar mais permanente a presença assíria, antes mesmo do reinado de Tiglat-Falasar III. Este soberano deve ser destacado pelo seu incemento de uma maior dinâmica neste processo de integração do mundo conquistado e controlado pelos Assírios numa “ordem imperial”. Apesar do seu ascendente militar, era necessário fazer corresponder aos actos simbólicos e performativos de controlo territorial, político e “cósmico”, uma realidade efectiva. A altissonância do discurso que

249 A posição do Egipto como promotor das rebeliões contra a Assíria é ilustrada pelos textos bíblicos, especialmente o primeiro livro de Isaías (1-39). No reinado de Sargão II, durante a revolta de Ašdod, desencadeada por Aziru, surge uma referência a Judá, associado a Moab, Edom e à Filisteia. Estes países teriam sido aliciados a rebelar-se: «he spread evil lies to alienate them from me, and also sent bribes to Pi’ru, king of Muṣru [Egipto]» (ANET, pág. 287). Eram do conhecimento assírio, portanto, as movimentações conspirativas dos estados da Síria e Palestina – incluindo Judá – associadas ao Egipto: a troca de embaixadores era constante, acentuando-se talvez durante o reinado de Sargão II, conjuntura vista como uma oportunidade para as sublevações. O profeta Isaías, aliás, parece ter sido activo ao alertar os dirigentes de Judá, através da sua célebre “acção simbólica” (Is. 20) para os perigos de uma aliança com o Egipto contra a Assíria, no contexto da referida revolta em Ašdod.

250 Sobre a via de ligação setentrional da Mesopotâmia ao Mediterrâneo, consultar SEMPLE, E. C., “The Ancient Piedmont Route of Northern Mesopotamia”, Geographical Review 8/3 (1919), pp. 153-179. 251 Israel era governado por Acab: ARAB I, 611. No entanto, Salmanasar apenas consegue pacificar a região a partir de 841, data em que surge o nome de Jeú, rei de Israel, como um dos reis que lhe pagaram o tributo devido pela sua vitória (ARAB I, 672).

66 legitimava a dominação assíria, reflectido nas inscrições reais de forma cada vez mais forte, seria acompanhada por uma contestação endémica, que estalaria periodicamente sob a forma de rebeliões de vários Estados coligados que procuravam sacudir o seu jugo.