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O planejamento da contação

2.3. Etapas para a organização da atividade

2.3.2. O planejamento da contação

De posse da história, era necessário pensar em propostas para a condução do momento com as crianças. As ações desenvolvidas a partir da escolha da história deveriam estar implicadas na construção de um espaço de comunicação, acolhimento e vivência de uma experiência vitalizadora.

Durante muito tempo, inclusive nos primeiros anos desta pesquisa, defendi a necessidade de, mediante a escolha da história, elaborar um roteiro, uma dinâmica ou um esquema de possíveis assuntos para o momento da conversa. O que é mais importante na história? O que pode ser dito a partir do texto? Que questões a história suscita? Que elementos da história devem ser abordados? Esses eram os exemplos de questões base para a construção de um roteiro prévio que, embora fosse registrado no planejamento, não deveria, de modo algum, ser lido em formato de perguntas e respostas durante a conversa. Não se tratava de um questionário de interpretação de texto, mas de indicações para que a conversa, de certo modo, atendesse às provocações do texto. Seria um conjunto de inspirações, intuições do contador sobre o que poderia surgir durante a conversa, mas deveria ser utilizado como anotações para uso pessoal. O argumento que mantinha essa sugestão do roteiro, inclusive nas orientações com as bolsistas que realizavam a contação, era de que, quando o roteiro não é pensado antecipadamente, o contador pode se perder na condução

da conversa e esquecer de aspectos importantes, fazendo com que a discussão sobre a história seja superficial ou vazia de significado. Constantemente me lembrava da necessidade de cuidar para que o roteiro de conversa não impedisse os alunos de falar sobre suas impressões da história, que nem sempre são as mesmas do adulto.

Não podemos negar que inicialmente o uso do roteiro foi efetivamente uma boa estratégia para organizar as ações das bolsistas com as crianças. Muitas vezes, servia como apoio e conferia segurança para a condução desse momento. Aos poucos, à medida que se sentiam seguras para esse momento, pelo que pude observar, as bolsistas passaram a conduzir a conversa de forma mais espontânea, sem um roteiro prévio, uma vez que tinham “de memória” recursos para sustentar essa etapa do trabalho.

Lembrávamos, durante as supervisões da contação, que a conversa poderia ser iniciada a partir de “perguntas” abertas como: “O que acharam da história?”, “O que aconteceu nessa história que acabei de contar?”, “Vocês gostaram da personagem?”, “O que fariam no lugar da personagem?”. Bastava uma dessas perguntas para que as crianças iniciassem a conversa. Quando ocorria alguma “dispersão”, o contador poderia intervir com uma nova pergunta, que retomasse o sentido da história ou seus reflexos para as crianças. É importante ressaltar que, nos moldes deste trabalho, “dispersão” pode nem sempre ser sinônimo de distração ou perda de sentido do texto. “Mudar de assunto” pode representar: um mecanismo de defesa, ou seja, uma forma de evitar o enfrentamento das emoções (FERRO, 2011); uma manifestação do pensamento sincrético infantil na perspectiva walloniana9; ou ainda uma

comunicação emocional, relacionada a desejos e fantasias da criança. A postura disponível e acolhedora do contador pode contribuir para identificar a razão dessa aparente dispersão ou facilitar a percepção de que estão de fato dispersos.

9 Galvão (1995) destaca que Wallon compreende o sincretismo como uma característica principal

do pensamento das crianças. Esse sincretismo se refere à forma aparentemente confusa e global do pensamento da criança. O pensamento infantil mistura sujeito e objeto aos diversos planos do conhecimento e de objetos entre si. Assim, nesse pensamento sincrético uma coisa pode ser ligada a todas as outras, misturando coisas reais a pensamentos e ideias.

Todavia, é preciso admitir que em grande parte dos encontros das turmas que acompanhava não produzíamos roteiro de conversa. Reconheço ainda que muitas vezes, quando produzido, o roteiro era abandonado no momento da conversa, em virtude dos novos rumos que as crianças davam a esse momento. E, se estamos abertos para acolher as ansiedades das crianças, precisamos também estar suficientemente abertos para modificar ou ignorar nossa “programação”.

Juntamente com a conversa, é possível pensar, em termos de planejamento, em um recurso a ser utilizado para a sua condução. Trata-se aqui de uma tarefa estritamente pedagógica. As crianças, diferentemente dos adultos, estão vivenciando um momento de construção e ampliação da linguagem oral e escrita. Gradativamente, à medida que avançam em sua escolarização e lhes são oferecidas situações propícias à expressão oral, aprimoram pouco a pouco sua capacidade de argumentação e posicionamento diante das mais diversas situações comunicativas. Quanto maiores forem as possibilidades para narrar, e quanto mais criativas forem as estratégias utilizadas para a construção de sua narrativa, mais as crianças terão oportunidade de ampliar seus conhecimentos e até mesmo de organizar seus pensamentos e emoções por meio da linguagem. Chamamos de “recurso” algum objeto relacionado à história que circula entre os participantes da conversa, indicando quem irá falar e, em alguns momentos, sendo, ele próprio, sugestão para a narrativa. São exemplos de recursos, entre outros, um chapéu com poderes mágicos, que pode transformar quem o coloca em algo ou alguém; “carinhas” feliz e triste, indicando trechos de que as crianças gostaram ou não na história; um boneco para permitir àquele que o tem nas mãos pronunciar-se diante da turma.

Muitas vezes, esse recurso serve como incentivo para que a criança se coloque diante do grupo, manifestando seus sentimentos e posicionamentos em relação à história e seus personagens. Ainda assim, é importante que cada um se sinta livre para falar, ou não, sempre que tiver interesse. Quando alguém prefere o silêncio, o objeto é entregue ao próximo colega, sem constrangimentos. É necessário que o contador sempre desempenhe o papel de quem incentiva a conversa, mas nunca de quem pressiona ou impõe que cada um se posicione.

Além da conversa, a preparação do momento da contação envolve ainda sugestão de uma atividade escrita que ocorrerá após a conversa sobre a história. Esse registro considera a faixa etária das crianças e ainda suas hipóteses de escrita. Para aquelas em processo de alfabetização, os registros se dão por meio de desenhos, escrita de palavras ou pequenos textos. Para os maiores, são sugeridos registros mais complexos, em geral textos relativos à conversa sobre a história.

Em alguns momentos, a proposta de atividade exige a preparação antecipada de algum material, como corações recortados em papel colorido para a escrita das crianças, saquinhos plásticos com purpurina, uma caixinha ou um baú para guardarem seus segredos escritos em pedaços de papéis, etc. Em outros momentos, bastam um pedaço de papel e uma boa proposta, para as crianças realizarem atividades bastante significativas e que se constituem não apenas como uma extensão da história, mas além disso, como uma possibilidade de comunicarem suas emoções.

O enunciado do registro é cuidadosamente pensado para criar uma situação aberta, em que a criança possa pensar sobre a história e sua identificação com os personagens. Durante o registro, o jogo de faz de conta precisa ser mantido. Dessa forma, a criança pode se colocar no lugar do personagem e desenhar ou escrever como agiria ou gostaria que fosse, se vivesse a mesma situação.