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A téchne da enfermagem: sentido e significado

3 O trabalho da enfermagem na atualidade

3.1. A téchne da enfermagem: sentido e significado

Destaco aqui a contribuição históricade diversos filósofospara entender o processo de “administrar coisas”pelo homem e a necessidade de haver liderança nasorganizações. Espera-se que as pessoas que as compõem se comprometam com os propósitos da organização e um dos meios para se chegar a isso seria desenvolver a gestão de modo

compartilhado, utilizando-se de diversos saberes, conformados ou não como técnicas ou tecnologiasdegestão(39).

De acordo com Kneller (40) a palavra tecnologia deriva do substantivo grego techne, que significa arte ou habilidade. Esta derivação diz-nos que a tecnologia é essencialmente uma atividade prática, a qual consiste mais em alterar do que em compreender o mundo. Ondeaciênciapersegueaverdade,atecnologiapregaaeficiência.

Nas buscas e reflexões sobre a essência do significado da técnica, Heidegger(41) explica que a mesma deriva do grego technikon, o qual designa o que pertence à téchne.

Segundoomesmoautorestetermo:

[...] tem desde o começo da língua grega, a mesma significação de episteme:velar sobre uma coisa, compreende-la. Téchne quer dizer: conhecer-se em qualquer coisa, mais precisamente no facto de produzir qualquer coisa. Mas para apreender verdadeiramente a téchne pensada à maneira grega bem como para compreender convenientemente a técnica posterioroumoderna,issodependedequepensemosotermogregonoseu sentidogrego, e dequeevitemos projetar sobreeste termorepresentações posterioresouatuais. Téchne:conhecer-se noatodeproduzir.Conhecer-se é um gênero de conhecimento, de reconhecimento e de saber. O fundamento de conhecer repousa, na experiência grega, sobre o fato de abrir, de tornar manifesto o que é dado como presente. No entanto, o produzir pensado à maneira grega não tinha significado de fabricar, manipular, operar, mas mais o que o termo alemão herstellen quer dizer literalmente: stellen, pôr, fazer, levantar, her, fazendo vir para aqui, para o manifesto,aquiloquaanteriormentenãoeradadocomopresente.Parafalar demaneira elíptica e sucinta: techne não é um conceito do fazer, masum

conceito do saber. Techne e também técnica querem dizer que qualquer coisaestáposta(gestelt)nomanifesto,acessíveledisponível[...](41).

No processo de formação do profissional enfermeiro, não só as ciências biológicas compõemsuagradecurricular.Asciênciashumanaseassociaisfundamentamaconstrução da integralidade do cuidado à saúde, proporcionando um agir em enfermagem compromissado com a produção de saúde, ao mesmo tempo em que se procura garantir maiorníveldesatisfaçãonoexercíciodaprofissão.

Entendoque a enfermagem, como outras profissões da saúde(12),mais do que uma técnica ou uma praxis, é uma techné, conforme esclarece Heidegger, ou seja, um saber e não só o saber-fazer. Por isso, para poder pensar a essência do trabalho da enfermagem, mais precisamente do enfermeiro no processo do cuidar, deve-se pautar no sentido e significado do desvelamento, da techné, no sentido tradicional do “conhecer-se no ato de produzir”(poiesis), do“levaràfrente”.(41)Éumsaber-fazernãodesafiandoanatureza,éum ser cuidando de outro ser com seu saber específico enquanto que a técnica, no sentido moderno,éumsaber-fazercomsentidoesignificadoquepressupõeumsaber prévio,porém desafiando a natureza, gerando a causalidade. Segundo o mesmo autor, seria um ocasionamento,algoquepermitealgumacoisaaconteça.

DeacordocomCalvodeFeijoo(42):

Nosquatromodos deocasionar:formal,material, finale eficiente,oculta-se o “deixar vir à presença”, fundamento de todo produzir (poiesis), tanto referindo-se às coisas da natureza (physis) como às que vêm à presença pelo fazer do homem. A essência da técnica reside no desvelar, onde se fundamenta todo o produzir. É na poiesis como modo de manifestação do que seoculta que sedá o desvelamento, a alétheia, comumente traduzida

comoverdade,quenamodernidadefaladacorrespondênciaentreorealeo representado. O desvelar da técnica moderna se dá como um desafio à natureza, de modo que seus recursos possam ser explorados e armazenados. Ao mododa téchne,o desvelar sedánosentido de“levarà frente.

Utilizandoaindaasreflexõesde Heidegger(41)sobreaessênciada técnica,omesmo define duas modalidades do pensamento humano: calculante e meditante. De forma breve salientarei aimportância de inseriressa análisepara entendermos aimportância de realizar a práxis da enfermagem com conhecimento científico estruturado e sistematizado, o saber- fazerseminserirarepresentaçãodoser-noprocessodesaber-fazer,poisomesmochamaa atenção para que as pessoas, de um modo geral não estejam focadas apenas no pensamentoquecalcula,mastambémampliarseufocoparaopensamentoquemedita.

É característica da modernidade o homem dar ênfase ao pensamento calculante, tornando hegemônica uma racionalidade em que se tem a pretensão de prever e controlar tudo e que tem fundamentado o caráter prático do fazer (concepção instrumental e antropológica da técnica – visão enclausurada do cientista), aprisionado pela causa final (o fimaquesedestinaaação)epelacausaeficiente(oefeitoquese produz),muitosedutores dentro da concepção utilitária das “coisas”. No entanto, o pensamento meditante leva o homem a parar e refletir sobre uma representação ou um determinadoponto de vista pode ser desqualificado como uma simples abstração, pois a visão positivista privilegia o pensamentocalculantea partirdascoisasda natureza(physis), não deixandomargempara outras possibilidades de compreender o objeto, o sujeito e outras formas de conhecimento (gnosis)(41).

Diante dessa construção, podemos considerar as tecnologias de cuidado como complexas, pois envolvem pessoas instituições, produtos/equipamentos, conhecimentos, técnicas, organizando e sistematizando atividades, produzindo coisas, saberes e organizando as ações humanas. Dentro da concepção hegemônica, busca aumentar a eficiência das ações humanas, reduzindo custo e tempo (intencional e racional) alicerçada sobre a necessidades (problema a ser resolvido), conhecimento (saber que orienta alternativas para resolução do problema a ser resolvido e criatividade (encontro de alternativaspararesoluçãodoproblemaexistente)(43).

Emseuestudosobre modeloassistencial centradono usuárioena defesaradicalda vida, Merhy(44) discorre sobre o território das tecnologias leves ou seja, o saber que as pessoasadquiremequeestáimplícitoemsuamaneira deatuar (erelacionar)sobreestese que não é campo específico de nehum profissional, mas base para atuação de todos. O autor explica que “mediando saberes estruturados, os profissionais da área de saúde (médicos,enfermagem, psicólogos, etc) incorporam estratégias de intervenções e as ações decadaprofissionalsetornamefetivasesingulares”.

Sobre a essência da técnica, Heidegger afirma ainda que “muito se escreve , mas poucosepensa”e GiacoiaJr.(45),baseandoseusestudosnessefilósofo,esclareceque:

[...] “a técnica não é meio, nem instrumento que o homem coloca a seu serviço. Pelo contrário, o próprio homem moderno é determinado e requisitado pela técnica, pelomodo dedesabrigar queconstitui a essência desta. Ele é convocado para o desafiar que é característico da técnica – desafiar no sentido de explorar a natureza, utilizando-a e transformando-a comoreservadeenergiaestocávelepermutável”.

Contudo, buscando compreender e analisar a relação entre conhecimento e prática, Campos(46) sugereoutro método analítico conceitual para o estudo de práticas sociais e do trabalhoemsaúde,utilizandoasracionalidadestecnológicas,dapráxisedaarte.Reconhece ecriticaahegemoniadaracionalidadetecnológicaeidentificaqueoempregodoconceitode tecnologialevenãoresolveareduçãoepistemológicatípicada razãotécnicaquandoestuda as práticassociais, agestãoeo trabalhoemsaúde. Enfatiza entãoquearazão tecnológica éadominantedopontodevistadiscursivonasociedademoderna,tendoseufundamentona filosofiadeDescartesenavariedadedeautoresqueresumemarazãoàlógicaformal,como é o caso do materialismo, do mecanicismo ou das várias formas de positivismo. Afirma também que a razão tecnológica imagina que o trabalho e as práticas humanas seriam reguladospelosaberpreviamenteacumulado,depreferênciaconsolidadocomo ciência,mas aocustodareduçãomáximadaautonomiadoagente.

Oautor(46)defendea idéiaquea razãoda práxiséa lógicadialética.Estareconhece contradições, paradoxos e aporias, buscando orientar a ação humana a partir de sínteses construídas pelos autores envolvidos em cada processo. Em geral, é a mais adequada sempre que o objeto com que se lida são relações humanas e o objetivo é agregar algum valor ao ser humano ou à sociedade, como na educação, na saúde ou na justiça. A variabilidadedos casoseacomplexidadedoprocesso–práticassociaisedasubjetividade– dificultamaía aplicaçãoautomáticadosaber prévio e,porisso,exigereflexão ecriatividade doagentedaprática.

No que se refere à racionalidade artística, Campos(46) explica que esta objetiva a explicitação de valores estéticos, mas aí a relação do artista com o conhecimento e os padrões instituídos necessita ser a mais livre possível, já que se espera originalidade na produçãoartística.

Observe-se que estas três racionalidades não possuem conteúdos equivalentes, tampouco são excludentes entre si, mas distinguem-se exatamente pela maneira diversa como interferem no modo como os agentes lidam com a relação entre o saber e o fazer. Trata-se de diferenças de escala, sendo difícil precisar onde termina a técnica e onde começa a práxis ou a arte. Esta escala diz respeito à maior ou menor possibilidade de aplicação automática ou mecânica do conhecimento no momento da prática. Esclarece também sobre a maior ou menor autonomia do agente da prática para lidar com o conhecimento instituído, de sua maior ou menor capacidade de interferência durante o processodetrabalhoouemqualquerformade açãoorientadaporalgumconhecimento. Na técnica o automatismo é máximo; na práxis, intermediário e na arte, muito pequeno ou ausente(46).

O mesmo autor ressalta que os seres humanos, quando submetidos a alguma prática, têm capacidade de reagir em dois planos: segundo a inércia ou a resiliência típica dos objetos naturais, mas também reagem e interagem para além da inércia das coisas. Estes atributos humanos aumentam o grau de incerteza sobre o resultado das práticas sociais, exigindo capacidade reflexiva e de tomada de decisão durante o processo de trabalhoou deintervenção. Autilizaçãomecânicade tecnologiasnãoseadéquaa essetipo complexode prática oude trabalho.Por outrolado, nãohá práxissemconhecimentoprévio eusoematodetécnicas(46).

Desse modo, questionao emprego do conceito de tecnologias leves ao afirmar que acrescentar o adjetivo “soft” ao substantivo “technology” não altera as limitações da racionalidade tecnológica quando se trata de práticas sociais (quer sejam intra, inter ou trans-subjetivas).CitaAyres,quandoeste,emdebatecomMerhy,ressaltouaimportânciade realizar-se uma discussão cuidadosa sobre a ubiquidade com que vem sendo utilizado o

conceitode tecnologia,preocupando-secom ofato dequeo cuidado emsaúde dependeria de improvisação e criação singular, postura não autorizada ou estimulada pela razão tecnológica(46).

Assim, quando relacionamos tecnologia com o trabalho dos profissionais de enfermagem devemos pensar que os mesmos devem lançar mão da tecnologia e do conhecimento científico que fundamenta a profissão para o cuidado, ou seja, atuamos através do raciocínio clínico lógico, que exige mais do que técnicas específicas do conhecimento de enfermagem, não deixando de visualizar as diversas dimensões do ser humano, pois esta é a essência desse trabalho,centrada no cuidadoà saúde do indivíduo. Destacoque, ao cuidar do indivíduo, a enfermagem, mais precisamente o enfermeiro, atua sistematizando oprocesso de cuidar, adaptandode modo criativoseu agir,sem generalizá- lo,aocontrário,singularizando-o.

4.