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Algumas considerações sobre Espaço e Ser na teoria de Bion

O termo “espaço para ser” tem raízes na teoria de Bion (1991, 2000, 2004b), em suas considerações sobre como podemos, diante de condições favoráveis, aprender com a experiência.

Em Transformações: do aprendizado ao crescimento, Bion (2004b, p. 122) ressalta que o campo do pensamento pode ser entendido como um espaço ocupado por uma “não-coisa”. Diante desse espaço e na tentativa de nomeá-lo, recorremos a um símbolo, como as palavras “pensamento”, “pensar” ou “na mente”. O uso dessas palavras evidencia uma tentativa de associar essa “não- coisa” a uma percepção espacial. Entretanto, como Bion (2004b, p.122) destaca,

“[...] um pensamento continua tendo a penumbra de associações apropriadas ao “lugar onde...” está a não coisa. Isso também é verdadeiro em relação a sentimentos e emoções, seja lá como forem expressos”. Algumas personalidades são capazes de tolerar essa “não-coisa” e valer-se dela, para utilizá-la a partir disso como pensamentos. “Já que ela pode fazer isso, pode procurar preencher o ‘espaço’ ocupado pelo pensamento, isto torna possível casar o ‘pensamento’ de espaço, ou linha, ou ponto, com uma realização, que é sentida como se aproximando destes pensamentos” (p.122). E, segundo o autor, o papel da psicanálise é lidar com objetos que relacionem a “não-coisa” à “coisa”.

Mais adiante, Bion (2004b, p.135, grifos no original) retoma:

Estou admitindo que pontos, originalmente, era o espaço que havia sido ocupado por um sentimento, mas tornou-se um “não- sentimento” ou o espaço onde um sentimento costumava estar. Admito além disto que ao invés de ter este “espaço” ocupado por uma “não-coisa”, pode se descobrir um “ponto de vista” (vértice de projeção), caso espaço seja usado como um elemento insaturado. Sistemas de geometria significativos no desenvolvimento científico podem ser considerados como estes elementos insaturados. Descobriu-se que a geometria euclidiana se aproxima a muitas realizações de espaço. Supõe- se que a geometria euclidiana derivou da experiência de espaço. Minha sugestão é que sua origem intra-psíquica é experimentar “o espaço” onde um sentimento, emoção, ou outra experiência mental “estava”.

E completa ainda: “Escolho ‘espaço’ para representar, por um lado, emoções que são sentidas como indistinguíveis do ‘lugar onde algo estava’, e por outro, espaço aparentado à realização geométrica a partir da qual acredita- se derivar a geometria euclidiana” (BION, 2004b, p.138, grifos no original).

Como destaca Guignard (1997), para Bion é possível comparar o espaço psíquico e o espaço analítico com o espaço astronômico e o espaço já explorado. Da mesma forma que o espaço explorado, a representação do tempo e do espaço analítico de que o analista dispõe e busca conter na sessão simbolicamente ligada ao “pensamento onírico” corresponde a uma porção extremamente reduzida do espaço psíquico do analisando.

Em outras palavras – e correndo o risco de simplificar demasiadamente as colocações de Bion (2004b) –, é possível compreender que, no campo do psiquismo, uma “não-coisa”, algo que não pode ser nomeado ou compreendido, é substituída por algo denominado “pensamento”, mas que, de

fato, ainda não é um pensamento, pois é tão indistinguível quanto a “não-coisa”. Assim, esse “pensamento” se constitui apenas como uma tentativa de ocupar o espaço deixado por ela.

Diante de alguém com capacidade suficiente para tolerar essa “não- coisa” e de fazer uso dela, ela pode ser transformada em “coisa” útil para o pensamento. Se relacionarmos esse processo à teoria do pensamento de Bion, a “não-coisa” está para os elementos beta, coisas-em-si e identificações projetivas, assim como a “coisa” está para os elementos-alfa.

Essa transformação dos “espaços”, dos “pensamentos” ou das emoções que ocupam esses “espaços” depende fundamentalmente de uma capacidade particular para tolerar; do auxílio de alguém com capacidade para tolerá-las e transformá-las em pensamento; e da exploração dos “espaços” que estão do lugar da “não-coisa”, a fim de permitir que se encontrem com uma realização que corresponda à “não-coisa”. Partimos, assim, da relação entre esses “espaços” e o “espaço psíquico”, que pode ser explorado e expandido, na medida em que se encontra relativamente aberto para isso. A analogia do universo ou espaço astronômico com o universo psíquico ou espaço mental, inclusive na sua porção explorada, se mantém pela relação entre eles.

Zimerman (2004), ao falar do universo em expansão, destaca que Bion defendia que o processo de análise não deve ter como objetivo a busca de verdades acabadas ou de conclusões definitivas. O processo psicanalítico “deve construir-se em novas e progressivas aberturas, numa constante inter-relação entre o sensorial e o abstrato, entre o finito e o infinito, entre “K” e “O”.7 O autor

destaca que, para Bion, a análise se preocupa com um universo em expansão, com algo que possibilite o crescimento, e o “finito” presente nas conclusões e nas verdades acabadas não favorece essa expansão.

7 Bion (1991), tomando por base a inicial da palavra em inglês, nomeia por “K” o vínculo que corresponde a conhecer. Zimerman (2004) destaca que “O” tem dupla leitura, tanto como letra O ou como número zero. Silva (1999, p. 1) afirma: “Neste último termo, zero, pelo menos três linhas de significação se entrecruzam. As associações mais óbvias são com o nada, ou com a ausência, o que leva a pensar em frustração e sua importância para o pensamento”. A autora destaca que o “zero” é aquilo que não se pode conhecer. Não chegamos ao conhecimento de zero pelos processos comuns de conhecimento e, desse modo, podemos apenas vivê-lo. Sendo incognoscível e onipresente, o zero se constitui como a verdade de cada momento.

Na associação do espaço psíquico com o espaço da geometria euclidiana, Zimerman (2004) destaca a analogia da semente e da árvore feita por Bion em Atenção e interpretação:

Uso o ponto (.) para representar o “lugar onde” estava a coisa [o seio, por exemplo], ou “tempo quando”, ou “estágio de crescimento”; e a linha ( __ ) como local do ponto ou lugar onde o ponto vai. A preconcepção que se representa pelo ponto (.) constitui a transição do desenvolvimento (a semente é árvore, em estágio definido de desenvolvimento: é árvore, pois). (BION, 1970 apud ZIMERMAN, 2004, p. 14-15)

Mais adiante, em “Insight, elaboração e cura”, Zimerman (2004) retoma essa analogia da árvore e da semente, destacando sua importância para compreender a noção de “crescimento mental”. Alguns estágios do crescimento indicam um “vir-a-ser”. O autor afirma que a semente, quando plantada em um solo fértil, embora invisível, representa a árvore no futuro. Na representação de Bion, a semente corresponde ao ponto (.), simbolizando o devir, enquanto a árvore é representada pela reta ( ___ ), ou seja, o caminho percorrido para o crescimento, para o “vir-a-ser”.

Para compreender a ideia de “ser” na teoria de Bion, Rezende (1994) explica que ser é decorrente de um processo de aprendizagem que se inicia em aprender para crescer e crescer para ser. Rezende (2014, p. 18) também destaca: “A grande intuição bioniana é que SER é mais importante que dizer e mesmo conhecer. O que você é, fala mais alto que tudo quanto você diga. [...] trata-se de ser de acordo com O, e em direção a O”.

Diante desse contexto teórico, denominamos “espaço para ser” em sala de aula, um espaço – físico e emocional – intencionalmente criado para as crianças, que seja suficientemente aberto e acolhedor, tornando possível que sua exploração contribua para o “vir-a-ser” de cada um que o frequenta. Interessa-nos, nesse “espaço para ser” no interior da sala de aula, reproduzir uma situação que favoreça às crianças a exploração de suas emoções e que contribua, ainda que minimamente, para o seu crescimento. As histórias infantis, o diálogo, a liberdade para se expressar de diferentes formas e a postura acolhedora e disponível do adulto são instrumentos para que esse “espaço para ser” aconteça.

1.8. Os primeiros desafios para a construção do “espaço para ser” em