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Após cada encontro com as crianças, as bolsistas produziam um relatório das atividades realizadas em sala de aula, detalhando sua aplicação e as observações quanto à participação, ao envolvimento e ao manejo de situações específicas com alguma criança que naquele dia mais havia chamado a atenção.

Periodicamente os relatórios eram comentados pela professora Ana Archangelo, por mim e por demais colaboradores do grupo. Às sextas-feiras, nos reuníamos para realizar estudos teóricos que envolviam especialmente a teoria psicanalítica, discussão dos casos vivenciados pelas bolsistas em sala de aula, nas propostas com as crianças, e outros encaminhamentos mais gerais. Procurávamos destinar, mensalmente, um encontro para a supervisão dos relatórios referentes ao brincar, um encontro para a supervisão dos relatórios referentes à contação e dois encontros voltados para o estudo de textos teóricos e a organização e o planejamento das ações.

No caso da contação, a partir dessa supervisão mensal, ajustávamos as ações das bolsistas na escola com as crianças. Durante a supervisão, buscávamos compreender cada caso, interpretando as manifestações das crianças e sugerindo intervenções das bolsistas, sempre que julgávamos necessário. Além da supervisão dos casos das crianças, esse também era um espaço de escuta sobre as situações vividas com elas e sobre as angústias das bolsistas no desenvolvimento das propostas. Sempre que necessário, e diante do que era exposto na supervisão, eu procurava realizar o acompanhamento direto da bolsista na escola, visitando a sala e realizando com ela a contação para as crianças. Em diversos momentos, essa ação permitiu às bolsistas agir com o grupo de forma mais confiante.

“Sarau” - Histórias que a gente inventa...

A história Kafka e a boneca viajante, de Jordi Sierra i Fabra (2008) chegou até mim através de um e-mail enviado pela minha orientadora. A bolsista Camila o havia sugerido e, durante a leitura, a professora Ana Archangelo acreditou que fizesse sentido estudá-lo junto com o texto “O papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil”, de Winnicott (1975).

Acessei o link sugerido e percebi, logo na primeira lida, a riqueza da história. Tratava-se de uma versão bastante resumida. Comecei a pesquisar e descobri o livro original. Entrei em contato com algumas livrarias, nada para pronta entrega. Esperei por alguns dias para que o livro chegasse a minha casa e iniciei a leitura assim que o tive em mãos. A descrição do parque Stegliz era encantadora e permitia uma viagem até mesmo para quem não o conhece. Fiquei tão encantada com a leitura que busquei as imagens... quanta beleza. Logo nas primeiras páginas, durante um passeio, Kafka, apresentado na história de Jordi Sierra i Fabra como um personagem fictício, de gestos e características próprias e independentes do famoso escritor Franz Kafka, encontra a pequena menina:

O choro da menina, alto, convulso, repentino, fez Franz Kafka parar.

Estava muito perto dele, a poucos passos, e não havia mais ninguém a volta. Não se tratava, portanto, de uma briga de criança, nem de um castigo de mãe, nem sequer de um acidente, pois não parecia que a menina tivesse levado um tombo. Ela chorava em pé. Desconsolada, tão angustiada que parecia trazer no rosto toda dor e aflição do mundo.

Franz Kafka olhou para um lado e para o outro. Ninguém notava a menina.

Estava sozinha.

Não sabia o que fazer. As crianças eram um completo mistério, seres de alta periculosidade, um conjunto de risadas e lágrimas alternadas, nervos e energia à flor da pele, perguntas sem fim e exaustão absoluta. Não por acaso, ele não tinha filhos.

Mas todo aquele sentimento... (SIERRA I FABRA, 2008, p. 13)

Kafka não sabia nada sobre meninas, crianças lhe metiam medo, estava imóvel a olhar a menina. Criou em seus pensamentos diversas possibilidades que justificariam um choro tão intenso. Nenhuma das hipóteses representava a realidade. Sem escolha, se aproximou da menina. Com cuidado,

fazia perguntas, na tentativa de não assustar a menina ainda mais. Não havia se perdido, ninguém havia a machucado, a resposta era sempre “Eu não”. Desconfiado de haver algo mais naquele “eu não”, Kafka insistiu:

- Quer dizer que você não se perdeu – quis deixar claro. - Eu não, já disse – suspirou a pequena.

- Quem então? - Minha boneca.

As lágrimas que haviam cessado momentaneamente, reapareceram nos olhos de sua dona. Lembrar de sua boneca tornou a mergulhá-la na mais profunda amargura. Franz Kafka tentou evitar que ela desse aquele passo atrás.

- Sua boneca? – repetiu estupidamente. - É.

Boneca ou não, irmão ou não, eram as lágrimas mais sinceras e dolorosas que já tinha visto. Lágrimas de uma angústia suprema e de uma tristeza insondável. (SIERRA I FABRA, 2008, p. 19) Kafka pensou em ir embora, mas estava completamente envolvido naquela história. Não sabia o que fazer, o que dizer e como agir diante de uma menina. Iniciou um interrogatório investigativo para descobrir onde poderia estar a boneca. Sem êxito. Pensou em dispensar a menina, mas era incapaz disso. “Por que a dor infantil é tão poderosa? A situação era real. A relação de uma menina com sua boneca é das mais fortes do universo. Uma força descomunal movida por uma tremenda energia” (SIERRA I FABRA, 2008, p. 21). O reconhecimento dessa importância da boneca para a menina talvez tenha sido a razão para Kafka, com sua capacidade de escritor, inventar a melhor solução que alguém poderia oferecer à menina:

- Espere um pouco, que bobagem a minha! Qual o nome da sua boneca?

- Brígida.

- Brígida? Claro! – soltou uma risada das mais convincentes. – É ela, lógico! Desculpe, não me lembrava do nome! Às vezes sou tão avoado! Com tanto trabalho!

A menina arregalou os olhos.

- Sua boneca não se perdeu – disse Franz Kafka alegremente. – Ela foi viajar! (SIERRA I FABRA, 2008, p. 21)

A solução, na verdade, não era nada simples. Mas não deixava de ser genial. As páginas seguintes desse belo livro encaminham uma longa estratégia de cartas de Brígida para a menina Elsi, com a missão de comunicar-lhe suas aventuras de boneca viajante. As cartas, é claro, eram sempre endereçadas a Kafka, pela simples razão de ser ele o carteiro das bonecas, em especial aquelas

que saem para viajar. Mesmo com a saúde debilitada, se dispôs a manter o plano. Foram vários encontros, algumas pesquisas, uma busca por selos e cartões postais que garantiam veracidade a sua ideia.

Cuidadosamente tudo foi construído para que Elsi pudesse compreender a decisão de Brígida de abandoná-la para conhecer o mundo. Kafka, pouco a pouco demonstrou a Elsi como Brígida estava feliz, indicando caminhos para que Elsi seguisse sua vida com a mesma coragem e alegria de sua boneca.

Não é sempre que alguém se importa tão profundamente com os sentimentos dos outros, em especial de uma criança. Elsi teve a oportunidade de não ser julgada em seu sofrimento infantil e, aos olhos de muitos, banal. Seu sentimento foi legitimado, acolhido e acompanhado, até que tivesse um fim, como poucas vezes se tem a oportunidade de viver. E o desfecho que lhe permitiu seguir em frente foi, na verdade, pensado por alguém com maior condição de solucionar aquela situação que ela, naquele momento.

As ações de Kafka diante de Elsi ilustram com beleza a capacidade do adulto de reconhecer o sofrimento infantil e encontrar meios para solucioná- los, enquanto a criança não é capaz de fazê-lo sozinha. Essa compreensão ecoa sobre a teoria do pensar de Bion e nos indica, de forma poética, caminhos para atuar com as crianças.

Capítulo 3 Um espaço para pensar