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A expansão assíria: evolução, instrumentos e dialéctica entre guerra e diplomacia

5.2 O tratado da sucessão de Assaradão (672 a.C.).

O grande número de adē promovidos por Assaradão durante o seu reinado sugere a sua obstinação em congregar a fidelidade de súbditos e dependentes estrangeiros através de um juramento sagrado em nome das divindades. Já tivemos a oportunidade de aflorar a questão da importância do juramento e da força dissuasora das maldições condicionadas que aquele contém. Não é demais lembrar que esta noção de promessa e compromisso sacralizado é fundamental para compreender o quadro cultural destas sociedades, por ser um conceito estruturante da sua organização e das relações sociais e políticas entre indivíduos e grupos. Por esse motivo, o recurso de Assaradão aos tratados-adē, especialmente aqueles dirigidos para salvaguardar a sua sucessão ao trono, pode ser entendido como uma solução encontrada para manter funcional essa organização e as relações entre a realeza e os seus súbditos.

O juramento de lealdade imposto por Assaradão no ano de 672 a.C. é um exemplo particularmente significativo da sua forma de governar. Por meio dele, Assaradão proclamou a escolha do seu sucessor, vinculando todos os súbditos à obrigação de a aceitar, protegendo a vida do herdeiro designado para o suceder, Assurbanípal. De forma subsidiária, esse acto salvaguarda também os direitos de Šamaš-šumu-ukīn, investido da dignidade real no trono da Babilónia.466 Um conjunto particular de textos foi produzido em função desse juramento de lealdade, formando o mais extenso de todos os tratados neo-assírios, que contém uma grande parte das variantes e dispositivos encontrados nos tratados ao longo do Próximo Oriente Antigo. É também o melhor conservado de todos os adē, pois as centenas de fragmentos desse conjunto de

465 Cf. supra, pp. 64-66, exemplos a propósito das suas estelas em Til-Barsip e Sam’al.

466 SAA II, 6, ls. 83-91 (p. 32) e colophon 666-670 (p. 58). Šamaš-šumu-ukīn é referido como mār šarru bīt redûti ša Babili, como ficaria confirmado pelo tratado de Zakutu, após a morte de Assaradão.

113 manuscritos em argila permitiram uma excelente reconstituição da sua matriz, por via das inúmeras colações que se puderam efectuar.

Estes textos foram encontrados no templo de Nabû em Kalhu (Nimrud). Constituem diversas cópias, cada uma das quais dirigida a um chefe estrangeiro (EN.URU)467. Essas personalidades formam um conjunto de soberanos de pequenos potentados na Média, de Ellipi e Zamua, situados na cadeia dos Zagros, a Leste da Mesopotâmia. Essa região era atravessada por vias comerciais estratégicas para a Assíria, com destaque para a chamada “rota de Khorasan”, que atravessava Ecbátana (Hamadan), Behistun, entrando em território assírio pela província de Harhār. Esses chefes eram os interlocutores do rei assírio, sobre quem recaíam as obrigações estipuladas. A reconstituição dos manuscritos permitiu recuperar os nomes de pelo menos sete deles, associando-lhes vários topónimos que ajudam a definir a sua origem.468 A mera observação desse texto compósito revela a magnitude do acto e dos propósitos que o motivavam.

Com efeito, o processo cerimonial em torno deste adē parece ter sido complexo, tendo decorrido por um período de tempo mais ou menos alargado. Os seus preparativos terão começado pelo menos a partir do mês de Nisan (Março/Abril) de 672, tendo sido feitas consultas hemerológicas para determinar os dias fastos para a efectivação dos rituais e juramentos. Foram propostos os dias 20, 22 e 25 de Ayyaru (Abril/Maio), por serem considerados propícios para a sua celebração (ana šakani ša adē tāba).469 Assurbanípal conta-nos que a 12 desse mês, dia considerado auspicioso470, o seu pai fez reunir a população assíria, o exército, a família real e os oficiais471, assim como as imagens dos deuses para testemunharem os juramentos.472

A reconstituição desse processo, ao longo deste período, mostra que estes juramentos de lealdade integravam um conjunto de outras cerimónias públicas respeitantes à cooptação de Assurbanípal. A entrada do príncipe no Palácio da Sucessão (bīt redûti), situado em Tarbisu, era uma delas. A partir do momento em que foi

467 Literalmente, “chefes de cidades”, bēl alāni.

468 SAA II, p. xxx: Tratam-se de Humbareš de Nahšimarti; Bur-Dadi de Karzitali; Hatarna de Sikrisi; Larkutla de Mazamua; Ramataya de Urukazabanu; Tunî de Ellipi; e por fim, pelo menos um outro topónimo, Izaja, ao qual não se conseguiu associar nenhum nome. A edição de Parpola e Watanabe (SAA II, 6) utiliza como matriz o manuscrito relativo a Humbareš. Wiseman, por sua vez (Iraq 20), utiliza a cópia de Ramataya que, possivelmente, seria a melhor reconstituída na época. As nossas citações remeterão para a edição de Parpola e Watanabe.

469 SAA X, 5 = ABL 384.

470 Algumas das cópias do tratado, contudo, apresentam a data de 16 de Ayyaru; outras, o dia 18 (SAA II, 6, l. 664).

471 WISEMAN, Iraq 20 (1958), p. 3.

114 oficialmente consagrado como sucessor ao trono da Assíria, o príncipe pôde ser aí conduzido, para começar a sua formação indispensável ao seu futuro papel de monarca e onde se iria produzir a sua identificação com um modelo de rei culto e letrado, produto da preocupação do poder político em dotar os soberanos de legitimidade e capacidade para o governo.473 O Palácio havia mesmo sido restaurado, para estar preparado para receber o herdeiro.474

A imposição deste juramento de lealdade surge num momento em que Assaradão estava prestes a atingir o apogeu do seu reinado. Faltaria apenas, para completar uma relativa (e aparente) estabilização da situação interna e externa da Assíria, a conquista do Egipto, consumada depois, nos anos de 671/670. Mesmo a Babilónia, nesse período, parecia pacata e os seus habitantes contentados com a política conciliadora de Assaradão.475